A misteriosa síndrome que deixa pessoas bêbadas com álcool produzido no próprio estômago:mines cbet

Legenda do áudio, A misteriosa síndrome que deixa pessoas bêbadas com álcool produzido no próprio estômago

"Eu não tinha ideia do que estava acontecendo", afirma Carson, que tem 64 anosmines cbetidade e moramines cbetSuffolk, no Reino Unido. "Seis a oito horas depois, eu acordava como se não houvesse nadamines cbeterrado comigo e, às vezes, sentia ressaca."

Até que Carson emines cbetesposa descobriram que a embriaguez e os outros sintomas pareciam surgir após refeições com alto teormines cbetcarboidratos, como batatas. Após diversas consultas com médicos e nutricionistas, Carson foi diagnosticado com uma condição rara chamada síndrome da fermentação intestinal (SFI).

A síndrome da fermentação intestinal, também conhecida como síndrome da autofermentação, é uma condição, até certo ponto, misteriosa, que eleva os níveismines cbetálcool no sangue e produz sintomasmines cbetembriaguezmines cbetpacientes, mesmo quando tiveram ingestão mínima ou nenhumamines cbetálcool. E pode fazer com que eles não passemmines cbettestesmines cbetbafômetro, e sofram consequências legais e sociais.

Mas este fenômeno incomum também é muito controverso, já quemines cbetcausa exata ainda é pouco compreendida. Por isso, a condição também vem sendo usada como defesa legalmines cbetcasosmines cbetembriaguez ao volante.

Nick e Karen Carson

Crédito, Nick e Karen Carson

Legenda da foto, Nick Carson emines cbetesposa Karen vêm tentando entender as causas da síndrome da fermentação intestinalmines cbetNick há cercamines cbet20 anos

"Acho que a maior parte dos toxicologistas atualmente reconhece que esta é uma condição médica real e que,mines cbetfato, você pode atingir concentraçõesmines cbetálcool significativas com a fermentação interna", afirma Barry Logan, diretor executivo do Centromines cbetEducação e Pesquisamines cbetCiência Forense da Filadélfia, nos Estados Unidos.

"Todos nós produzimos pequenas quantidadesmines cbetálcool por fermentação, mas, na maioria dos indivíduos, os níveis são pequenos demais para serem medidos", segundo ele.

Normalmente, a fermentação que eventualmente ocorre no intestino é removida antes que consiga entrar no fluxo sanguíneo,mines cbetum efeito conhecido como metabolismomines cbetprimeira passagem. "Alguém que tem SFI teria que produzir álcoolmines cbetquantidade maior que aquela que pode ser removida na primeira passagem", afirma Logan.

Alguns especialistas sugerem que essa condição pode estar ligada a desequilíbrios na flora intestinal, a mecanismos que permitem o crescimento excessivomines cbetcertos micróbios que, posteriormente, sob condições específicas, fermentam uma refeição ricamines cbetcarboidratos transformando-amines cbetálcool.

Recentemente, foi descoberta uma nova variação dessa condição, a síndromemines cbetfermentação da bexiga, causada por desequilíbrios entre os micróbios que vivem na bexiga, produzindo álcool na urina, que antes era inexplicável. Esta variante da condição foi observadamines cbetpacientes com diabetes e, se descontrolada, gera açúcar na urina, que servemines cbetalimento para os micróbios.

Mas o que pode acionar essa mudança súbita e dramática nos micro-organismos que vivem dentro do nosso corpo e que, nas circunstâncias corretas, causam a síndromemines cbetfermentação intestinal?

Estudos japoneses

Embora a Síndrome da Fermentação Intestinal tenha sido encontradamines cbetindivíduos saudáveis, observa-se uma incidência maiormines cbetpessoas que sofremmines cbetcomorbidades como diabetes, doenças hepáticas relativas à obesidade, doençamines cbetCrohn, operações intestinais anteriores, pseudo-obstrução (impedimento da capacidademines cbetpassagemmines cbetalimentos ou gases através do intestino, mas sem sinaismines cbetbloqueio) ou crescimento excessivo das bactérias do intestino grosso.

Os primeiros casos relatados dessa síndrome surgiram no Japão nos anos 1950 e existem indicaçõesmines cbetque a população japonesa é particularmente propensa a ela.

Pesquisadores indicam que uma variação genética específica que reduz a capacidade do fígadomines cbetdecompor etanol pode contribuir para a incidência dessa condiçãomines cbetcertas populações, como a japonesa. Essencialmente, isso significa que as pessoas que possuem essa variante são menos capazesmines cbeteliminar o álcool do corpo, permitindo que qualquer fermentação no intestino possa resultarmines cbetacúmulo dos níveismines cbetetanol.

Mas um relatório médicomines cbetdois casosmines cbet1984 destacou outro culpado: as leveduras que moram no trato digestivo dos pacientes.

Médicos da Faculdademines cbetMedicina da Universidademines cbetHokkaido, no Japão, relataram que uma enfermeira até então saudável,mines cbet24 anosmines cbetidade, desenvolveu, ao longomines cbetum períodomines cbetcinco meses, sintomasmines cbetvertigem, náuseas e vômitos uma a duas horas depoismines cbetingerir refeições ricasmines cbetcarboidratos.

Certo dia, duas horas depois do café da manhã, ela se queixoumines cbetmal-estar geral e vertigens, ficou inconsciente e precisoumines cbettratamento hospitalar. Verificou-se que a concentraçãomines cbetetanol na respiração e no sangue era extremamente alta, embora ela não tivesse consumido álcool.

Examesmines cbetlaboratório revelaram que ela tinha altas quantidades da levedura Candida albicans no intestino. Essa levedura é tipicamente encontrada entre os micróbios do intestino humano, mas claramente,mines cbetpopulação havia saídomines cbetcontrole.

Exames similares do segundo caso do estudo, um cozinheiromines cbet35 anosmines cbetidade que se queixavamines cbethálito com odor alcoólico, visão turva e andar cambaleante, também revelaram níveis elevadosmines cbetCandida albicans no intestino do paciente. Os examesmines cbetlaboratório dos dois pacientes demonstraram que eles fermentavam grandes quantidadesmines cbetcarboidratos para produzir álcool.

Os pesquisadores sugeriram, na época, que os níveis normaismines cbetCandida no intestino dos pacientes haviam crescidomines cbetforma descontrolada e começado a fermentar o carboidrato das suas refeições. E, quando os pacientes ingeriam muitos carboidratos, os níveismines cbetálcool no corpo disparavam.

Quando a enfermeira e o cozinheiro receberam medicação antifúngica e os carboidratos na alimentação foram restringidos, os sintomas similares à embriaguez desapareceram por completo.

Mais recentemente, outros estudos revelaram que, muitas vezes, uma combinaçãomines cbetfatores aumenta o riscomines cbetSFI. Diversos fungos e bactérias produtoresmines cbetálcool, tanto no trato gastrointestinal quanto no trato urinário, no casomines cbetpacientes diabéticos, podem gerar superproduçãomines cbetálcool.

A maior parte das espécies responsáveis é do gênero Candida, incluindo as leveduras Candida albicans, Candida kefyr e Candida galbrata, alémmines cbetSaccharomyces cerevisiae - a levedura usada na produçãomines cbetvinho e cerveja - e uma bactéria intestinal chamada Klebsiella pneumoniae.

Isoladamente, níveis anormais desses micro-organismos no intestino dos pacientes podem não gerar a síndrome. Mas ingerir refeições ricasmines cbetcarboidratos é um fator que colabora nesse sentido, pois fornece aos micróbios grande quantidademines cbetmatéria-prima para ser transformadamines cbetálcool.

Pessoas com problemas gastrointestinais que fazem com que os alimentos fiquem estagnados no trato digestivo também são particularmente propensas à SFI, pois eles podem alterar o ambiente estomacalmines cbetforma a favorecer os micro-organismos produtoresmines cbetálcool. E a baixa tolerância a álcool também pode ter influência, já que o álcool produzido pelos micróbios têm efeito maior sobre o ser humano que os hospeda.

Os micróbios do nosso corpo

Todos nós temos cercamines cbet100 trilhõesmines cbetmicro-organismos vivendo no intestino, incluindo bactérias, fungos, bacteriófagos, vírus, protozoários e arqueias. Estima-se atualmente que haja ali maismines cbet1 mil espéciesmines cbetbactérias.

levedura 'Saccharomyces cerevisiae'

Crédito, SPL/Getty

Legenda da foto, A levedura 'Saccharomyces cerevisiae', usada na produçãomines cbetvinho e cerveja, é um dos muitos micróbios que vivem no nosso intestino

As pesquisas revelam que essas bactérias tem um enorme papel na nossa sobrevivência, e funções que vãomines cbetajudar a digerir refeições até determinar a extensãomines cbetinflamações locais e corporais e regular nosso sistema imunológico, alémmines cbetparticipar do metabolismo da glicose e da sinalizaçãomines cbetinsulina.

Esses micro-organismos são muito dinâmicos e seus números e espécies podem se alterar, dependendo das nossas escolhasmines cbetestilomines cbetvida. Um número significativomines cbetestudos demonstrou que, quanto mais diversas são essas espécies, melhor para a nossa saúde física e mental.

Progressos no conhecimento

Segundo a pesquisadora Barbara Cordell, do Panola Collegemines cbetCarthage, no Texas (Estados Unidos), "o diagnóstico e o tratamento da síndrome da fermentação intestinal progrediram substancialmente na última década". Cordell estuda a síndrome e é presidente da organização sem fins lucrativos Auto-Brewery Information and Research.

Mas indicar a causa exata do desequilíbriomines cbetmicróbios que gera o excessomines cbetespécies capazesmines cbetfermentar álcool é muito mais difícil.

"Estamos falandomines cbetinfecções massivas com SFI - uma quantidademines cbetbactérias e levedurasmines cbetfermentação muitas vezes maior que amines cbetuma pessoa saudável", afirma Cordell. "Elas sobrecarregam o sistema, da mesma forma que qualquer outra infecção foramines cbetcontrole."

O uso frequente ou prolongadomines cbetantibióticos foi sugerido como fatormines cbetrisco, por ter sido frequentemente relatado por pacientes que sofrem dessa condição. Isso faz sentido, pois se sabe que o uso excessivomines cbetantibióticosmines cbetgeral perturba a microbiota intestinal - mas são necessárias pesquisas adicionais para confirmar se esta é a causa direta da SFI.

Ingerir quantidade excessiva dos tipos erradosmines cbetalimentos também pode causar problemas. O consumo excessivomines cbetalimentos ultraprocessados também foi relacionado a perturbações da microbiota intestinal.

"Também sabemos que um importante componente do tratamento deve ser uma dieta com baixo teormines cbetcarboidratos, quer o médico e o paciente decidam usar medicamentos ou não", afirma Cordell.

No casomines cbetSaccharomyces cerevisiae e Candida albicans, esses micróbios intestinais são conhecidos por crescerem melhor e produzirem mais etanolmines cbetcondições levemente ácidas, sob pHmines cbetcercamines cbet5-6.

"Normalmente, o pH do estômago é [muito ácido]mines cbet1,5 a 3,5", segundo o toxicologista Ricardo Dinis-Oliveira, da Cooperativamines cbetEnsino Superior Politécnico e Universitário,mines cbetPortugal.

"Sempre que o alimento entra no estômago, o pH aumenta [ele se torna menos ácido]", explica ele. "No casomines cbetpessoas que sofremmines cbetcondições que levam à estagnação dos alimentos, isso significa que o pH do estômago manterá esses valores mais altos por mais tempo, o que pode ser favorável para os micro-organismos responsáveis pela produçãomines cbetetanol."

Em um estudo recente, Dinis-Oliveira descreveumines cbetprópria teoria sobre a criação das condições ideais para o desenvolvimento da SFI. Ele a descreve como uma "tempestade metabólica perfeita", na qual há um aumento do pH do estômago combinado com estagnaçãomines cbetalimentos e seu refluxo do intestino para o estômago, que é observadomines cbetcertas condições médicas.

Nick Carson - o pacientemines cbetSFI do Reino Unidomines cbet64 anosmines cbetidade - descobriu recentemente que sofremines cbetum distúrbio genético que afeta os tecidos conjuntivos do corpo, conhecido como síndromemines cbetEhlers-Danlos hipermóvel.

Os tecidos conjuntivos são compostos principalmente da proteína colágeno. Eles tendem a fornecer apoio para outros tecidos na pele, tendões, ligamentos e vasos sanguíneos, assim comomines cbetalguns órgãos internos.

Pacientes com a síndromemines cbetEhlers-Danlos podem ter juntas hiperflexíveis, mas ela também afeta o trato digestivo, onde pode causar movimentos anormais dos músculos involuntários que controlam a digestão. Isso pode tornar o intestino do paciente mais lento, gerando atrasos no esvaziamento do conteúdo do estômago para o intestino grosso.

Ainda não se estudou nenhuma ligação entre as duas síndromes, mas Carson acredita que esse atraso no esvaziamento do estômago pode ter colaborado com a SFI. Cercamines cbet5 mil a 20 mil pessoas sofrem da síndromemines cbetEhlers-Danlos hipermóvel,mines cbetforma que é necessário ter mais pesquisas para determinar se existe essa relação.

Barbara Cordell acredita que pode haver ainda outras causas.

"Nós também aprendemos muito mais sobre gatilhos alimentares e externos, como solventes, substâncias químicas, poluição, estresse e traumas, que causam 'surtos'mines cbetprodução endógenamines cbetálcool", afirma ela.

Carson associa os solventes àmines cbetSFI. Uma das suas primeiras experiências com a síndrome ocorreu pouco depoismines cbetvedar um pisomines cbetmadeira usando produtos que continham compostos orgânicos voláteis. Mas, como é sabido que solventes podem causar intoxicação quando inalados, esta relação precisa ser mais estudada.

Após uma dieta restrita sob a orientaçãomines cbetnutricionistas, combinada com tratamentos antifúngicos e multivitamínicos, Carson conseguiu mantermines cbetSFI sob controle.

"Ainda é como andar na corda bamba", ele conta. "Estou sempre me perguntando: 'estou bem?' Quando me sinto um pouco cansado, faço o teste do bafômetro."

Para Carson, a parte mais preocupante damines cbetexperiência com a SFI foi o efeito sobre amines cbetsaúde mental. Ele usa a técnica do "palácio da memória", que ficou famosa com a sériemines cbetTV Sherlock, como analogia. Na série, Sherlock Holmes descreve como ele relembra as informações mantendo-as armazenadasmines cbetquartos imagináriosmines cbetum grande edifício.

"Quando entro naquele estado inconsciente, não tenho mais acesso aos quartos mentais desses eventos", afirma Carson. "Isso é extremamente perturbador e você acaba duvidandomines cbetsi próprio."

Carson explica que, embora saiba pela família que esses episódios ocorreram, suas memórias dos eventos ficam foramines cbetalcance, o que é frustrante.

"Existem diversos quartos onde não consigo entrar, pois esses quartos estão trancados e preciso aceitar que nunca entrarei neles", prossegue ele. "Não é que as memórias não estejam ali, mas você não tem acesso a elas no seu estado consciente."

Mas, à medida que Carson for aprendendo mais sobre amines cbetcondição e suas possíveis causas, ele emines cbetesposa esperam que menos quartos como esses fiquem trancados no futuro.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.