Escravo ou escravizado? O debate que reflete mudançasizing cbetcomo Brasil enxerga a escravidão:sizing cbet

Cenas do Brasil escravocrata,sizing cbetimagens do acervo do Arquivo Nacional

Crédito, Arquivo Nacional

Legenda da foto, Cenas do Brasil escravocrata,sizing cbetimagens do acervo do Arquivo Nacional

A preocupação não é nova. Documentossizing cbetnatureza abolicionista do século 19 já optavam pelo termo “escravizados” quandosizing cbetdefesa desses grupos, conforme revelou emsizing cbetconta na rede social X o historiador Renato Pinto Venancio, autor de, entre outros livros, Cativo do Reino: a circulaçãosizing cbetescravos entre Portugal e o Brasil e professor na Universidade Federalsizing cbetMinas Gerais (UFMG).

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“A luta política, portanto, ficou registrada na escolha da terminologia”, comenta ele, à BBC News Brasil.

“Há documentos do final do século 19 que empregam o termo ‘escravizado’sizing cbetvezsizing cbet‘escravo’.”

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No caso apresentado por ele na rede social, se tratasizing cbetuma açãosizing cbetliberdadesizing cbet1887, no ano anterior, portanto, à promulgação da Lei Áurea.

“Essas ações são iniciadas quando se questiona a legitimidade da escravização”, explica o professor.

“O escravizado é representado por uma pessoa livre. Se a demanda judicial fosse aceita, o juiz nomeava um curador para o escravizado, retirando o mesmo do domínio do suposto senhor até a finalização do processo.”

Havia instrumentos jurídicos para basear tais discussões.

“O curador enviava o requerimento, no qual expunha as razões da liberdade do escravizado. É preciso sublinhar que o cativeiro injusto conta com legislação desde o século 16,sizing cbetrazão da proibição da escravidãosizing cbetindígenas, excetosizing cbetalgumas circunstâncias", diz Venancio.

Nos séculos seguintes, essa legislação foi reafirmada, inclusive com a proibição explícita da escravizaçãosizing cbetindígenas no século 18, aponta o historiador.

"Além disso, a legislação portuguesa, baseadasizing cbettradições do direito romano, reafirmou, também no século 18, a liberdade das crianças abandonadas, determinando que não se podia considerar escravas as criançassizing cbetfiliação desconhecida”, elenca Venancio.

“Soma-se a isso a legislação que proibiu o tráfico no início do século 19, determinação reforçada e ampliadasizing cbet1831, apesar do tráfico ter permanecido até 1850. Também é importante lembrar os casossizing cbetque o senhor havia prometido a alforria, mas os herdeiros não cumpriam a palavra”, acrescenta.

“Todas essas situações criaram a possibilidadesizing cbetlutas nos tribunais para reverter a escravidão. O que faltava era homens livres com instrução dispostos a se envolver nessas lutas.”

Com a estruturação do movimento abolicionista, sobretudo a partirsizing cbet1870, alguns intelectuais vão por essa via jurídica — e, por isso, os tribunais brasileiros começam a lidar com uma enxurradasizing cbetaçõessizing cbetliberdade do tipo.

“Não envolveu apenas brancossizing cbetelite”, comenta Venancio, citando o caso emblemático do advogado Luiz Gama (1830-1882).

“Ele era autodidata e foi escravizado, conseguindo provar na justiça a ilegalidadesizing cbetsua situação”, cita.

“Como advogado prático, ou seja, sem formação na faculdadesizing cbetdireito, conseguiu interceder e libertar centenassizing cbetescravizados”, ressalta Venancio.

“Então, o que digo é que tal como no presente, as lutas políticas do passado mobilizaram conceitos e definições.”

É o caso do documento mencionado pelo professor no X. Nele, o curador instituído faz referência ao cativeiro “injustosizing cbetdois escravizados”. “Ou seja: emprega esse termo”, pontua Venancio.

“Ele alegou que, na matrícula, que havia se tornado obrigatória na décadasizing cbet1870, o suposto senhor declarou serem os escravizadossizing cbet'filiação desconhecida’. Aproveitando uma brecha na legislação portuguesa, defendeu a prerrogativa da ‘ingenuidade’, ou seja, os dois escravizados deveriam ser considerados livres por terem filiação desconhecida.”

Documento jurídicosizing cbet1887 traz o termo escravizadosizing cbetvezsizing cbetescravo para se referir aos cativossizing cbetluta pela liberdade

Crédito, Acervo Minas Justiça/Reprodução

Legenda da foto, Documento jurídicosizing cbet1887 traz o termo escravizadosizing cbetvezsizing cbetescravo para se referir aos cativossizing cbetluta pela liberdade

O casosizing cbetquestão não foi bem-sucedido — o juiz considerou a causa improcedente.

Venancio atenta para o fatosizing cbetque, ao longo do texto, a ação adota a terminologia “escravos” — assim, “escravizados” é a escolha apenas dos que advogam pela liberdade dos dois indivíduos.

De acordo com as pesquisas do historiador, este não é um caso isolado.

Emsizing cbetobra O Abolicionismo, o historiador e político Joaquim Nabuco (1849-1910) também prefere “escravizado”. “Ele menciona esse termo pelo menos cinco vezes”, enumera Venancio.

“Quando a própria lei, como se verá exposto com toda a minudência, não basta para garantir, à metade, pelo menos, dos indivíduos escravizados, a liberdade que decretou para eles […]” é um dos trechos.

Outro é “[…] homem, assim escravizado, não tem deveres para com Deus, para com pais, mulher ou filhos”.

Para o filósofo e psicólogo Marcos da Silva e Silva, professor na Escola Superiorsizing cbetPropaganda e Marketing (ESPM) e da Universidade Federal do ABC, a diferenciação entre os dois termos começa a aparecer “a partir do momentosizing cbetque o processosizing cbetescravidão passou a ser tematizado como um problema para a humanidade”.

Isso coincide com o surgimento dos direitos sociais e, consequentemente,sizing cbetpreocupações com direitos humanos e busca por igualdade, a partir do final do século 18, ao longo do século 19 e, principalmente, no 20.

“Escravo passa a ser entendido como aquele que perdeu a liberdade. Escravizado, quem perdeu asizing cbethumanidade”, comenta ele à BBC News Brasil. “Perder”, no caso, porque tiveram isso destituído à força.

“O mais importante a dizer da diferença entre os dois conceitos é que o escravizado, no processosizing cbetescravização, também teve asizing cbethumanidade desconstituída”, explica Silva e Silva.

À BBC News Brasil, a historiadora Lucimar Felisberto dos Santos, membro da Redesizing cbetHistoriadorxs Negrxs e autorasizing cbetEntre a Escravidão e a Liberdade: africanos e crioulos nos tempos da Abolição, entre outros, pontua que a “substituição do termo ‘escravo’ por ‘escravizado’ tem a ver com […] o protagonismo das experiências” desses indivíduos, para a historiografia.

“A pessoa não nasceu escrava, ela foi escravizada ao longo do processosizing cbetescravidão moderna”, ressalta Santos.

Cenas do Brasil escravocrata,sizing cbetimagens do acervo do Arquivo Nacional

Crédito, Arquivo Nacional

Legenda da foto, Emsizing cbetobra 'O Abolicionismo’, o historiador e político Joaquim Nabuco (1849-1910) prefere o termo “escravizado”

O que o debatesizing cbettorno do assunto revela

A escolhasizing cbetum termosizing cbetdetrimentosizing cbetoutro indica a própria maneira como o indivíduo vítima da escravidão é entendido.

“O termo ‘escravo’ remete a uma condição natural, enquanto ‘escravizado’ se refere ao caráter sócio-histórico da condição dos africanos e seus descendentes sob o cativeiro”, argumenta à BBC News Brasil o historiador Petrônio Domingues, professor na Universidade Federalsizing cbetSergipe (UFS).

“Em outras palavras, ‘escravo’ remete a uma identidade fixa, inata, congênita, ao passo que ‘escravizado’ se refere a uma condição imposta por outras pessoas.”

“Assim, ‘escravizado’ evoca à humanidade das pessoas, indicando que elas não são coisas”, acrescenta ele.

Venancio acrescenta que há lutas políticassizing cbettorno dessa palavra. "Mas não acho que cabe à pesquisa definir essa questão. As mudanças lexicais não são feitas por decreto. Trata-sesizing cbetum convencimento coletivo,sizing cbetcriaçãosizing cbetconsensos”, diz o historiador.

“Mas acho que essa luta a cada dia consegue mais apoio. Inclusive entre os arquivistas.”

Ele atenta para o fatosizing cbetque no próprio documento trazido por ele nas redes sociais haja, na áreasizing cbetnotas da descrição, a seguinte frase: “É sugerido o uso da palavra ‘escravizado’, por conseguir melhor indicar a escravidão como uma condição imposta”.

“Duvido que, há 20 ou 10 anos, encontraríamos tal passagemsizing cbetinstrumentossizing cbetpesquisasizing cbetarquivo”, comenta.

Venancio lembra que o debate é uma maneirasizing cbetavançar no próprio entendimento da história.

“É bom que haja esse debate com argumentos e contra-argumentos, pois discutir o passado é uma formasizing cbetse posicionarsizing cbetrelação ao presente e lutar por um futuro que respeito o ser humano”, conclui.

Silva e Silva entende ainda que usar o termo “escravizado” indica que esses indivíduos tiveram “sua liberdade cerceada esizing cbethistória apagada”.

“É como se escravo fosse uma coisa fixa. E o escravizado aquele que pudesse contarsizing cbetprópria história a partir da escravidão”, contextualiza.

“O nome escravizado retira do sujeito histórico essa pechasizing cbetescravo. A condição foi resultadosizing cbetuma relação que foi impostasizing cbetum dado momento da vida, aqui no Brasil se vinculou à condição do ventre da mãe, e aí a pessoa se tornava escrava”, explica a historiadora Santos.

“Ser escravizado é uma consequência da situação pela qual a pessoa passou que a colocou nessa condição. Não é uma condição inerente à vida do próprio sujeito.”

Cenas do Brasil escravocrata,sizing cbetimagens do acervo do Arquivo Nacional

Crédito, Arquivo Nacional

Legenda da foto, 'Usar o termo escravizado é repensar a própria história, salienta o filósofo Silva e Silva.

Atualidade

Domingues entende que essa questão terminológica se tornou realmente importante nas últimas décadas.

Esta é uma preocupação relativamente nova, ressalta o historiador, que surgiu no Brasil no início do terceiro milênio e está associada a dois fatores.

"O primeiro é uma mudança na historiografia da escravidão, que desde a décadasizing cbet1990 passou a priorizar os postulados da agência escrava", afirma Domingues.

"Ou seja, passou a privilegiar abordagens centradas no protagonismo dos escravizados, assim como essa preocupação associa-se às lutas e demandas do movimento negro, que tem sido responsável pelas formulações e avanços das políticas das ações afirmativas e cumprido um papel educador na sociedade brasileiro, o que inclui a propositurasizing cbetmudança lexical para se referir às experiências negras na história.”

Atualmente, usar o termo "escravo" é algo considerado por muitos politicamente incorreto, ressalta Domingues.

"A mudança lexical implicousizing cbetmudança semântica, para não dizer política”, diz o professor da UFS.

O filósofo Silva e Silva salienta que “usar o termo escravizado é repensar a própria história”

Venancio observa que situação semelhante ocorreu com a palavra “índio” para designar os povos indígenas ou os povos originários.

“Ela também tem sido condenada”, compara.

O léxico foi contudo forjado por décadas e décadassizing cbetlivros escolares que traziam o estereótipo do homem branco europeu como protagonista.

“O material didático antigo não havia sido ainda impactado pelas lutas políticassizing cbetreparaçãosizing cbetdireitos, então a tendência foi reproduzir o léxico usual”, comenta o historiador.

“De toda forma, é preciso não mistificar essa questão. Há vasta bibliografia clássica sobre a escravidão que emprega a palavra ‘escravo’. Não cabe anacronicamente condená-la.”