Brasileiros testam peletilápia como tratamento para queimadura ecirurgiasmudançasexo:

Peletilápia aplicadapaciente com queimaduras

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Peletilápia aplicadapaciente com queimaduras

Passados nove anos, o projeto gerou quatro produtos diferentes, que são testadosdiferentes áreas da saúde humana e animal —queimaduras a cirurgiasredesignação sexual — com o envolvimentocentenaspesquisadores no Brasil eoutras partes do mundo.

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A iniciativa, aliás, ganhou repercussão internacional — e foi retratadaseriados como Grey’s Anatomy, The Good Doctor, The Resident e One Piece.

Mas como tantos trabalhos acadêmicos diferentes com um mesmo material evoluíram nessa década? E quais são as perspectivasque a peletilápia se transforme numa solução disponívelclínicas e hospitais?

Necessidades e oportunidades

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Edmar Maciel conta que o Brasil possui apenas quatro bancospele humana — todos eles localizados no Sul e no Sudeste.

Esse material é fundamental para o tratamentoqueimaduras mais graves. Ele é usado como enxerto e ajuda a preencher as partes superficiais do corpo que foram afetadas pelo fogo.

“Mas a captaçãopeles é quase insuficiente no país, principalmente pela faltauma cultura do nosso povofazer a doação desse tecido”, diz ele.

Para completar, o Brasil não utiliza a pele porcina (vindaporcos) para esse tipotratamento, como ocorrepartes da Europa e dos Estados Unidos.

Dianteuma necessidade não atendida, os especialistas viram uma possibilidade: por que não estudar a peletilápia para este fim?

“Esse é um peixe criadogrande quantidade no Brasil e no mundo, com a segunda maior produção, atrás apenas das carpas. Além disso, ele possui um ciclo reprodutivo rápido, aguenta temperaturas que variam entre 12 e 38 ºCcativeiro e demora cercaseis meses para ter entre 800 gramas e 1 kg”, resume o médico.

Para ter ideia, o anuário2022 da Associação Brasileira da Piscicultura aponta que a tilápia já representa 63,5% (ou 486,2 mil toneladas) da produção brasileirapescados, e a tendência é que esse número suba para 80% até o final da década.

“Nós já sabíamos também que os animais aquáticos trazem um risco menortransmissãodoenças zoonóticascomparação com as espécies terrestres.”

Há ainda um último detalhe que torna a peletilápia um potencial alvoestudos. Cerca99% desse material não tinha qualquer aplicação comercial e era descartado pelos produtores durante o processamento dos filés.

“O uso evita a contaminação do meio ambiente e ainda gera uma cadeia produtiva eempregos”, destaca Maciel.

Peletilápia sendo preparadalaboratório

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Peletilápia sendo preparadalaboratório

As avaliações iniciais

Com financiamento garantido, Borges e Maciel concordaramconcentrar as pesquisas na Universidade Federal do Ceará.

Lá, as primeiras investigações desvendaram as propriedades moleculares da peletilápia e testaram como ela funcionariaanimaislaboratório.

“Nas primeiras etapas, nossa equipe detectou que esse material trazia o colágeno tipo 1, que é muito importante no processocicatrização”, detalha Maciel.

Em ratos, os pesquisadores puderam observar que a peletilápia tinha uma sérievantagens no tratamento das queimaduras.

“Ela adere na ferida e não permite a contaminação a partir do meio externo, evita a perdalíquidos ou proteínas e reduz a necessidadetrocar o curativo todos os dias”, lista o cirurgião plástico.

Nas palavras do médico, os resultados obtidos nessas primeiras pesquisas foram satisfatórios.

“Infelizmente, essa necessidadetrocar os curativos diariamente é algo que acontece na rede pública brasileira,que o tratamento das queimaduras depende da aplicaçãocremes ou pomadas.”

Com o passar do tempo, os testes passaram a envolver seres humanos. A peletilápia foi usada inicialmentequeimaduras simples e mais superficiais, mas logo acabou também aplicadaferimentos mais graves e profundos, que exigem internação.

Esses trabalhos se concentraram principalmente no Instituto Dr. José Frota, um hospital públicoFortaleza.

tilápia

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, A tilápia é um dos peixes mais produzidos no mundo; no Brasil, 99% da pele era jogada no lixo

Um novo produto

O final2017 marca o iníciouma nova etapa nas investigações sobre a peletilápia no Ceará, com a saída voluntáriaMarcelo Borges do grupo e a chegada dos pesquisadores Carlos Paier e Felipe Rocha.

Após os primeiros estudos, os cientistas perceberam uma grande barreira para o uso amplificado do material.

“Nosso primeiro produto, a peletilápiaglicerol, precisa ficar a uma temperatura2 a 4 ºC. Para realizar o transporte dela, é necessário usar uma caixa especial, com gelo seco e termômetro. Toda essa logística eleva o custo”, detalha Maciel.

Para resolver essas questões, os especialistas desenvolveram a peletilápia liofilizada. Em resumo, o material é desidratado, esterilizado e embalado a vácuo.

Esse processoesterilização utiliza substâncias radioativas e acontece no InstitutoPesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen),São Paulo.

Importante dizer que essa radiação é inócua e não causa nenhum problemasaúde no paciente — ela serve apenas para eliminar micro-organismos potencialmente perigosos que estavam localizados na pele do pescado.

“A vantagem é que essa pele não precisa ser refrigerada, pode ficar na prateleiratemperatura ambiente, e tem uma validadedois anos e meio”, pontua o médico.

“Ou seja, ela possui os mesmos objetivos e aplicações da peletilápiaglicerol, só que com um custo 90% menor no transporte para outros locais”, calcula ele.

A peletilápia liofilizada não precisarefrigeração e tem validade superior a dois anos

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, A peletilápia liofilizada não precisarefrigeração e tem validade superior a dois anos

Novas fronteiras terapêuticas

A partir2018, a peletilápia liofilizada virou o carro-chefe do timeinvestigadores. O produto passou a ser testado não apenas no tratamentoqueimaduras, masuma sérieoutras áreas da saúde.

Um desses testes se concentra na ginecologia: no Ceará, algumas pacientes com a SíndromeMayer-Rokitansky-Kuster-Hauser, que nascem sem a vagina (e outras estruturas sexuais/reprodutivas), foram recrutadas para um estudo. O objetivo era construir esse órgão por meiouma cirurgia que tem a peletilápia como um dos componentes principais.

Já alguns trabalhos realizados na UniversidadeSão Paulo (USP) e na Universidade EstadualCampinas (Unicamp) focaram nas mulheres que sofrem um encurtamento na vagina, seja por causaum câncer ou pelo efeito da radiação no aparelho reprodutor feminino.

Por fim, um especialistaCali, na Colômbia, avaliou a peletilápiacerca160 pacientes que passaram pela cirurgiaredesignação sexual —que há a alteração dos órgãos sexuais masculinos para os femininos.

Nesses três casos, a peletilápia é colocada no molde que, durante e após o procedimento operatório, vai garantir o formato da nova vagina.

“O colágeno do material ficacontato com essa nova área e é totalmente transferido para o organismo. Desse modo, se forma um epitélio vaginal, com uma cicatrização espontânea”, detalha Maciel.

Ou seja: nesses casos, as fibrascolágeno da peletilápia são transferidas para o leito da vagina, ajudando na formação adequada dessa estrutura.

Cobra recebendo um curativopeletilápia

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Cobra recebendo um curativopeletilápia

Crianças e animais

No mundo da pediatria, a peletilápia virou objetoestudos que avaliam o materialcrianças que nascem com alterações nos dedos das mãos.

Alguns desses indivíduos possuem os dedos colados — e, após a cirurgia para separá-los, esse produto foi avaliado como um curativo que acelera a cicatrização e facilita a aceitaçãoum posterior enxertopele humana.

Maciel também destaca que, nos últimos anos, a peletilápia foi utilizada para tratar animais feridosincêndios florestais que ocorreram no Pantanal,Uberaba (MG), na Califórnia (EUA) e no Líbano.

Ainda no meio veterinário, há um terceiro produto feito a partir da peletilápia que passou a ser testado mais recentemente.

“Falamos aqui da matriz dérmica. Nós pegamos a peletilápia e tiramos a partecima, que é o epitélio onde estão as escamas”, explica Maciel.

“O que sobra funciona como um andaime, um arcabouço, feitocolágeno puro. Esse produto é para ser usado internamente no organismo”, complementa ele.

A tal matriz dérmica feita a partir da peletilápia está sendo avaliadacirurgiashérnia abdominal (quando um pedacinho dos órgãos digestivos escapa pela camadatecidos protetores que recobre a área) e atéoperações no sistema nervoso e nos olhos.

“Hoje, são mais430 cachorros operadosúlceracórnea com o uso da matriz dérmica. Ano que vem, devemos começar os estudosseres humanos”, projeta o cirurgião plástico.

Por fim, a equipe ainda avalia um quarto produto: o colágeno extraído da peletilápia na formapomadas, cremes, sprays e suplementos alimentares. Uma possível aplicação aqui seria na áreaestética.

Matriz dérmica

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Legenda da foto, A matriz dérmica é um terceiro produto das pesquisas realizadas no Ceará. Ela não traz a camada superficial do couro do peixe e forma um andaimecolágeno

O futuro

Vale lembrar que todas essas pesquisas estãofase experimental. Isso significa que a peletilápia é aplicada como um candidato a tratamento, mas não está aprovada ainda para uso clínico pelas agências regulatórias.

Maciel diz que há planos para ampliar o acesso ao produto num futuro próximo.

A peletilápiaglicerol já possui patente no Brasil e nos Estados Unidos. A equipe também já registrou os demais produtos (a pele liofilizada, a matriz dérmica e a extraçãocolágeno) e aguarda uma resposta dos órgãos responsáveis.

“A Universidade Federal do Ceará poderá fazer uma chamada pública e lançar um edital para que empresas interessadas possam licenciar o produto”, informa o médico.

A empresa escolhida, porvez, terá o trabalhobuscar a aprovação regulatória (no caso do Brasil, o aval da Agência NacionalVigilância Sanitária) para que o produto possa ser comercializado para determinados fins terapêuticos — como o tratamento das queimaduras, por exemplo.

Segundo Maciel, é possível que alguns dos produtos com um volume maiorpesquisas sejam submetidos a esse processolicenciamento a partir do início do ano que vem.

Para o médico, a tendência é que o material seja muito utilizado na saúde pública.

“A peletilápia vem para somar e complementar o trabalho que é feito nos bancospele já instalados no país, que têm uma produção pequena por causa dos problemascaptação dos tecidos”, diz ele.

“A ideia é que tudo seja adquirido pelo Ministério da Saúde e distribuído nos centrosqueimados e nos hospitais, para que a população mais carente tenha acesso. Estima-se que 97% dos pacientes que se queimam não têm planosaúde.”

Questionado sobre como vê toda a repercussão do trabalho iniciado há nove anos — inclusiveséries ficcionais produzidas no exterior — Maciel confessa que não esperava tanto.

“Jamais imaginávamos chegar onde estamos hoje. Nosso sonho inicial virou realidade com 36 artigos científicos publicados, 24 prêmios e muita repercussão na mídia”, calcula ele.

“E a satisfação é muito maior diante do fatoque este virou um trabalho337 pessoas, número que aumenta a cada semana com a inclusãonovos projetospesquisa”, conclui o médico.