De onde virá dinheiro que governo Lula precisa para arcabouço fiscal funcionar?:

Crédito, Reuters

Analistas consideram que o bom andamento da propostaarcabouço fiscal no Legislativo é uma vitória do ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), que articulou apoio com as lideranças parlamentares.

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É ele que terá que liderar agora também a missão considerada mais difícil por especialistascontas públicas: implementar as novas regras sem lançar mãomanobras fiscais, algo que ficou conhecido como “pedaladas” no governoDilma Rousseff (PT) e “furos no teto” no governoJair Bolsonaro (PL).

Para alcançar esse objetivo, terá que viabilizar um forte aumentoreceitas capazcobrir a expansão dos gastos acima da inflação, como autoriza o arcabouço.

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São medidas impopulares, como mais arrecadaçãoimpostos ou retiradabenefícios fiscais (isenção ou descontotributos para alguns setores), que costumam gerar resistência na sociedade e no Congresso.

“Já quero antecipar, está lá na (proposta de) LeiDiretrizes Orçamentárias (de 2024 enviada ao Congresso): para que o arcabouço dê certo, nós vamos precisarR$ 150 bilhõesincrementoreceita. Uma parte a Fazenda já anunciou e outra já sabeonde vai tirar”, reconheceu a própria ministra do Planejamento, Simone Tebet (MDB), durante audiência recente na Câmara.

Tebet não detalhou, no entanto, quanto desses R$ 150 bilhões ainda falta o governo arranjar.

Mas a ministra repetiu o que Haddad tem afirmado: a ideia é evitar novos impostos e tenta conseguir isso combatendo o que chama“jabutis tributários” — benefícios fiscais para alguns setores que o governo considera ineficientes e injustos.

A Fazenda já obteve duas vitórias consideradas importantes para reforçar os cofres públicos.

Uma foi uma medida provisória aprovada pelo Congressomaio que muda o cálculo do imposto cobrado sobre empresas brasileiras com filiais no exterior, evitando que elas continuem adotando manobras fiscais que, na prática, reduzem o valor a pagar.

A outra foi uma decisão do Superior TribunalJustiça que passou a proibir um certo tipo de descontoimpostos federais que incidem sobre os ganhos das empresas (IRPJ e CSLL).

O problema, dizem os especialistas entrevistados pela BBC News Brasil, é que a Receita Federal tem projetado arrecadar valores altos com essas medidas já anunciadas, enquanto projeçõesfora do governo apontam ganhos mais modestos.

Ou seja, talvez as ações extras que o governo precisa adotar sejam ainda maiores do que vem sendo avaliado pela Fazenda, segundo essas análises.

Por exemplo, a Instituição Fiscal Independe (IFI), órgão ligado ao Senado, projeta que o governo deve arrecadar R$ 32,5 bilhões no ano que vem com essas duas medidas — a mudança da cobrança sobre empresas com filiais no exterior (R$ 20 bilhões) e o fim do desconto sobre IRPJ e CSLL (R$ 12,5 bilhões).

Já a Fazenda anunciou expectativas bem maiores,R$ 70 bilhões com a primeira medida eR$ 47 bilhões com a segunda,um totalR$ 117 bilhões.

Devido a essas diferenças, a IFI calcula que o governo ainda precisa arranjar mais R$ 105,5 bilhõesreceitas2024 para cumprir a promessazerar o rombo nas contas públicas no próximo ano.

“O governo tem anunciado (medidas para elevar as receitas). A questão é que o que foi anunciado até agora ainda não é suficiente para alcançar a meta que ele mesmo propõe. Então, é possível que outras medidas venham a ser anunciadas ainda nos próximos meses”, ressalta a economista Vilma Pinto, diretora da IFI.

Crédito, Agência Senado

Legenda da foto, A expectativaVilma Pinto, da IFI, é que a Haddad anuncie novas medidas para aumentar receitas

O tamanho do rombo

A previsão do governo, divulgadamaio, é que o rombo deste ano seráR$ 136,2 bilhões (1,3% do PIB), mas a gestão Haddad ainda estuda medidas para tentar reduzir esse déficit primário para menosR$ 100 bilhões (1% do PIB).

As despesas foram impulsionadas acima do tetogastos, com uma autorização dada pelo Congresso no final2022 para viabilizar aumentosdespesascunho social nesse ano, como a volta do programa Bolsa Família com benefícios mais altos.

A promessa do governo é zerar o déficit2024 e entregar saldos positivos crescentes nos dois últimos anos do governo (0,5% do PIB2025 e 1%2026).

O objetivo dessa economia — chamadasuperavit primário — é pagar a dívida pública, hoje76% do PIB e com perspectivaalta, segundo projeções do mercado monitoradas pelo Banco Central (BC).

Economistas que defendem um endividamento público menor dizem que isso traz resultados positivos para o crescimento, como reduçãoinflação e juros no país.

Hoje, porém, há ceticismo sobre o cumprimento das promessas do governo.

O Boletim Focus, levantamento realizado pelo Banco Central semanalmente, mostra que as projeções medianasanalistasmercado éque haverá déficittodos os anos do governo Lula.

A expectativa éque o rombo caia gradualmente e chegue a 0,20% do PIB2026, segundo o levantamento mais recente,30junho.

Segundo Bráulio Borges, economista da LCA Consultores e pesquisador da Fundação Getulio Vargas (FGV), esse ceticismo reflete a avaliação dos analistasque será difícil o governo levantar todas as receitas que precisa para entregar os resultados prometidos.

“De fato, o maior desafio é o cumprimento da promessaajuste fiscal (gastar menos do que arrecada) que está embutida no arcabouço fiscal (proposto)”, diz Borges.

“Na prática, para entregar as metas, o ajuste fiscal que o governo está sinalizando depende praticamente 100%aumentoreceita. E, quando a gente falaaumentoreceita, é aumentocarga tributária como proporção do PIB. Só para deixar claro.”

Sem 'boom'commodities à vista

Crédito, Reuters

Legenda da foto, Alta expressiva do preço das commodites que alavancou arrecadação do passado não deve se repetir agora, dizem analistas

Simulações feitas pela IFI dão uma ideia do desafio. O órgão testou seis cenários, com diferentes taxascrescimento das receitas primárias (aquelas que estarão sujeitas às regras do novo arcabouço).

Os resultados são menos pessimistas que as projeçõesmercado e,geral, apontam para pequenos superavits primários a partir2025.

Mas apenas no cenário mais otimista,que a arrecadação tem uma alta expressiva6,5% ao ano,média, o governo conseguiria cumprir as metas prometidas para 2025 e 2026.

Essa foi a taxacrescimento médio das receitas entre 2000 a 2009, quando a arrecadação foi puxada pela forte valorizaçãocommodities produzidas no Brasil, como petróleo, minério e soja.

De 2010 a 2019, a taxa foisó 2%. Nos três anos seguintes, a evolução das receitas entrou numa montanha-russa, devido aos efeitos da pandemiacovid-19 e da guerra na Ucrânia (que elevou o preçoalgumas commodities): houve queda8,4%2020, seguidaalta12,2%2021 e6,5%2022.

A expectativa da IFI, porém, é que a evolução das receitas primárias agora se acomodemníveis mais baixos.

Um cenário visto como mais realista pela instituição seriauma alta da média anual2,6%, seguindo o ritmocrescimento da economia projetado para os próximos anos, o que resultariaum superavit primárioapenas 0,2% do PIB2025 e0,4% do PIB2026 —ambos os casos, menos da metade do que projeta o governo.

“(As metas primárias anunciadas pelo governo) não me parecem factíveis, pelo contrário. Dado o cenário internacional, com recessão na Europa, esperada recessão nos Estados Unidos e perda estruturalfôlego da economia chinesa, parece difícil ver cenário otimista para as commodities, lastroparte fundamental do desempenho da arrecadação”, avalia também o economista Gabriel LealBarros, sócio da Ryo Asset e ex-diretor da IFI.

“As metas fiscais são críveis se, e somente se, houver ganhos extraordináriosreceita por fontes não mapeadas, algo inesperado.”

Arcabouço fiscal: nova regra prevê punições

A dificuldadeentregar as metasresultado primário ocorre mesmo com a previsãoregras mais flexíveis no novo marco fiscal, devido à adoçãouma banda0,25 ponto percentual para cumprir os objetivos propostos.

Mas como isso funcionará, na prática?

A meta do governo para 2024 é zerar o rombo (o equivalente a uma meta primária0% do PIB). Mas, caso a proposta seja aprovada, haverá um intervalo mais flexível,0,25 ponto percentual para cima ou para baixo.

Ou seja, na prática, o resultado primário poderia ficar entre um rombo0,25% do PIB e um saldo positivo0,25%.

E o que acontece se esse resultado não for alcançado? A Câmara dos Deputados alterou a proposta do governo para inserir algumas puniçõescasonão cumprimento da meta, mudanças mantidas pelo Senado.

Dessa forma, caso a metaum ano não seja cumprida, no ano seguinte uma sérieaumentodespesas ficam bloqueados, como a “concessão ou ampliaçãoincentivo ou benefícionatureza tributária” ou a “criaçãocargo, emprego ou função que implique aumentodespesa”.

E, se houver dois anos seguidosdescumprimento das metas, essa listaproibições aumenta, não sendo permitidas também a “realizaçãoconcurso público” ou “criaçãodespesa obrigatória”, entre outras medidas.

Além disso, o tetogastos é rebaixado já com o primeiro anonão cumprimento da meta.

Mas como exatamente o novo limitegastos é calculado pela nova regra?

A proposta enviada pela Fazenda — e que caminha para ser aprovada no Congresso — prevê que o teto para o crescimento das despesas vai sempre ficarum intervalo entre 0,6% e 2,5% acima da inflação.

A regra básica é que o crescimento da despesa fique limitado a 70% da expansão da receita. Ou seja, se a arrecadação do governo subir 2%, por exemplo, a despesa poderia crescer até 1,4%.

No entanto, mesmo que a receita tenha um crescimento muito baixo ou o governo tenha perdaarrecadaçãodeterminado ano, ainda assim fica garantido ao menos 0,6%expansão da despesa acima da inflação.

Por outro lado, mesmo que a arrecadação tenha uma alta mais expressiva, a expansão da despesa ficará limitada ao teto2,5%.

No entanto, se a metaprimário não for cumpridaum ano, o cálculo do teto fica limitado a 50% do crescimento das receitas,vez70%, na próxima propostaorçamento a ser enviada ao Congresso.

Apesar das dificuldades para bombar as receitas, nota Bráulio Borges, da FGV, essas punições vão incentivar o governo a se esforçar para cumprir as metas fiscais, principalmente2024 e 2025, com objetivoevitar ter que cortar gastos2026, ano eleitoral.

'Regra é factível', elogia especialista

Ex-secretárioFazenda do EstadoSão Paulo e economista-chefe da Warren Rena, Felipe Salto tem uma visão mais otimista do novo marco fiscal.

Ele concorda que será difícil cumprir os resultados primários sem aumento expressivoreceita, mas considera positivo a própria regra trazer gatilhos para frear o aumentogastos caso as metas não sejam descumpridas.

Salto, que foi um crítico da rigidez do tetogastos desde seu início, acredita que a flexibilidade do novo marco fiscal torna a regra mais factível que o modelo atual e vai contribuir para estabilizar o crescimento das despesas do governorelação ao PIB.

“Sem um compromisso efetivo deste e dos próximos governos com a responsabilidade fiscal, sob o novo arcabouço, ele poderá simplesmente não produzir uma melhora expressiva do quadro fiscal. Por outro lado, o riscose tornar uma regra impossívelser cumprida (como ocorreu com o TetoGatos), este, a meu ver, está afastado”, disse Salto.

“Por mais que se possa criticar o arcabouço por não ser duro o suficiente, estou na ponta dos que, nesta temática, enxergam o copo meio cheio. Já acompanho esse assunto desde 2008 e acho que há uma coisa que nós, especialistascontas públicas, temoscompreender: a Constituição1988 não combina com ajuste fiscal draconiano. É ajuste paulatino.”