Aborto: o que levou a Igreja Católica a considerar essa prática pecado no século 19:zero hora esportes

Cruzzero hora esportescimazero hora esportesuma Bíblia

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"Papa Pio 9º declarou que a vida começa na concepção e deve ser protegida depois disso", prossegue ele. "Na tradição judaica, o feto é parte da mãe […]; entretanto, há passagens nas escrituras que consideram o primeiro respirar como o início da vida."

Em documento publicado pela Igrejazero hora esportesoutubrozero hora esportes1869, dois meses antes do início do Concílio Vaticano 1º, a definição é clara e concisa: "procurantes abortum, effectu sequuto". Ou,zero hora esportestradução livre: "obter um aborto, seguindo-se o feito". É um dos itens sob a penazero hora esportesexcomunhão latae sententiae, ou seja, automaticamente, por força da própria lei.

Papa Pio 9º

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Legenda da foto, Papa Pio 9º declarou que a vida começa na concepção

"Até Pio 9º, cometer o pecado do aborto era considerado um erro grave, uma ação não ética que devia ser condenada e combatida. Mas não tinha essa conotação tão pesada, que levasse a ser considerada,zero hora esportesimediato, a excomunhão", contextualiza o bioeticista Alexandre Martins, professor na Universidade Marquette,zero hora esportesconfissão católica, nos Estados Unidos.

"Ele começa essa visão, que vai chegar ao primeiro Códigozero hora esportesDireito Canônico, promulgadozero hora esportes1917", explica. "Vem essa condenação direta do aborto, com penazero hora esportesexcomunhão direta pelo fatozero hora esportessi, a pena máxima da Igreja Católica."

Martins pontua que o pontificadozero hora esportesPio 9º acabou balizando a influência do entendimento contemporâneo que o catolicismo tem sobre a questão. "Tornou-se preto no branco, sem nenhum espaço para a possibilidade do aborto. [Desde então,] o aborto na Igreja Católica é condenado a qualquer momento, a [ideia de] dignidade do ser humano ficou atrelada à concepção, e por conta dessa dignidade há uma obrigaçãozero hora esportesproteger o inocente e vulnerável", comenta ele.

Relação com a França

Era um momento bastante tumultuado, ozero hora esportesPio 9º à frente da Igreja. A península itálica vivia uma sériezero hora esportesconflitos — que culminariam na unificação do país e a formação do Estado italiano moderno.

Nesse contexto, a Igreja perdia poder político, estatal e militar. "Havia os chamados Estados Pontifícios", esclarece Martins. "O papa tinha até Exército, mas foi pouco a pouco perdendo [as terras]. Havia uma relação com [o imperador francês] Napoleão 3º, que protegia os Estados Pontifícios."

Pio 9º teve uma postura bastante reacionária frente ao mundo que se abria à modernidade no século 19, condenando as ideias liberais, o relativismo moral, a secularização e a separação entre Igreja e Estado — cerne dos ideais republicanos contemporâneos. "A questão do aborto entra aí [nesse contexto], com ele condenando e rejeitando o novo mundo que estava florescendo", pontua Martins. "Um mundo mais leigo e sem a tutela da Igreja. Ele vai ser o primeiro [papa] a condenarzero hora esportesmodo mais explícito o aborto, criando uma punição."

Conforme explica o historiador Paulo Debom, professor do Centro Universitário Celso Lisboa, depois que a Revolução Francesa,zero hora esportes1789, precipitou uma ruptura forte entre a Igreja e o Estado, ao longo do século 19 houve uma reaproximação.

Napoleão 3º

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Legenda da foto, Napoleão 3º era muito próximo da Igreja Católica

"Na propostazero hora esportesgovernozero hora esportesNapoleão 3º existia uma aliança muito forte com a Igreja Católica,zero hora esportescerta forma uma continuidade do períodozero hora esportesNapoleão [o 1º]", afirma ele. "Há uma percepção [do governo]zero hora esportesque, com muitos católicos na população francesa, se fosse mantida a posturazero hora esportesafastamento, separação e combate ao catolicismo, haveria muitos problemaszero hora esportespopularidade. É uma jogada clara."

"[Por isso,] Napoleão 3º, diante dos estados italianoszero hora esportesconflitos constantes pelo processozero hora esportesunificação e [vendo] a Igreja Católica sob ameaça, para garantir o apoio do povo francês, ele declarou apoio à Igreja Católica e deixou muito claro que,zero hora esportesseu governo, colocaria os exércitos franceseszero hora esportesdefesa dos Estados Pontifícios", narra Debom.

No meio do cenário, há um problema vivido pela França: o país experimentava um crescimento demográfico muito baixo, se comparado a outras nações europeias do período. Em um estudo publicado originalmentezero hora esportes1974, o demógrafo, economista e sociólogo Éttiene Vanzero hora esportesWalle (1932-2006), professor na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, concluiu que a taxazero hora esportesnatalidade — ou seja, o númerozero hora esportesnascidos vivos por mil habitantes — caiuzero hora esportes40 para 30 no século 19. No mesmo período, a média europeia erazero hora esportes45. Em 1900, a taxazero hora esportesnatalidade na Alemanha erazero hora esportes35, enquanto a França chegava a 22 nascimentos por mil.

"Ao longo do século 19, a natalidade [na França] vai se manter a um nível apenas suficiente para a população seguirzero hora esportesum número constante", pontua o pesquisador,zero hora esportesartigo publicadozero hora esportes1986. "A esta época, a França se distingue dos demais países da Europa pela estagnação ou mesmo declíniozero hora esportessua população rural."

Segundo levantamento do economista Alain Clément (1953-2016), professor na Universidadezero hora esportesTours, na França, considerando as potências europeias, a população francesa representava 40% do totalzero hora esportes1700. Em 1890, apenas 12%.

Reprodução da última página do Didache.

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Legenda da foto, Reprodução da última página do Didache.

Em 1867, a taxazero hora esportesfertilidade na França erazero hora esportes3,03 filhos nascidos vivos por casamento. Era inferior a Prússia (3,84), Holanda (4,04), Inglaterra (3,77) e Itália (4,55). Responsável por organizar os censos franceseszero hora esportes1856, 1861 e 1866, o estatístico Alfred Legoyt (1812-1855) chegou a escrever que a nação era "o país da Europa cuja população cresce mais lentamente" e avaliou,zero hora esportesacordo com a perspectiva da época, que o fraco aumento da população fazia com que a França estivesse "ficando para trás".

Várias são as explicações possíveis para o fenômeno. Debom aposta no momento histórico conturbado. "Penso logozero hora esportestodas as ondas revolucionárias que aconteceram [na França, ao longo do século 19], justamente por péssimas condiçõeszero hora esportesvida da maior parte da população. A Revolução Industrial toma corpo, e você tem massas e massaszero hora esportespessoas, originalmente camponesas, jogadas para forazero hora esportessuas terras e levadas a ocupar as filas dos operários nas fábricas", afirma o historiador. "É um períodozero hora esportesmuita miséria. O baixo crescimento demográfico pode ser decorrência da péssima condiçãozero hora esportesvida."

Em artigo, Clément falazero hora esportesaspectos culturais e psicológicos que teriam causado essa baixa fertilidade. Lembra que o país vivia um êxodo rural e as condições mais difíceis funcionavam como um "freio preventivo [à procriação]". Citando autores da época, ele argumenta que "a baixa fecundidade" poderia ser "frutozero hora esportesum desejozero hora esportesmelhorar o padrãozero hora esportesvida".

"A 'esterilidade sistemática' estaria ligada ao desejozero hora esportesmanter um certo padrãozero hora esportesvida", escreve o economista.

Mas havia também uma questão legal cuja origem remetia ao Código Civil outorgado por Napoleão Bonaparte (1769-1821)zero hora esportes1804. A legislação passava a reservar um tratamento aos herdeiros, garantindo que as sucessões fossem mais justas. Ou seja: não podia mais valer a tradição histórica,zero hora esportesque o pai reservava ao filho mais velho suas posses — automaticamente relegando os demais a papéis secundários ou mesmo à sinazero hora esportesviverem como agregados. As terras precisavam ser divididas,zero hora esportespartes iguais.

"A ausênciazero hora esportesliberdade testamentária e a consequente obrigaçãozero hora esportestratar os herdeiroszero hora esportespézero hora esportesigualdade levam a uma dispersão da propriedade, que só pode ser evitada controlando a fertilidade", aponta Clément.

O economista e político francês Michel Chevalier (1806-1879) escreveu, na época, que, "a razão deste fenômeno [da queda da natalidade] é muito fácilzero hora esportesexplicar". "O dono quer fugir das necessidadeszero hora esportesuma partilha que reduza os coparticionadores à porção mínima", argumentou. "Em nossa sociedade moderna, o filho único substitui o filho mais velho."

Para o governozero hora esportesNapoleão 3º, presidentezero hora esportes1848 a 1852 e imperadorzero hora esportes1852 a 1870, a questão populacional era um grande problema. De acordo com o entendimento da época, era preciso um crescimento demográfico para aumentar a produção, tanto a agrícola quando a industrial, incipiente.

Santo Agostinho,zero hora esportespinturazero hora esportesAntonio Rodríguez (1636 - 1691)

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Legenda da foto, Santo Agostinho,zero hora esportespinturazero hora esportesAntonio Rodríguez (1636 - 1691)

Clément ressalta que foram diversas tentativaszero hora esportes"higiene pública" e "arranjos institucionais" para que a população da França não decaísse ainda mais. Em seu livro Storia dell'Aborto, a jurista italiana Giulia Galeotti conta que as leis napoleônicas, ao trazer para a esfera civil os registroszero hora esportesnascimento, casamento e óbito, tirando a incumbência das paróquias, possibilitaram um maior controle estatal sobre a realidade demográfica, possibilitando "combater as causas do despovoamento".

Já que havia uma boa relação com o papa, por que não pedir uma ajuda também?

Primeiros cristãos

A condenação ao aborto, embora nunca tivesse aparecidozero hora esportesforma tão contundente como a feita por Pio 9º, é algo coerente à história do catolicismo. Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leitezero hora esportesMoraes, avalia essa postura como "revolucionária" nos primeiros anos do cristianismo.

"Naquele momento, tratava-sezero hora esportesuma religiosidade marginal dentrozero hora esportesum império romano extremamente poderoso", contextualiza. "Continuação cultural do que chamamoszero hora esportessociedade clássica, ou greco-romana, havia ali o regime do patria potestas."

Nesse sentido, todo o poder familiar emanava do pai, da figura masculina. "Ele tinha direito ao infanticídio, praticado, por exemplo, quando nascia uma criança indesejada, com algum tipozero hora esportesdeficiência, ou uma segunda filha mulher. Quase nenhuma família romana na Antiguidade criava duas meninas", comenta o historiador.

É esse pai que também podia autorizar o aborto. "A sociedade greco-romana era uma sociedade abortista. Nesse sentido, podemos dizer que o cristianismo foi revolucionário, porque ousou lutar contra o aborto desde muito cedo", comenta. "O cristianismo tem essa glória: ter defendido desde suas origens o direitozero hora esportestodo ser humano à vida. Isso explica, segundo alguns teóricos, a adesãozero hora esportesmuitas mulheres ao cristianismo [nesse período inicial]. E como essas mulheres ficavam com a responsabilidadezero hora esporteseducar os filhos, acabavam educando-os na fé cristã. Isso contribuiu para que o cristianismo crescesse, se institucionalizasse como religião e se tornasse poderoso."

São Tomászero hora esportesAquino,zero hora esportespinturazero hora esportesGentile da Fabriano

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Legenda da foto, São Tomászero hora esportesAquino,zero hora esportespinturazero hora esportesGentile da Fabriano

"O fatozero hora esportes[os cristãos] não fazerem abortos, ajudou a população cristã a aumentar", concorda Martins.

Então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal croata Franjo Šeper (1905-1981) publicou um documentozero hora esportes1974 lembrando que "a tradição da Igreja sempre considerou a vida humana como algo que deve ser protegido e favorecido, desde o seu início, do mesmo modo que durante as diversas fases do seu desenvolvimento". "Opondo-se aos costumes greco-romanos, a Igreja dos primeiros séculos insistiu na distância que, quanto a este ponto, separa deles os costumes cristãos".

Ele cita o Didaché, um textozero hora esportes16 capítulos, escrito no primeiro século da Era Cristã e que funcionava como uma espéciezero hora esportescatecismo para os primeiros praticantes da então nova religião. "No livro […] diz-se claramente: 'Tu não matarás, mediante o aborto, o fruto do seio; e não farás perecer a criança já nascida'", afirma.

"É uma clara posiçãozero hora esportesum documento cristãozero hora esportesque há uma condenação textual tanto do aborto quanto do infanticídio", comenta Moraes.

Igreja e aborto

Da posição contrária ao aborto até a pecaminização categórica promulgada por Pio 9º, a distância não está somente na penalização radical com excomunhão automática. Há toda uma discussão teológica e filosófica sobre quando,zero hora esportesfato, começaria a vida — discussão que,zero hora esportescerta forma, ainda embasa argumentos pró e contra a interrupção voluntária da gravidez até hoje.

Prolífico autor dos primórdios do cristianismo, Tertuliano (160-220) qualificava o aborto como "homicídio antecipado". "Já é homem aquele que o será. Essa expressão do Tertuliano focalização a motivação da condenação do aborto voluntário nos ensinamentos da patrísticazero hora esportesmaneira geral", frisa Moraes.

Em uma épocazero hora esportesque era difícil determinar o início da gravidez, as discussões teológicas procuravam responderzero hora esportesque momento haveria "a infusão da alma" sobre o feto, ou seja, a "transformação do serzero hora esportesuma pessoa". "[Desde o princípio] havia os que imaginavam que na própria concepção você já tem uma pessoa, recuperando a questão aristotélica do ato e da potência, com a ideiazero hora esportesque uma semente não é uma árvore mas tem o potencial para se tornar uma.

Assim como Tertuliano, os teólogos Basíliozero hora esportesCesareia (329-379) e Gregóriozero hora esportesNazianzo (329-389) defendiam a "animação imediata" — ou seja, que o início do ser humano ocorria na concepção. "Tertuliano argumentava que nós temos tanto corpo quanto a alma sendo acolhidos e elaborados e aperfeiçoados juntos", contextualiza Moraes.

Santo Agostinho (354-430), contudo, trouxe elementos para que essa ideia passasse por revisões — e suas reflexões acabaram embasando um entendimento bastante corrente ao longozero hora esportestoda a Idade Média. Para ele, a alma exigiria uma forma apropriada para ser inserida.

Isso significava que o feto precisaria já estar melhor formado, preparado para receber a alma. Séculos adiante, Tomászero hora esportesAquino (1225-1274) ecoa esse mesmo princípio. "A filosofia escolástica chega a fixar o início da forma humana no quadragésimo dia [de gestação] para os homens e no octagésimo para as mulheres", explica Moraes.

Em seu livro Uma História Não Contada: A História das Ideias Sobre o Aborto na Igreja Católica, a filósofa e teóloga norte-americana Jane Hurst (1948-1972) entende a pecaminização do aborto por conta da questão sexual. Não é a única voz nesse sentido — há pesquisadores que apontam que, no âmago do discurso do cristianismo primitivo estava, na verdade, o fatozero hora esportesque o aborto era praticado para esconder traições. Ou seja: o que estava sendo condenado era o adultério e não a interrupção voluntária da gravidez.

"A Igreja sempre se opôs ao aborto não apenas porque suspeita que se tratazero hora esportesum homicídio — o que continua sendo discutido — mas também porque ele revela um pecado sexual", escreve ela. "A Igreja ensina que todo ato que pretende separar a união sexual da procriação é pecaminoso. […] O aborto realizado voluntariamente indica que os parceiros sexuais não se uniram com a intençãozero hora esportesprocriar."

Hurst defende que, nesse sentido, a gênese da ideia estaria relacionada a "questõeszero hora esportespenitência", procedendo da "função legislativa da Igreja". "Se o aborto está sendo usado para esconder irregularidade sexuais, então é pecado e exige que a pessoa pecadora faça penitência para que seja perdoada desses erros", argumenta a autora.

"Existia, nesse período antigo, amplo acordo quanto ao fatozero hora esporteso aborto ser um pecado quando utilizado para ocultar evidências dos pecadoszero hora esportesfornicação e adultério", aponta. Ela cita,zero hora esportesseu livro, um textozero hora esportesSão Jerônimo (347-420). "Outras pessoas tomam poções para garantir a esterilidade e são culpadas do assassinatozero hora esportesum ser humano ainda não concebido. Outras, quando descobrem que ficaram grávidas através do pecado, abortam usando drogas. Com frequência, elas mesmas morrem e são levadas à presença das autoridades do mundo inferior culpadaszero hora esportestrês crimes: suicídio, adultério contra Cristo e assassinatozero hora esportesuma criatura não nascida", afirmou o religioso.

Essa é a postura da organização Católicas pelo Direitozero hora esportesDecidir, grupo que configura uma voz dissonante à posição oficial atual da Igreja. A direção brasileira do movimento foi procurada pela reportagem e preferiu responder com dois artigos previamente escritos. "Nos primeiros séculos do cristianismo, a preocupação central — da Igreja, como do Estado — era com a constituição do casamento monogâmico como regra para toda a sociedade", afirma,zero hora esportestrechozero hora esportesum dos textos, a socióloga Maria José Rosado, professora da Pontifícia Universidade Católicazero hora esportesSão Paulo (PUC-SP) e presidente da organização.

"No império romano, estabeleceram-se leis que desencorajavam o concubinato. O primeiro concílio do Ocidente, realizado no século 4, antes mesmo da oficialização do cristianismo por Constantino — o Concíliozero hora esportesElvira — estabelece penas religiosas severíssimas para as transgressões à fidelidade conjugal. Tanto a Igreja quanto o Estado impunham penas mais duras para os casoszero hora esportesadultério do que para oszero hora esporteshomicídio", prossegue a socióloga.

"Assim, a punição do aborto, durante os seis primeiros séculos do cristianismo, não era referida,zero hora esportesprimeiro lugar, ao feto cuja vida seria tirada, mas ao adultério que o aborto revelava", argumenta Rosado. "Pode-se pois concluir que para o cristianismo, como para a lei romana, a afirmação do casamento monogâmico como única união legítima, era mais importante como fundamento social do que a proteção da vida."

"O que podemos dizer é que a condenação ao aborto é uma constante no ensinamento moral da Igreja. A partir do século 4, a temática começa a aparecerzero hora esportesconcílios […]. Com o passar do tempo, não poucos autores admitem uma gravidadezero hora esportesculpa. Mas dependezero hora esportesquando esse aborto é feito", diz Moraes.

"A questão do aborto nos documentos da Igreja tem variações significativas, mas o mais importante é a linguagem parazero hora esportescondenação", contextualiza Martins. Sisto 5º (1521-1590),zero hora esportesseu pontificado, reviu a postura medieval e passou a entender que não importava o estágio da gravidez, uma interrupção intencional não devia ser aceita. "Mas seu sucessor, Gregório 14 [(1535-1591)], rejeita essa perspectiva e volta a manter a distinção do aborto, como algo diferente [se praticado] no começo [da gestação]", conta o bioeticista.

Entre idas e vindas, o que predominava até o século 19, conforme ressalta Rosado, era esse entendimentozero hora esportesque "só haveria aborto pecaminoso quando o feto estivesse totalmente formado". E a condenação, nos casoszero hora esportesque havia, era moral e teológica, sem nenhuma sanção como a determinada por Pio 9º.

"[O papa,zero hora esportes1869] declara que o aborto é pecadozero hora esportesqualquer situação ezero hora esportesqualquer momentozero hora esportesque se realize. Pela primeira vez, papa e teólogos coincidem, rechaçando a teoria da 'hominização retardada' para assumir a da 'hominização imediata'", explica a socióloga. "Isto é, a tesezero hora esportesque desde o momento da concepção existe uma pessoa humana e, portanto, atentar contra ela é homicídio."

"Até essa data, essa questão havia sido controvertida na Igreja. Note-se que isso ocorre no mesmo períodozero hora esportesque a Igreja tem necessidade, por razõeszero hora esportespolítica interna e externa,zero hora esportesafirmar o poder papal, através da proclamação do dogma da infalibilidade", contextualiza ela.

Ciência e fé

Joe Biden diantezero hora esportespúlpito

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Legenda da foto, A postura favorável ao direito ao abortozero hora esportesJoe Biden tem criado polêmica entre religiosos americanos

Após a excomunhão para o procurantes abortum, effectu sequuto, a Igreja se manteve firmezero hora esportesseu posicionamento. "Os papas recentes,zero hora esportesparticular João Paulo 2º [(1920-2005)], encaram o aborto como o auge da desumanização dos comportamentos", explica o biólogo e sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP. "A 'cultura da morte' é uma situaçãozero hora esportesque as pessoas são reduzidas a números e engrenagens num sistema socioeconômico que não se preocupa com elas. Assim, cada pessoa pode ser descartada ou substituída quando não interessa ao sistema."

Essa ideia, como pontua Ribeiro Neto, foi chamadazero hora esportes"cultura do descarte" pelo papa Francisco. "O fato da mãe não desejar mais a vida do próprio filho representa o ponto mais alto dessa desumanização, no qual as relações mais vitais deixaramzero hora esportesser significativas."

Ao observar as mudanças históricas da Igreja quanto aos entendimentos, o acadêmico vê uma coerência baseada no patamar científicozero hora esportescada momento. "A doutrina católica segue o conhecimento médico da época", argumenta ele. "O princípio é que toda vida humana é inviolável a partir do momentozero hora esportesque tem uma alma imortal, infundida por Deus."

"Na Idade Média, acreditava-se que o feto só ganhava vida começava a se movimentar. Portanto, não tinha alma [até esse momento]. Com o tempo, concluiu-se que o feto já era uma nova vida, diferente daquela da mãe, a partir da concepção. E a Igreja mudouzero hora esportescronologiazero hora esportesrelação ao aborto", diz Ribeiro Neto. "A mudança foizero hora esportescronologia, nãozero hora esportesprincípio."

Professorzero hora esportesbioética na Universidadezero hora esportesSão Paulo (USP) e membro da Pontifícia Academia para a Vida, Dalton Luizzero hora esportesPaula Ramos avalia a postura medieval como "coerente pelo fatozero hora esportesque naquela época só conseguiam constatar a existência do corpo [no caso, do feto] macroscopicamente observando".

"Elio Sgreccia [(1928-2019), cardeal italiano, presidente da Pontifícia Academia para a Vida] costumava dizer que o que São Tomászero hora esportesAquino não tinha era microscópio, porque o conceito vai sendo constatado microscopicamente a partir do desenvolvimento dessas tecnologias,zero hora esportesobservação,zero hora esportesexames."

Para o bioeticista Martins, se a Igreja sempre condenou o aborto, anteszero hora esportesPio 9º "havia mais espaço para interpretação, para ver quezero hora esportesalguns casos até poderia se recorrer a isso". "Hoje, não mais", pontua. "Mas, do pontozero hora esportesvista moral, é muito importante entender que, na Igreja, a intenção conta muito. A intençãozero hora esportescometer o ato faz parte da maneirazero hora esportesjulgar a moralidade do ato, e isso é fundamental na Igreja."

"Outro elemento é a questão da misericórdia. Apesarzero hora esportesa Igreja ter essa questão definida, há sempre a misericórdia: acolher e respeitar as pessoas que caíram nesse erro", diz ele.

No casozero hora esportesBiden, a polêmica baseia-sezero hora esportesum documento assinado pelo então cardeal Joseph Ratzinger, anteszero hora esportesse tornar papa Bento 16, quando ele ainda era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. "Ele elencava cinco exigências irrenunciáveis para a conduta dos políticos", explica Ribeiro Neto. "O direito à vida; a proteção e promoção da família; a liberdade,zero hora esportesparticular religiosa ezero hora esporteseducação; a economia à serviço da pessoa; e a construção da paz."

"Contudo, os grupos contrários ao aborto, principalmente nos Estados Unidos, frequentemente se atinham apenas à primeira exigência, criando o paradoxozero hora esportescristãos apoiaram políticos corruptos e mal-intencionados só porque esses se declaravam contrários ao aborto", afirma o sociólogo. "Criou-se uma partidarização da questão. Republicanos condenavam o aborto, mas eram coniventes com o aquecimento global, com as guerras e contra a acolhida aos migrantes. Democratas fazem exatamente o contrário."

"Como, na verdade, as cinco exigências são 'irrenunciáveis', a comunidade cristã está se dividindo por questões partidárias,zero hora esportesvezzero hora esportesbuscar a unidade na busca do bem comum. Esse é o panozero hora esportesfundo pelo qual alguns católicos querem uma condenação clara da condutazero hora esportesBiden e o próprio Vaticano tem pedido um esforço para o diálogozero hora esportescomunhão", salienta Ribeiro Neto.

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