Museus deveriam exibir restos mortais humanos?:
Seu crânio foi enviado como troféu colonial para o museu particularuma fábricaarmasBirmingham, no Reino Unido. Mas a fábrica foi demolida nos anos 1960 e o crânioJandamarra desapareceu.
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Fim do Matérias recomendadas
Os anciões bunubas e pesquisadores vêm tentando encontrar o crânio do célebre combatente da liberdade há décadas, mas seu paradeiro é desconhecido até hoje. Jandamarra se tornou uma figura reverenciada entre os bunubas.
Museustodo o mundo abrigam os restos físicosinúmeras outras pessoas – e muitas delas são anônimas.
Os museus vêm avaliando cada vez maisresponsabilidade pela exibição ou manutenção desses restos. Em alguns casos, eles consideram a possibilidadedevolvê-los, já que os descendentes das suas comunidades, entre outros interessados, passaram a pedir tratamento mais digno dos restos humanos.
O que conta como restos humanos
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A definiçãorestos humanos nos museus – e o próprio uso da expressão "restos humanos" – não é claramente estabelecida.
No Reino Unido, por exemplo, a Lei do Tecido Humano não se aplica às unhas e aos cabelos. Ela também só exige consentimentousorestos humanospessoas que morreram nos últimos 100 anos.
Mas alguns museus britânicos adotam uma definição mais ampla. E os padrões internacionais também são variáveis.
Quando o GrupoTrabalho sobre Restos Humanos da Associação AlemãMuseus redigiu suas primeiras orientações,2013, "para as nossas recomendações, realmente não importava se uma pessoa morreu 100 ou 1 mil anos atrás", afirma a etnóloga Wiebke Ahrndt, presidente do grupotrabalho.
Os restos humanos foram definidos como todos os restos físicosHomo sapiens, incluindo cabelos, dentes ou unhas, que podem não ter ficado unidos à pessoa no momento da coleta.
Ahrndt explica que certos itens foram excluídos por razões práticas, como objetostúmulos e fotografiasseres humanos, mesmo que, para algumas culturas, estes itens também tragam significado especial.
Foi por isso que o Museu Nacional da Escócia retirou todas as imagensrestos humanos (não embalados) do seu bancodados online.
Culturas diferentes também mantêm diferentes crenças sobre como tratar os restos humanos. Ahrndt menciona os exemplosinstrumentos musicais tibetanos feitos com ossos humanos e crânios incrustadosobjetos religiosos, nas tradições vodu do Haiti.
Mas,muitas tradições culturais, separar ou remover partes do corpo é algo profundamente negativo.
Outra questão discutida é se é aceitável exibir corpos humanos, se estiverem totalmente embalados.
Um bom exemplo são as múmias egípcias, muitas vezes "observadas mais como artefatos do que como pessoas", segundo o curador Lewis McNaught, que já trabalhou no DepartamentoAntiguidades Egípcias do Museu Britânico.
Embora as múmias sejam antigas e, muitas vezes, não tenham partes do corpo expostas,exibição é um objetodiscussão permanente.
A exibição continua tratando esses seres humanos como objetos, sem aumentar a verdadeira compreensão do público.
A BBC entroucontato com o Museu Britânico pedindo comentários, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.
Mudançacomportamento
O advogado Edward Halealoha Ayau defende há 35 anos a repatriaçãoancestrais nativos do Havaí que se encontraminstituições culturais.
Quando ele e seus colegas começaram seu trabalho, os museus que exibem restos humanos não consideravam a questão ética envolvida.
Mas uma imensa mudança ocorreu desde então, segundo Ayau.
Para ele, "houve uma [mudança da] maturidadeopiniõesrelação aos restos humanos".
Wiebke Ahrndt é diretora do Museu UltramarinoBremen, na Alemanha. Quando ela chegou à instituição, 20 anos atrás, cabeças encolhidas da América do Sul eram exibidas sem explicação, nem respeito pelacondição sensível.
Ahrndt teve a impressãoque as cabeças estavam ali apenas como espetáculo. Elas foram "a primeira coisa que coloquei no depósito".
Depois, foi a vez da coleçãomúmias peruanas com crânios visíveis. O museu expôs suas razões para deixarexibir aqueles restos humanos e não houve contestação.
Alguns museus receiam que essas medidas levem a um perigoso caminhoquestionamento e renúnciaobjetos, que poderia acabar praticamente esvaziando suas coleções. Mas esta certamente não foi a experiência do Museu Ultramarino, segundo Ahrndt.
Enova política sobre os restos humanos não prejudicou a quantidadevisitantes, nem o financiamento do museu, segundo ela.
Agora,meio a discussões sobre responsabilidades e legados coloniais, existe ainda mais pressão do público e da imprensa alemã para acelerar a repatriaçãorestos humanos adquiridoscontextos coloniais.
"O que percebemos na última década é que o comportamento dos visitantesrelação ao material sensível mudou", afirma Ahrndt.
Os visitantes atuais dos museus às vezes não compreendem por que a repatriação pode levar tanto tempo.
É verdade que alguns museus usaram brechas legais para retardar o processo.
Mas,outros casos, é preciso mais tempo para respeitar os processostomadadecisão dos grupos originários.
Ahrndt explica que as comunidadesorigem enfrentam decisões emocionais muito complexas sobre o que fazer com os restos devolvidos.
Um exemplo é oduas cabeças maori tatuadas, chamadas Toi moko, oferecidas pelo Museu Ultramarino1999 para o Museu Te Papa Tongarewa,Wellington, na Nova Zelândia. Elas foram entregues somente2006.
Uma consideração importanterelação aos restos humanos nos museus é a formaque eles entraram na coleção.
Ahrndt acredita que eles não devam ser apresentados ao públiconenhuma forma, quando foram sabidamente adquiridos ilegalmente ouforma antiética.
No caso do Museu UltramarinoBremen, os restos humanos repatriados não foram coletados inicialmenteboa-fé.
"Eles foram contra a vontade das pessoas", conta Ahrndt. "Eles foram roubados, foram desenterrados na calada da noite."
Na opiniãoAyau, como é impossível presumir o consentimento, os museus têm a responsabilidadenunca exibir pessoas mortas.
Ele relembra que, quando nossos familiares morrem, por exemplo, eles não são enterrados com a intençãoque, um dia, sejam colocadosexposição pública.
Atualmente, existe também maior questionamento sobre o real valor científico ou acadêmicose manter restos humanos.
E, nos casosque possa haver algum argumentofavor do mérito científico, ele é cada vez mais ponderadorelação a outras questões, como a dignidade da pessoa e os desejos da comunidadeorigem.
Muitos dos corpos humanosmuseus ocidentais acabaram ali como justificativa para o colonialismo e o racismo científico. Os exemplos são numerosos e incluem incidentes até do início do século 20.
Na Suécia, as mulheres dos povos tradicionais sâmi foram esterilizadas à força. Foram também realizadas pesquisas eugênicas. Com isso, ossos e crânios sâmis permanecem guardadosdiversos museus do país.
Restos humanos também foram retirados das colônias alemãs e transportados para museus, na falsa crençaque eles demonstrariam a superioridade branca.
No início do século 20, um antropólogo do Museu NacionalHistória Natural (NMNH, na siglainglês)Washington DC, nos Estados Unidos, coletou centenaspartes do corpopessoas pobres e vulneráveis dos Estados Unidos e do exterior, para o que ele chamou"coleçãocérebros raciais" e "coleção racialpélvis".
Um representante do Instituto Smithsonian, administrador do NMNH, fez a seguinte declaração à BBC:
"O Instituto Smithsonian vem devolvendo restos humanos desde 1984. Desde então, nos concentramosdevolver restospovos originários, segundo a Lei do Museu Nacional do Indígena Americano1989. Em 2024, nosso foco são os restos que não sãopovos originários", declarou o representante.
"Em maio do ano passado, o Smithsonian indicou 13 membros paraforça-tarefa sobre restos humanos, dedicada a elaborar recomendações que abordem o futuro da coleçãorestos humanos do Instituto. A força-tarefa estáfase finalelaboração das suas recomendações para a Secretaria, que irá emitir uma política revisada sobre restos humanos nos próximos seis a 12 meses."
Até 2020, o Museu Pitt RiversOxfordshire, no Reino Unido, mantinhaexposição tsantsa sul-americanas – às vezes denominadas cabeças encolhidas.
Lewis McNaught é o editor do website sobre restituição cultural Returning Heritage. Ele descreve a instituição como tendo sido um "museu com ambiente muito vitoriano" no passado.
O museu já retirouexibição 120 restos humanos, incluindo as tsantsa.
Elas podem ter vindo originalmentetrês povos jívaros, incluindo o grupo étnico shuar, originário da região amazônica do Peru e do Equador.
Segundo o website do Museu Pitt Rivers, "a decisãoretirar as tsantsa da exibição pública foi tomada porque se percebeu que a forma da exposição não ajudava suficientemente os visitantes a compreenderem as práticas culturais relativas àelaboração, levando as pessoas a pensar na cultura shuarformas racistas e estereotipadas".
É claro que muitos museus adquiriram partes humanas sob premissas pseudocientíficas. Mas alguns defendem que existem razões cientificamente válidas para continuar a exibi-las.
O Museu Britânico, por exemplo, mantémexibição os delicados ossosuma criança do antigo Egito, portadora do transtorno genético conhecido como osteogenesis imperfecta ("ossosvidro"). Perto deles, uma placa aborda a importância dos restos humanos para o estudodoenças antigas.
Já o MuseuHistória Natural do Reino Unido permanece aberto a receber restos humanos. A instituição defende, por exemplo, que as assinaturas químicas dos ossos e dentes podem ajudar a esclarecer movimentos populacionais do passado.
Análisesesqueletos também podem ajudar a aprimorar as técnicasidentificação usadas pelos antropólogos forenses.
E alguns curadores acreditam que avanços tecnológicos futuros podem trazer mais aplicações científicas para as partes do corpo que se encontrammuseus hojedia.
Um representante do MuseuHistória Natural afirmou que "a Lei do Tecido Humano2004 exige o consentimento das pessoas cujos restos são objetopesquisa, caso elas tenham morrido nos últimos 100 anos. E as propostasexibição públicarestos são sujeitas a aprovação, depoisconsideradas as questões legais, normativas, éticas e outras relevantes."
Uma solução é retirar uma exibição humana controversa da visão do público, mas manter os restos no depósito para possível uso científico.
McNaught é cético sobre os argumentosfavor da manutenção indefinida dos corpos, já que é possível retirar amostrasDNA para que o corpo possa ser respeitosamente devolvido ou enterrado.
Mas nem todos concordam com este procedimento.
O Museu HunterianoLondres guarda nacoleção os restosCharles Byrne (1761-1783), um homem irlandês com gigantismo.
Conta-se que, antes da morte, Byrne feztudo para evitar que seu corpo fosse comprado por anatomistas. Até que veio a intervenção do cirurgião John Hunter (1737-1821), que originou o nome do museu.
Os restosByrne foram retiradosexibição antes que o museu reabrisse2023, depoisuma reforma.
Segundo o website da instituição, o esqueleto "ficará retido como parte integrante da Coleção Hunteriana e estará disponível para pesquisasboa-fé sobre as condições da acromegalia e gigantismo".
Como tratar restos humanos com dignidade
"Passou realmente a ser prática comum analisar e considerar a devoluçãorestos humanos", segundo McNaught.
Esta prática ganhou mais terrenoalguns países ocidentais que, na visãoMcNaught, têm muito mais visibilidade, devido à escala da pilhagem e retiradarestos humanos ocorrida no passado. Mas este é um desafio maioralgumas das antigas potências coloniais do oeste europeu.
A legislação francesa, por exemplo, historicamente dificulta a devoluçãoparte das coleções das instituições públicas.
Na experiênciaAyau ao buscar a repatriação dos ancestrais nativos havaianos, "o país provavelmente mais difícil é a França".
Espera-se que mudanças recentes da legislação possam acelerar este processo.
Além disso, alguns museus enfrentam dificuldades comprópria catalogação e registros, o que pode complicar a situação.
"Existem ainda muitos restos humanoscoleções públicas que não conseguimos sequer identificaronde vieram, que dirá devolvê-los àterraorigem", explica McNaught.
"Acho que ainda estamos arranhando a superfície."
De fato, sobre o rastreamentorestos ancestrais, Ayau comenta que "sempre que achamos que acabou, descobrimos mais".
Devoluções emotivas
Quando realmente acontece alguma devoluçãorestos humanos, ela pode ser uma formacurar feridas oureconciliação.
Ayau já viu este processo despertar fortes emoções entre os representantesmuseus e não só nas comunidadesorigem.
"A emoção da repatriação causa impactos a todos", ele conta.
As cerimônias públicasdevolução do Museu Ultramarino incluem a assinatura dos documentos oficiais da entrega e do "LivroOuro" histórico, na prefeituraBremen. Já houve pedidosdesculpasAhrndt, como diretora do museu, e do prefeito da cidade.
"Eles levaram a reconciliação muito a sério", relembra Ayau sobre a cerimônia da qual ele participou, que foi transmitida ao vivo. "Foi um grande exemplo para os demais."
Esse tipopedidodesculpas não é algo difícil para Ahrndt.
"A questão foi mais sobre o que realmente ocorreuseguida."
Idealmente, a repatriação não é o fim do relacionamento entre os museus e as comunidadesdescendentes.
Em 2017, por exemplo, após a devoluçãorestos maori e moriori pelo Museu Ultramarino, os parceiros da Nova Zelândia expressaram o desejotrabalharprojetos culturais conjuntos no futuro.
Ahrndt concordou, mas não achava provável, devido a limitações financeiras.
Mas, cinco anos depois, o Museu Ultramarino conseguiu financiamento para uma nova exibiçãoparceria com o Museu da Nova Zelândia, Te Papa Tongarewa.
"Foi muito tocante para os dois lados", relembra Ahrndt. "Agora, posso dizer, cinco anos depois, que a repatriação não é o fim. Na verdade, é o começoalgo novo."
O Museu UltramarinoBremen continua exibindo múmias egípcias enfaixadas. No momento, suas cabeças encolhidas da América do Sul permanecem no depósito, onde ficam disponíveis para pesquisadores com fortes razões científicas para terem acesso a elas.
Para Ahrndt, é preciso ter uma boa razão para exibir pessoas.
"Você deve sempre pensar: 'eu conseguiria contar minha história sem os restos humanos?'"
Esta situação estáconstante mutação. Em meio às contínuas controvérsias, o Museu Britânico e o Instituto Smithsoniano estão agora revendo suas políticas sobre restos humanos.
"Daqui a dois anos, os colegas virão dizer que precisamosnovas orientações e outra geração irá depois reescrevê-las por completo", afirma Ahrndt. "Tenho certeza absoluta disso."
Para manterrelevância, os museus estãoconstante mutação, seguindo a evolução da ciência e da sociedade.
Para McNaught, "estamosum períodotransição entre o museu colonial antigo, que foi construído para celebrar a nossa história colonial e trazia troféus da Índia, da África eoutros lugares, e o museu do futuro, onde não haverá restos humanosexibição."
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.