Como o Ceará se tornou o primeiro lugar do Brasil a abolir a escravidão, quatro anos antes da Lei Áurea:betmotion giriş

Pintura do século 19 mostra escravizadas trabalhando

Crédito, Arquivo Nacional

Legenda da foto, Pintura do século 19 mostra escravizadas trabalhando

Reverberou a notícia não só localmente. Um dos mais importantes nomes do movimento abolicionista, o farmacêutico e jornalista José do Patrocínio (1853-1905) estavabetmotion girişParis e enviou uma carta ao escritor Victor Hugo (1802-1885), participando a ele a novidade. A cartabetmotion girişresposta do francês afirmava que a iniciativa cearense era um sinalbetmotion girişque "a barbárie recua e a civilização avança".

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"O grande significado, o maior impacto [do fato ocorrido no Ceará] foi ter efetivamente começado, ter sido a primeira abolição do Brasil. Logo depois veio no Amazonas [em 10betmotion girişjulho do mesmo ano] e isso mostrava que era um caminho que se fortalecia", analisa à BBC News Brasil a historiadora Martha Abreu, professora na Universidade Federal Fluminense e pesquisadora na Universidade Estadual do Riobetmotion girişJaneiro.

"O movimento abolicionista estava ganhando os seus primeiros resultados e o país já não era só escravista", acrescenta ela. "Foi uma vitória simbólica e política que teve enorme repercussão, animando o movimento abolicionista."

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Professor na Universidade Estadual Paulista, o historiador Paulo Henrique Martinez enfatiza que, após o ato, "o fim do trabalho escravo se tornava uma realidade econômica e social concreta" no Brasil.

"Uma opção política sem riscos para os grandes proprietários rurais que tinham investido recursos na aquisição e manutençãobetmotion girişcativos", diz ele, à BBC News Brasil.

Ele também destaca o "efeito multiplicador" do ocorrido, algo buscado pelas campanhas abolicionistas. "A abolição mostrava-se como o resultadobetmotion girişações efetivas,betmotion girişuma campanha ativa e dinâmica, impulsionada pela sensibilização e o engajamento da opinião pública e pela mobilizaçãobetmotion girişmaior apoio político e social", afirma.

"Este foi o primeiro êxito coletivo, ultrapassando as vitórias alcançadasbetmotion girişsituações individuais, localizadas ebetmotion girişpequenos grupos, como o apoio clandestino a fugas, a comprabetmotion girişalforrias ou iniciativas humanitárias e piedosasbetmotion girişsenhoresbetmotion girişterras e proprietáriosbetmotion girişcativosbetmotion girişáreas urbanas."

Pesquisador no grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Universidade Estadual Paulista, e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, o historiador Victor Missiato situa a abolição no Ceará como "um marco dentrobetmotion girişum movimento amplo pelo fim da escravidão".

"Representa um marco político institucional, para alémbetmotion girişum marco cultural, social e histórico", avalia ele, à BBC News Brasil. "Marca o início da abolição e isso ocorra dentro das instâncias representativas, dentrobetmotion girişum império que não estava mais tão centralizador como antes."

Missato atenta para o fatobetmotion girişque o ato denota que havia "uma flexibilidade provincial" e uma certa "autonomia provincial" dentro do império.

“É interessante pensar e falar sobre esse momento porque a gente fala sobre a abolição longebetmotion girişuma perspectiva do episódio. Tratar o 13betmotion girişmaiobetmotion giriş1888 [data da Lei Áurea] como um raio no céu azul é bastante complicado porque não é isso, [a abolição] é consequênciabetmotion girişum acúmulobetmotion girişlutasbetmotion girişatores diversos,betmotion girişsociedades”, argumenta à BBC News Brasil o historiador Vitor Hugo Monteiro Franco, autor do livro Escravos da Religião e pesquisador na Universidade Federal Fluminense.

“São essas pessoas que conduzem a abolição e não uma canetada da princesa Isabel. Perceber a abolição mais como um acúmulobetmotion girişlutas do que como um episódio isolado é sempre muito bem-vindo e interessante”, defende ele.

Pouca dependência econômica da escravidão

Ilustração mostra escravizados trabalhando no séc 19

Crédito, Arquivo Nacional

Mas é preciso analisar o contexto da província cearense para entender como e por que esse marco institucional ocorreu lá. E a primeira razão que explica esse pioneirismo está não exclusivamente nas pressões sociais, mas também no viés econômico.

"Uma das razões é quebetmotion giriş1872 os escravos eram apenas 4% da população do Ceará, e esse percentual foi diminuindobetmotion girişrazão da vendabetmotion girişescravos cearenses para as regiões cafeeirasbetmotion girişSão Paulo", explica o historiador Renato Pinto Venancio, professor na Universidade Federalbetmotion girişMinas Gerais e autor de, entre outros, Cativos do Reino: a circulaçãobetmotion girişescravos entre Portugal e Brasil.

"A grande seca dos anos 1877-1879 [na região] acelerou esse processobetmotion girişvendabetmotion girişescravos para outras regiões", salienta ele. "Em outras palavras, no início da décadabetmotion giriş1880, a classe dominante local não dependia mais economicamente dos escravos."

Abreu concorda. "Precisamos ver que a escravidão negra não era o carro chefe da mãobetmotion girişobra no Ceará, não era fundamental para o movimento econômicobetmotion girişlá. Havia muitos trabalhadores já libertos, muitos indígenas escravizados ou não, então há uma importância não tão grande da mãobetmotion girişobra escrava negra, o que faz não haver uma classe senhorial que se agarrasse na escravidão como se aquilo, caso acabasse, representasse abetmotion girişmorte", lembra a historiadora.

"A dinâmica econômica naquela província, por um lado, foi revelando a obsolescência e a inviabilidade da mãobetmotion girişobra cativa e, por outro, a organização e atuaçãobetmotion girişassociações ebetmotion girişlíderes abolicionistas e que assumiu, naquelas circunstâncias, dimensões e eficácia política singular", diz Martinez.

"A excepcionalidade do que aconteceu no Ceará é testemunha dessa circunscrição ao contexto regional e cearense pois o fato não se repetiubetmotion girişnenhuma outra província do Império."

Missiato lembra do contexto abolicionista brasileiro, sobretudo depoisbetmotion girişleis restringindo e, depois, proibindo o chamado tráfico negreiro, ou seja, a chegadabetmotion girişnovos escravizados, pelo Atlântico, diretamente da África.

Isto acabou intensificando um comércio internobetmotion girişescravizados. E o nordeste se tornou um grande fornecedor para o sudeste, onde a cafeicultura ia crescendo e absorvendo mais mãobetmotion girişobra.

"Com o café já deslocando o centro do poder econômico do país para o sul, muitos escravos começam a sair da região nordeste por meio do tráfico interno", comenta. "É um contexto que deixou o númerobetmotion girişescravos ao norte muito reduzido."

Especificamente no Ceará, isso era ainda mais intenso. "Porque ali, historicamente, a agriculturabetmotion girişcanabetmotion girişaçúcar não era a única grande produção econômica. Havia pecuária, circulação comercial e atividades que não exigiam tanto a mãobetmotion girişobra escrava. Além disso, a presença indígena era muito forte", analisa ele.

Movimento abolicionista

Pintura mostra um mercadobetmotion girişescravizados no século 19

Crédito, Arquivo Nacional

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Contudo, o contexto social, político e histórico também não pode ser negligenciado. A lutabetmotion girişparte da sociedade pela abolição era grandebetmotion girişdiversos pontos do país — e o Ceará fazia parte desse movimento.

"Havia no Ceará a partirbetmotion giriş1850 um movimento político intelectual muito forte, com impacto na opinião pública e uma incipiente sociedade civil, que lutava pelas ideias abolicionistas e absorviam as ideias que vinhambetmotion girişfora", diz Missiato.

"A conjuntura do movimento abolicionista era uma realidade no Brasil", acrescenta Abreu.

"E, principalmente a partir dos anos 1880, tinha ramificaçõesbetmotion giriştodas as grandes cidades. Estava enraizado nos setores intelectuais, entre os letrados. Era um movimento urbano, artístico e social muito importante, junto a irmandades negras e associaçõesbetmotion giriştrabalhadores."

O historiador Martinez ressalta a participação da elite.

"Convém lembrar que a base social do abolicionismo no Ceará contou com representantesbetmotion girişgrupos econômicos poderosos, os seus contatos no Riobetmotion girişJaneiro, acesso e influência parlamentar na Assembleia do Império", pontua.

"No início da décadabetmotion giriş1880 surgiram agremiaçõesbetmotion girişabolicionistas na província. Em 1882, José do Patrocínio participoubetmotion girişatos e encontros pelo fim da escravidão no Brasil. Em 1883, foi criada a Confederação Abolicionista com a finalidadebetmotion girişcoordenar campanhas e açõesbetmotion giriştodas as províncias do Império. A Sociedade Abolicionista Cearense integrou o agrupamentobetmotion girişentidades associativas que esteve na origem desta Confederação."

Jangadeiros

Houve nessa província um antecedente importante da luta. Por isso, Venancio atenta que, "apesar dessas condições estruturais favoráveis", não pode ser esquecido o papel do movimento abolicionista no episódiobetmotion giriş1884. "Ele [o abolicionismo] existiu no Ceará e inclusive teve apoio popular, como no caso dos jangadeiros", afirma.

Abreu comenta que os jangadeiros "foram um grande exemplo" do movimento abolicionista naquela região.

Em janeirobetmotion giriş1881, os jangadeiros que atuavam no Portobetmotion girişFortaleza decidiram fazer uma greve, fechando o porto ao tráficobetmotion girişescravizados. A ação foi liderada pela Sociedade Libertadores Cearense. Até 1884, esse movimento teve altos e baixos, inclusive com confrontos entre os militantes e a polícia.

Os ânimos só começaram a ser apaziguados quando Sátiro Dias assumiu o governo da província,betmotion giriş1883. Simpático às ideias abolicionistas, ele passou a dialogar com os grevistas e, claro, a extinção da escravidão no Ceará acabou sendo a hábil solução do político.

Pintura da sessão parlamentar que aboliu a escravidão no Cearábetmotion giriş1884: articulação nacional

Crédito, ACERVO BIBLIOTECA NACIONAL

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Repercussão

"Uma medida dessas [a abolição cearense] soltou a chama da liberdade, que se espalhou pelo país inteiro, ainda que naquela época as notícias demorassem um pouco mais para serem conhecidas", afirma à BBC News Brasil o advogado Humberto Adami, presidente da Comissão Estadual da Verdade da Escravidão da Ordem dos Advogados (OAB) do Brasil no Riobetmotion girişJaneiro, vice-presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escradião Negra do conselho federal da OAB e presidente da Comissãobetmotion girişIgualdade Racial do Instituto dos Advogados Brasileiros.

"A primeira notíciabetmotion girişabolição da escravidão acabou fazendo com que seguidores dessas ideias seguissem lutando por elas", complementa.

A historiadora Abreu lembra que, nesse momento, havia uma verdadeira redebetmotion girişabolicionistas, com intercâmbiobetmotion girişinformações. "E o Ceará acaba ganhando uma projeção enorme", ressalta ela.

"Foi o primeiro rompimento da ordem escravista nacional. Saiubetmotion giriştodos os lugares. Teve comemoraçõesbetmotion girişLondres e Paris, afinal a rede abolicionista era internacional. O Ceará passou a fazer parte, junto a outros locais, dessa evidência do fim da escravidão. Quanto mais territórios livres houvesse no mundo, melhor", analisa.

Venancio comenta que "a recepção da abolição do Ceará na corte" foi "muito positiva e acelerou a adesão ao abolicionismo".

"Os protagonistas e as ações verificadas no Ceará foram saudados e aclamados pelos dirigentes e participantes nas campanhas pela aboliçãobetmotion girişdiferentes cidades, jornais e pronunciamentos públicos, sobretudo no Riobetmotion girişJaneiro. O líder dos jangadeiros que promoveram o boicote ao desembarquebetmotion girişcativos no portobetmotion girişFortaleza, posteriormente, foi recebido e festejado no Riobetmotion girişJaneiro, proporcionando aglomerações e animando discursos, artigos, conferências e conversas nas ruas, teatros e salasbetmotion girişvisitas", enumera Martinez.

"O debate sobre o tema e os rumos a serem seguidos para abolir a escravidãobetmotion giriştodo o Império adquiria presença e crescente visibilidade pública. Nos gabinetes ministeriais, nos discursos parlamentares, nos tribunais, nos círculosbetmotion girişnegócio e do comércio as opiniões, críticas e argumentos sobre a abolição eram aventadas e discutidas abertamente, sendo incorporadas à agenda política até a Lei Áurea,betmotion giriş1888."

Segundo o historiador, a buscabetmotion girişuma solução política a curto prazo se tornou urgente, porque era preciso espantar "o temor da participação popular e da autonomia que adquiriram o protesto negro e a revolta dos cativos nas fazendas". "Ainda que as resistências a ela tenham sido duras e persistentes nos quatro anos seguintes aos episódios no Ceará", pondera ele.