Prefeito 'perde' eleição e aulas são suspensascidade com menor IDH do Brasil:
Eles afirmam que, na tentativaeleger o candidato apoiado pelo prefeito, a prefeitura promoveu uma "gastança" na véspera do pleito, ampliando a folha salarialforma irresponsável e esvaziando o caixa do município.
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A derrota, porém, frustrou expectativasreceitas futuras, e agora faltam recursos para salários e o transporte escolar, segundo os moradores e funcionários.
Já o prefeito admite que gastos excepcionais na véspera da eleição afetaram o caixa da prefeitura, mas nega qualquer motivação política (leia mais abaixo).
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A 250 km da capital Belém, Melgaço fica no arquipélago do Marajó e não tem ligação por terra com outros municípios.
As comunidades na zona rural do município são ribeirinhas — vivem principalmente do Bolsa Família e da vendaprodutos da floresta, como o açaí.
A BBC News Brasil esteve no municípiosetembro para produzir um documentário sobre as cidades com maior e menor IDH do Brasil.
O município paraense é o último no ranking nacionalIDH, com a pontuação0,418. No outro extremo do ranking está São Caetano do Sul (SP), com 0,862.
Quanto mais perto1, melhor o IDHum lugar.
Melgaço tem alguns dos piores indicadoreseducação do país. Ali, segundo o Instituto BrasileiroGeografia e Estatística (IBGE), 14,6% das crianças entre 6 e 14 anos estão fora das escolas, e 20% dos habitantes com mais15 anos são analfabetos.
O documentário da BBC retratou vários problemas na educação do município paraense, como escolas sem água corrente, falhas no transporte escolar e cancelamento frequentedias letivos.
Outra grande queixamoradores é sobre a merenda escolar, muitas vezes limitada a suco com bolacha — ou nem isso. Segundo um barqueiro entrevistado no documentário, crianças chegavam a chorarfome no caminhovolta da escola.
"A merenda vinha para sete dias. Se nós tivéssemos 15 dias letivos [no mês], a criança estudava sete dias sem merenda e oito com merenda", relatou.
Sete moradores ou trabalhadores da educaçãodiferentes comunidades ouvidos pela BBC dizem que, após a eleição, o cenário se agravou — especialmente quanto à frequência das aulas.
Uma moradorauma comunidade ribeirinha disse que, desde a eleição, seus dois filhos passam praticamente todos os dias da semanacasa ou a acompanhandoafazeres nas redondezas.
A moradora — que pediu para não ser identificada por temer represálias aos filhos — afirma que os professores enviaram trabalhos escolares para que os alunos ficassem ocupados nos dias sem aulas.
Mas diz que, com tanto tempo livre, as crianças já terminaram as tarefas, e agora ela mesma tenta lhes passar novas atividades para que os filhos não se desmotivem.
"Eles me dizem: 'E agora, mãe? A gente não está indo para a escola, a gente está perdendo muito trabalho [escolar]…' Quem está saindo no prejuízo são os alunos", afirma.
Um professor que também pediu para não ser identificado diz à BBC que as aulas perdidas não serão repostas — ainda mais porque as férias escolares,dezembro, se aproximam.
Ele avalia que, entre o início e o fim deste ano escolar, dificilmente as escolas da região completarão 100 dias letivos, embora a LeiDiretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) exija 200 dias letivos no ensino básico por ano.
"Isso acaba dificultando muito o ensino", diz o professor.
Para ele, nas condições atuais, os estudantes da zona ruralMelgaço não são capazesaprender o que é esperadocada ano letivo.
Muitos podem até estar na série adequada aidade, diz ele, mas apresentam sérias deficiênciasaprendizagem.
Salários atrasados
Professores disseram à BBC que as aulasMelgaço foram suspensas por causa do atraso nos saláriosprofessores e funcionários das escolas.
Eles afirmam que os atrasos começaram no início do semestre, mas que os pagamentos têm sido realizadosprazos ainda mais longos após a eleição.
Os pagamentos referentes a setembro só foram feitos24outubro, segundo o grupo.
Um membro do Sindicato dos TrabalhadoresEducação Pública do Pará (Sintepp) diz que, com os atrasos frequentes, muitos trabalhadores se endividaram e não conseguem ir às escolas, pois não têm dinheiro para combustível e comida.
Ele também não quis ser identificado por medoser demitido. Grande parte dos professoresMelgaço tem contratos temporários.
O sindicalista afirma que muitas vagas nas escolas do município são preenchidas por indicações políticas.
Derrota eleitoral
A interrupção das aulas afeta principalmente a zona rural, embora escolas na zona urbana também tenham fechado por alguns dias por contaatrasos nos pagamentos.
Moradores e professores dizem que o prefeito Tica Viegas (União Brasil) é o responsável pela situação por, segundo eles, ter esvaziado o caixa da prefeitura na tentativaeleger um afilhado político: o ex-secretárioEducaçãoMelgaço Éder Vaz (União Brasil).
Em uma disputa acirrada, Vaz perdeu para um primo do prefeito que concorreu pela oposição, Zé Viegas (MDB). O derrotado recebeu 46,9% dos votos, contra 53,1% do vencedor.
A BBC questionou a SecretariaEducaçãoMelgaço sobre a suspensãoaulas na cidade e as visõesque o atrasosalários se deve a gastosprol da candidatura do ex-secretário.
Não houve resposta até a publicação desta reportagem.
No fimseu segundo mandato na prefeitura, Tica Viegas disse à BBC quefato têm faltado recursos para pagar funcionários e professoresdia.
Mas Viegas negou ter ampliado os gastos para favorecer seu afilhado político e atribuiu o problema a uma regra da legislação eleitoral.
Segundo o prefeito, a prefeitura costuma demitir todos os funcionários temporários das escolasjunho e recontratá-losagosto.
O objetivo, diz ele, é reduzir os gastos com a folha salarialjulho, quando as escolas estãoférias e esses funcionários não são necessários.
Neste ano, porém, o prefeito diz que não foi possível demitir os funcionários temporáriosjunho, pois seria ilegal recontratá-losagosto. Afinal, a legislação eleitoral impede a contrataçãofuncionários temporários a menostrês meses da eleição.
Segundo o prefeito, os gastos imprevistos com saláriosjulho comprometeram um orçamento já bastante apertado.
Questionado se não era possível antever esses gastos — já que a lei que impede contratações a três meses da eleição vigora desde 1997 —, Viega disse que desconhecia a legislação.
Na eleição anterior, quando ele já era prefeito, Viegas disse que não se deparou com o problema porque o país enfrentava a pandemiaCovid e os pagamentos seguiram outros ritos.
Ele disse que está tentando normalizar os pagamentos para que as aulas sejam retomadas o quanto antes.
Fraca arrecadação
Problemascaixa não são novidadeMelgaço.
Segundo o IBGE, o município só arrecada 6% do que gasta. Com uma economia modesta e alta informalidade, a cidade depende quase integralmenterepasses externos — como o FundoParticipaçãoMunicípios (FPM), uma verba que todas as prefeituras recebem da União, mas que só garante serviços mínimos.
'Nem o básico está sendo garantido'
Para Ivan Gontijo, gerentePolíticas Educacionais da ONG Todos pela Educação, Melgaço destoa da maior parte do Brasil, onde o ensino básico foi universalizado e hoje se discute como melhorar a educação.
"SeMelgaço as escolas não estão abrindo e os professores não estão recebendo salários, como falareducaçãoqualidade? Ali nem o básico está sendo garantido", afirma. "É uma violaçãodireitos."
Gontijo diz que, apesar da gravidade do cenário, é difícil responsabilizar judicialmente autoridades que descumpram exigências legais no campo da educação, como a garantiatransporte escolar e a oferta200 dias letivos ao ano.
Para ele, o caminho mais efetivo para sanar os problemas é a intervençãoórgãosfiscalização como o TribunalContas do Municípios do Pará (TCMP) e o Ministério Público do Estado.
Segundo ele, se verificarem que a prefeitura violou regras fiscais ou eleitorais — ao suspender pagamentos irregularmente ou gastar recursos com fins eleitorais, por exemplo —, os órgãos podem pedir à Justiça a cassaçãomandatos e direitos políticos dos responsáveis.
Gontijo diz que a justificativa do prefeito para o atraso nos pagamentos — a impossibilidadedemitir funcionários temporários por causa da legislação eleitoral — revela o “amadorismo da gestão”.
Segundo ele, muitas prefeituras contratam funcionáriosescolasforma temporária para garantir o apoio político do grupo.
"Elas dizem: 'se você não apoiar o prefeito, não vamos renovar seu contrato'. É uma artimanha muito ruim,alto fisiologismo, e que politiza a escola", critica.
A BBC questionou o TCMP sobre os problemas citados nesta reportagem, mas o órgão não se manifestou até a publicação desta reportagem.
O Ministério Público do Estado do Pará, porvez, disse ter "expedido ofício solicitando esclarecimentos" ao município sobre a suspensão das aulas.
A nota é assinada pelo promotorJustiçaMelgaço, Paulo Ângelo Nogueira Furtado.
A BBC então enviou novo questionamento ao promotor, perguntando se ele já realizou outras investigações sobre cancelamentosdias letivos, más condiçõesescolas e a qualidade da merendaMelgaço.
Não houve resposta até a publicação deste texto.
Ivan Gontijo, da ONG Todos pela Educação, diz que os problemas da educaçãoMelgaço são agravados pelos altos custostransporte e alimentaçãoáreas remotas da Amazônia.
Ele afirma que o governo federal transfere recursos para a merenda e o transporte escolartodos os municípios brasileiros, mas que os valores são calculados com base no númeroalunos e não levamconta diferenças regionais.
"O valor da merenda por aluno que vai para São Paulo é o mesmo que vai para Melgaço, masMelgaço o custo é bem mais elevado por questõeslogística", ele diz.
Uma solução que estádiscussão, segundo Gontijo, é mudar o cálculo para municípios amazônicos, para que recebam mais recursos.
Gontijo defende ainda que a SecretariaEducação do Pará também se engaje na solução dos problemas educacionaisMelgaço, ainda que escolas com mais dificuldades sejam municipais.
"O Estado não manda nos municípios, mas tem um papel importantecoordenação no território", diz Gontijo.
Questionada sobre a situaçãoMelgaço, a SecretariaEducação do Pará não se manifestou até a publicação desta reportagem.
O Ministério da Educação também foi procurado, mas disse que as questões deveriam ser encaminhadas ao Ministério Público do Pará e ao TribunalContas do Município.
Gontijo afirma ainda que as escolas estaduais do Pará podem servirexemplo às escolas municipaisMelgaço no quesito merenda.
Segundo Gontijo, as escolas estaduais paraenses têm investido na "logística local e inseriram açaí nas refeições dos estudantes". Amplamente disponível na região e parte da dieta dos moradores, o fruto melhorou a qualidade da alimentação dos alunos, diz ele.
"Se o aluno não chega na escola e não se alimenta direito, o ensino não funciona. Nesse cenário, falarcurrículo, material didático ou metodologias inovadoras não faz nem sentido", diz.