Ligação mística com a natureza: a religiosidade dos indígenas brasileiros:pix bet365

Freiras catequizando indígenas no Mato Grosso,pix bet365fotopix bet3651908

Crédito, Arquivo Nacional

Legenda da foto, Freiras catequizando indígenas no Mato Grosso,pix bet365fotopix bet3651908

“O que une,pix bet365certa forma, esses povos originários é a ligação estreita com a natureza, com os elementos da natureza”, diz à BBC News Brasil o historiador e antropólogo Giovani José da Silva, professor na Universidade Federal do Amapá (Unifap).

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“Conheci pajés quase centenários, convivi com eles. Comecei minha carreira fazendo um trabalho sobre xamanismo, ou pajelança, como queira chamar. Todos eles tinham essa característica: a profunda ligação com a natureza como a gente conhece, o meio ambiente. Eles [os indígenas] não se veem separados dos outros bichos. Eles se consideram bichos como os outros bichos. Eles não se veem separados das plantas, das águas, das pedras. É isso.”

Professor na Universidade Estadualpix bet365Santa Cruz, na Bahia, o historiador Carlos José Santos, também chamadopix bet365Casé Angatu Xucuru Tupinambá (em alusão a suas raízes indígenas), concorda que “a coisa que nos unepix bet365relação à espiritualidade é a relação com a natureza, a profunda relaçãopix bet365pertencimento à natureza”.

“Esse é o ponto: sentir as energias da natureza, esse pertencer à natureza, terra, mata, ar, rios, mares, pássaros, aos bichos… Esse sentimentopix bet365pertencimento,pix bet365não ser antropocêntrico”, comenta ele, à reportagem.

Ele arrisca dizer que talvez a melhor palavra seria biocentrismo — para definir essa oposição ao antropocentrismo.

“Não somos antropocêntricos. Isso é um sentimento bastante comum [aos povos indígenas]. Não somos ensimesmadospix bet365nós mesmos. Entendemos a relação como sendo parte da natureza encantada”, explica.

É religião?

Cerimônia indígena na região do Xingu, anos 1960

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Para o poeta Daniel Massa, idealizador do projeto Biblioteca Indígena do Xingu e autor do livro Fio d’Água — que trata da espiritualidade indígena —, o próprio fatopix bet365não se considerar as crenças dos povos originários como religião já é uma marcapix bet365preconceito.

“Essa [definição] é uma questão complexa. Mas acredito que pensar nessas manifestações como religiões é um modopix bet365desconstruir o etnocentrismo europeupix bet365relação aos indígenas”, afirma ele, à BBC News Brasil.

Ele cita os textos do cronista Pero Magalhãespix bet365Gândavo (1540-1579) para fundamentar seu argumento. “[Gândavo] exemplifica isso nos seus relatos sobre o Brasil ao afirmar que a língua falada pelos povos do litoral careciapix bet365três letras: F, L e R. Napix bet365atrapalhada argumentação, a ausência dessas letras era ‘coisa dignapix bet365espanto’, já que assim esses povos não conheciam a fé, a lei e o rei, vivendo ‘desordenadamente’”, conta Massa.

“Mais que a estreiteza do pensamento, Gândavo reforça o apagamento das religiões indígenas. Esse ideário, inclusive, fundamenta o processopix bet365catequização que ocorreu nos séculos seguintes e,pix bet365algum modo, permanece até hojepix bet365proporções diferentes”, completa.

Silva discorda. “Não chamariapix bet365religião. Para mim, religião é outra coisa: catolicismo, protestantismopix bet365suas várias vertentes. Eu sou budista e não vejo o budismo como religião, muito mais como religiosidade, como formapix bet365lidar com o sagrado”, reflete.

“Alguém me pergunta se eu vejo teatro nas populações indígenas. Não, teatro como conhecemos,pix bet365gente que ensaia texto com atores e atrizes, esse teatro, não. Mas eu vejo teatralidades, toda a atmosfera da representação. Assim, não vejo religião. Eu chamopix bet365religiosidades”, define Silva.

“Ou manifestações do sagrado, manifestações do espiritual, daquilo que escapa à nossa compreensão mais imediata, que é só a fé, só a crença, a mitologia que a gente chamapix bet365lenda e dá errado, porque as mitologias indígenas, as narrativas míticas desses povos, elas são histórias que para esses povos têm muito valor. São histórias para serem acreditadas, para serem vividas nesse campo do sagrado.”

Antespix bet365classificar como religião ou não as crenças indígenas, o historiador Santos prefere promover uma reflexão: qual o sentido da palavra religião.

“Se estamos entendendo isso como bispos, pastores, papas, como essa hierarquia, como um texto único, um lugar-chave, um templo ou uma igreja, se isso for religião, ou se isso for a forma pela qual se classifica uma religião, tenho dificuldadepix bet365dizer que as espiritualidades indígenas pertencem a uma”, contextualiza.

“Mas se religião forem religaçõespix bet365espiritualidade, sem necessariamente ter um guia espiritual…”, pondera.

“Porque um pajé não seria um papa, ele é uma fortaleza espiritual, mas ele não é um bispo ou um pastor. Ele se comunica com as forças da natureza, com os encantados da natureza, por ter um preparo espiritual natural e espontâneo. Ele, portanto, é um portadorpix bet365espiritualidades profundas, mas ele não tem um texto único, um lugar único.”

“Então, dependendopix bet365como se conceitua a religião, essa resposta pode ser sim, pode ser não. As espiritualidades indígenas têm relação com a religião desde que não tenham hierarquia, texto único e lugar único”, sintetiza. “Se isso não for [necessário para ser classificado como uma] religião, então, sim.”

Para Santos, o melhor é chamarpix bet365“universopix bet365encantaria”,pix bet365vezpix bet365religião, crença ou mitologia. O historiador e antropólogo Silva acrescenta que, “em todas as culturas que eu estudei e outras mais que eu conheço, há uma forte ligação com os mundos espirituais; não um mundo espiritual apenas, mas os mundos espirituais”.

Diversidades

Indígenas Kayabi, no Mato Grosso,pix bet3651972

Crédito, Arquivo Nacional

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Mas se há muitopix bet365comum, também é importante ressaltar que os povos indígenas não são um só — muito pelo contrário, há uma grande variedade. “É sempre bom salientar que são maispix bet365300 povos originários no Brasil […] com suas diversidades dependendo da localidade, da temporalidadepix bet365contato com não-indígenas e com outros povos indígenas”, afirma Santos.

O professor lembra que inclusive os contatos com outras culturas ocorridos no Brasil influenciaram essas espiritualidades. Há indígenas que permanecem isolados, enquanto outros tiveram o primeiro contato com outras sociedades há pouco tempo.

“Também existem os indígenaspix bet365contato [com outros] há maispix bet365100 anos, indígenaspix bet365aldeias e indígenaspix bet365cidades. Isso é fundamental para perceber a diversidade histórica, geográfica, espacial e cultural”, salienta.

Ele cita o exemplo que vem justamentepix bet365onde ele se situa, no território tupinambá que fica na região da Ilhéus, na Bahia.

“Aqui tem a peculiaridade que foi o nosso contatopix bet365espiritualidades com as culturas afrobrasileiras que estão presentespix bet365nossos rituais e vice-versa, assim como nossas tradições estão nos rituais afrobrasileiros aqui da Bahia”, exemplifica.

“São áreaspix bet365contato espirituais e contatos profundospix bet365espiritualidades, presentes nas nações indígenas nordestinas. Aqui temos quilombos com presença indígena e aldeias [indígenas] com presença negra afrobrasileira, inclusive nas suas culturas”, diz.

Essas variações impactam na forma como os rituais são feitos. Em alguns casos, há música e dança. Em outros, pinturas corporais. Enfim, cada cultura acabou construindopix bet365maneira própriapix bet365exercer a espiritualidade.

“Cada cultura tempix bet365dinâmica própria”, comenta Santos. “Quando há contato, há trocaspix bet365espiritualidades,pix bet365formaspix bet365se manifestar,pix bet365se pintar,pix bet365colocar o penacho,pix bet365usar o colar,pix bet365colocar os brincos.”

Para o historiador, toda cultura e toda espiritualidades passam por transformações, ainda que “se mantenham arraigadas a seus primórdios”.

“Não é correto agrupar. Cada povo tem seus troncos e cada tronco tem seus grupos familiares”, explica. “Há pontospix bet365comum, mas existem diferenciações. Agrupar é um ato autoritário, atopix bet365interferência externa. Classificar é exercer um poder.”

Adaptações cristãs

Indígenas entoando cânticos no Mato Grosso,pix bet365fotopix bet3651912

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No processopix bet365catequização dos indígenas, iniciado no Brasil pelos padres jesuítas, mas depois também realizado por missionáriospix bet365igrejas protestantes, um artifício bastante comum foi buscar relacionar entidades reverenciadas pelos povos originários com figuras próprias da religiosidade europeia. Foi assim que Tupã, por exemplo, virou Deus — aquele todo-poderoso e único da matriz judaico-cristã.

Para os indígenas, contudo, Tupã nunca foi encarado como Deus supremo. Em seu livro, Werá salienta que a etimologiapix bet365Tupã “não épix bet365fácil apreensão”, mas o mais provável é que seja a junçãopix bet365“coisa maravilhosa” com um “pontopix bet365interrogação”.

“Uma tradução aproximada seria ‘um estadopix bet365maravilhamento e admiração interrogativa diante do mistério criador’”, afirma o educador. A variação “tupá”, contudo, carrega o sufixo “pá”, sinônimopix bet365“estrondo”. “Daí também a ideiapix bet365[Tupã] ser traduzido como ‘trovão’”, diz Werá.

“Na mitologia tupi, Tupã é um desdobramentopix bet365‘Poromonham’, o Absoluto Incomensurável,pix bet365onde vibra ‘Nhamandú’, o Inominável. Ele cria mundos cantando. Seus cantos expressam os princípios norteadores para a humanidade, que são dez, segundo os ‘velhospix bet365sabedoria’”, diz Werá.

Silva, da Unifap, explica que “como [para os indígenas] não havia a ideiapix bet365Deus, esse Deus onipotente e onipresente, um só Deus, os jesuítas precisaram fazer associações”.

“Tupã seria o trovão, ou aquele que faz, produz o trovão, o barulho, o estrondo. Então associá-lo a Deus pareceu, aos jesuítas, algo que pudesse explicar Deus, porque o barulho do trovão está no céu, vem acompanhado normalmentepix bet365raios, aquilo podia ser uma manifestaçãopix bet365Deus”, pontua.

Santos, da UESC, recorda que os cristãos começaram a relacionar Tupã a “Deus Tupã na Oca, como alguns diziam chamar as igrejas católicas: Tupã na Oca, casaspix bet365Deus”. “[O padre jesuíta José de] Anchieta foi um especialista nisso”, pontua.

O sacerdote costumava encenar peças teatrais com os indígenas, a maneira como encontrou para catequizá-los. Nos enredospix bet365fundo cristão, os “encantados” para os indígenas apareciam como demônios, como seres vagantes do mal. Esta é a gênese da satanizaçãopix bet365diversas figuraspix bet365origem indígena que foram incorporadas ao folclore nacional.

“Quem disse que a nossa Iara, a Caipora e o Curupira são demônios?”, lamenta Santos.

“Quem disse? São os seres protetores da mata. E quem disse que eles deveriam ter formas humanas? Onde está isso? Não há escrituras indígenas, não deixávamos textos escritos, tudo está na oralidade.”

Foi nesse sentido que, conforme explica o professor Silva, uma associação foi feita entre o Anhangá, entidade protetora das florestas, ao diabo.

“Era uma entidade muito traquina e zombeteira, confundia quem entrava nas matas para machucar os animais, caçar sem necessidadepix bet365comer, coisas do tipo. Eles [os padres] viram na figura uma possível analogia com o diabo, porque o diabo não existe nas mitologias dos povos tupi”, diz.

“Essas associações sempre foram carregadaspix bet365todo tipopix bet365violências, físicas e simbólicas. Algumas tinham uma intenção pedagógica, mas não por isso menos violentas. Há relatos históricospix bet365encenaçõespix bet365passagens bíblicas feitaspix bet365línguas indígenas”, comenta Massa.

“O sincretismo religioso é, portanto, um fenômeno intrinsecamente ligado ao nosso passado colonial. A questão é que ele não surge da relação horizontal entre sistemaspix bet365crenças religiosas diferentes, mas da tentativapix bet365sobrevivênciapix bet365uma cultura que é violentamente reprimida pela outra.”

O historiador Santos explica que “a forma humana das encantarias não era uma necessidade indígena, mas sim do invasor”.

“A Iara como uma sereia: a lenda da sereia não é nossa. Então transformou-se um encantado protetor das águas dos riospix bet365uma sereia. São analogias tentando impor a visão do outro sobre as nossas culturas para depois transformá-las e dizer que elas não têm sentido”, prossegue Santos.

Ele explica que, para a espiritualidade indígena, as encantarias não fazem partepix bet365um universo deísta — portanto, essas analogias são simplificações enviesadaspix bet365algo que carrega um significado muito mais amplo para os povos originários.

Silva detalha que cartas escritas pelos padres jesuítas naqueles primeiros tempospix bet365colonização demonstram uma dificuldade dos mesmospix bet365compreender o fatopix bet365que os indígenas “não tinham deuses, não acreditavampix bet365deuses,pix bet365coisa nenhuma disso”.

“Havia essa figuras, digamos, do panteão mitológico, mas não chegavam a ser deuses. São entidades míticas que causavam medo, temor, aguçavam a vida das pessoas. Mas não era nada do tipo que se conhecida nas religiões monoteístas”, compara.

Os dez princípiospix bet365Tupã

Segundo Werá, os cantospix bet365Tupã expressam os princípios que norteiam a humanidade. O primeiro deles é o “silêncio criador”. “A essênciapix bet365Tupã é ‘Nhamandú’, o imanifestado, tecidopix bet365vazio e silêncio”, explica. “Na mitologia tupi-guarani, o vazio e o silêncio são carne e unha.”

Outro ponto é “o ser como um som”. “De acordo com a visão ancestral, a essência matricial do ser é luz desdobrada do todo, assim como o raio do sol é parte indissociável do sol, que se expressa por meio da mesma luz-fonte, por meiopix bet365íntima vibração”, escreve ele.

O terceiro princípio é o fatopix bet365que “a natureza se renovapix bet365tempospix bet365tempos”, ou seja, são “os ciclos da renovação”. Em seguida vem “a importância do estudo”, “a visão profundapix bet365si”, tida como “fundamental como apoio para a visão que busca ver além da noite da existência fenomênica”.

Acrescenta-se a ideia da “palavrapix bet365movimento”, ou seja, o fatopix bet365que “a essência do ser é interna” e “potência”. O sexto princípio é o da “ética da unidade na diversidade”, que considera cada indivíduo como “um microcosmo do grande mistério, e este, porpix bet365vez, se expressapix bet365modo múltiplopix bet365inúmeros seres e coisas”.

“Os tupis dizem: ‘Eu e você somos o som do Criador corporificado na carne, maspix bet365essência somos. Um. Nosso Pai é o Céu e nossa Mãe é a Terra, que porpix bet365vez são os nossos primeiros ancestraispix bet365comum, e honrando-os através da reverência e gratidão, nos mantemos ligados à unidade primordial’”, cita Werá.

O sétimo princípio é o da “roda do sonho e da vigília”, que prega que “a vida interior é a causa da vida exterior”. O oitavo trata da “artepix bet365servir”, encarada como “uma das maneiras mais eficientespix bet365combater o egoísmo e o egocentrismo que a noite da existência nos propicia”.

O penúltimo ponto é a ideiapix bet365que “a fraternidade é a ação do reconhecimentopix bet365que somos verdadeiramente uma só grande vida, desdobradapix bet365muitos indivíduos, assim como raiospix bet365um único sol”. Por fim, há o entendimento do “fluxo da vida”: “o mais velho cuida do mais novo”, “o ciclo se faz por um círculo, mas um círculo que não se fecha”.