‘Como descobri que o regimeFidel Castro conservou o corpo do meu pai por 18 anos':

Janet Ray

Crédito, Lioman Lima/BBC Mundo

Legenda da foto, Janet Ray buscou seu pai durante 18 anos, até descobrir que governoCuba conservava o corpo deleum necrotério

Das centenaspessoas que morreram tentando derrubar Fidel Castro na invasão da Baía dos Porcos, ele foi o único cujos restos mortais retornaram aos Estados Unidos para ser enterrado.

Ao contrário do que aconteceu no Vietnã, ou mesmo na Coreia do Norte, Washington nunca reivindicou os corpos dos soldados que enviou a Cuba, muitos dos quais acabaramvalas comuns ou foram jogadospântanos do sul da ilha caribenha.

Ray também foi o único dos invasores mortos que, por alguma estranha razão, o governo Castro nunca deixou "apodrecer": ele decidiu manter seu cadáver intacto, mesmo que apagões e faltaverba sufocassem o necrotério do InstitutoMedicina LegalHavana.

"O cadávermeu pai era uma espécietroféu para Fidel Castro. Como os EUA negaram por décadas que haviam organizado a operação da Baía dos Porcos, Cuba encontrou nele, que era americano, a prova quea invasão foi orquestrada aqui", relata a filha do militar mortoentrevista à BBC News Mundo (serviço da BBCespanhol).

Cerimônia fúnebreThomas Ray

Crédito, Arquivo pessoalJanet Ray

Legenda da foto, CorpoThomas Ray foi devolvido aos EUA e enterrado com honras militaresdezembro1979

Por maisquatro décadas, a CIA (agênciainteligência americana) negouparticipação na tentativa frustradaderrubar o regime castrista.

A versão oficial dos Estados Unidos afirmava que se tratavaum grupocubanos ricos que, a partir do sul da Flórida, tentaram libertar o país da ameaça comunista da ainda recente Revolução Cubana.

Reconhecer que Thomas Ray, piloto respeitado da Força Nacional Aérea no Alabama, era um dos seus seria não apenas uma admissãoculpa pela invasão, mas também da derrota vergonhosa.

"Fidel sempre soube que ele era americano", disse Tomás Ten Acosta, pesquisador do InstitutoHistóriaCuba e guerrilheiro da Revolução Cubana, à BBC News Mundo. "O piloto ianque foi a prova direta da participação dos Estados Unidos."

'Não me lembro da voz do meu pai'

Não me lembro da voz do meu pai.

Eu me lembro do cheiro dele, me lembro dos gestos que fazia quando comia, como ele olhava para mim... mas não comovoz soava. Por mais que tentasse, não me lembrocomo era.

Eu tinha 6 anos quando ele morreu.

Eu nunca consegui esquecer aquele dia: eu estavaum recreio na escola, do outro lado da rua onde meus avós moravam no Alabama. Vi um carro escuro e brilhante que paroufrente à casa e três homensterno escuro saíram.

Janet Ray

Crédito, Arquivo pessoalJanet Ray

Legenda da foto, Janet Ray tinha seis anos quando seu pai morreu na tentativainvasão

Quando chegueicasa mais tarde, todo mundo parecia estranho.

Saí para brincar e minha mãe me disse para não sair, porque tínhamos algo para conversar.

Pouco depois me disse: aqueles homens vieram informá-la que meu pai havia morrido, que ele havia se afogado: um aviãocarga no qual ele estava com outros três pilotos havia caído e eles não conseguiram localizar seus corpos.

Disseram à minha mãe para contar à família, porque logo as notícias apareceriam na imprensa e nós deveríamos estar preparados.

Kennedy

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, GovernoKennedy negou qualquer ligação com a operação frustrada

No dia seguinte surgiram as primeiras reportagens, mas ninguémminha casa conseguia entender: diziam que meu pai havia morrido trabalhando para cubanos endinheiradosuma invasãoCuba.

Disseram que era um mercenário. Inclusive colocaram uma fotomeu pai com uma "confissão": "Fiz isso para ganhar bastante dinheiro".

Minha família sabia que isso não era verdade. Meu pai não faria algo assim por dinheiro. Era um militar honrado.

Muitos anos depois, passei a ver essas notícias como se eles dissessem: "Vamos caluniar este homem para limparmos nossa barra."

Não havia qualquer sinalsimpatia por meu pai.

Thomas Ray

Crédito, Arquivo pessoalJanet Ray

Legenda da foto, Thomas Ray era piloto da Força Aérea americana

A partir daquele momento, mesmo que inocentemente, ficou claro para mim que eles haviam quebrado o códigolealdade com meu pai. Mas eu não tinha o direitofazer o mesmo.

Acho que foi ali que começou minha luta contra Fidel Castro e contra meu próprio governo pela memóriaPete Ray.

Foi assim que comecei uma missão que duraria 18 anos e sete meses: achar a verdade, trazer seus restos mortais e garantir que ele fosse honradoseu país.

Estratégia da CIA

Em 15abril1961, ao amanhecer, um "enxame"aviões cruzou o céu ainda escuroHavana.

A linhafrente, formada por bombardeiros saídos da Nicarágua, começou a lançar explosivos sobre aeroportos militares e pontos estratégicos da capital e da cidadeSantiagoCuba.

Enquanto isso, barcos com maismil cubanos, com pouco treinamento, mas bastante motivação para derrotar Castro, seguiam pelas águas do Caribe.

Castro e outros guerrilheiros

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, TropasCastro conseguiram derrotar tentativainvasãomenos65 horas

A invasão, orquestrada pela CIA durante o governo do presidente Dwight D. Eisenhower, pretendia tomar uma cidade na costa sulCuba, criar um governotransição e promover uma guerraguerrilha que se moveria lenta, masforma esmagadora, até os últimos redutosCastro.

O ataque, segundo documentos que deixaramser sigilosos1998, deveria parecer que foi organizado apenas por cubanos insatisfeitos que se exilaram no sul da Flórida.

Um contingentereforços militares dos Estados Unidos os apoiaria assim que a invasão começasse: e disseram-lhes que não havia possibilidadederrota.

Mas no último minuto, John F. Kennedy, um jovem democrata que herdou com relutância o planoseu antecessor republicano, se arrependeu no último minuto e não quis que seus militares participassem desses planos.

Cuba

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Kennedy retirouúltima hora o apoio militar aos anticastristas

Das centenasfuzileiros navais e tropas dos EUA que estavam programadas para participar da invasão, apenas quatro pilotos e dois aviões decolaram para Cuba naquela manhã19abril.

Nunca se soube por quefato eles voaram.

Horas antes, Kennedy enviou para o Exército ordens para não ajudar os anti-castristas. Assim, os últimos invasores foram derrotados sem muito esforço nos pântanos repletosmosquitos e jacarés no sulMatanzas.

Os dois aviões foram abatidos: um caiu no mar; o outro, pilotado por Pete Ray e Leo Baker, aterrissouemergência perto da Austrália Central, no oesteCuba.

Eles sobreviveram.

Pelo menos à queda do avião.

'Você sabe que não precisa ir, Pete?'

Acampamento Happy Valley, Porto Cabezas, Nicarágua. 18abril1961

Antesir dormir, o engenheirorádio Bobby Whitley saiu uma última vez para checar os aviões que decolariam no dia seguintedireção a Cuba.

Aviões

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, As tropas anticastristas usaram aviões com a bandeiraCuba para despistar os soldadosFidel

Segundo contaria anos depois, ele se encontrou com Pete Ray encostado ao ladoum B-26.

- Você sabe que não precisa ir, Pete?

O colega assentiu.

- Você sabe que provavelmente não vai voltar?

- Eu sei, Bobby, mas só porque meu presidente decidiu esquecer esses caras não me dá o direitofazer o mesmo. Não posso fazer isso.

'Esforço para capturá-los vivos'

"O comandante Fernández Mell, que liderou a operaçãobusca, fez o máximoesforço para capturá-los vivos. Não foi possível. Um dos pilotos descobertos, escondido perto da pequena pista do centro, disparou seu revólver curto38 canos, sendo morto imediatamente por um tirofuzil. O outro, quando descoberto, tentou lançar uma granadamão, morrendo instantaneamente devido a vários impactos no peito e no olho direito. O nome deste último era Thomas Willard Ray, o mesmo que 18 anos depois seria oficialmente reivindicado pelo governo dos Estados Unidos a pedidoseus parentes. O outro piloto foi chamado Frank Leo Baker."

(Do artigo Praia Girón, As operações aéreas da CIA,José M. Miyar Barruecos. Revista Verde Olivo, 20 d abril1980, pp: 26-38)

Brancoolhos azuis

"O outro, Leo Baker, não foi conservado porque se pensava que era cubano, por ser mulato,pele escura. Mas sobre ele (Ray) não havia dúvidaque era americano, por ser bastante branco,olhos azuis, alto. Então, acredita-se que foi por ordem do comandante que se decidiu congelar seu corpo".

(Tomás Diez Acosta, pesquisador do InstitutoHistóriaCuba e combatente da Revolução Cubana).

Em buscapistas

A medida que fui crescendo, fiquei obcecadaprocurar qualquer informação que pudesse me levar a meu pai: tirei papéis do lixo que minha mãe jogou fora, fui a bibliotecas, li arquivos, documentos, livros, tudo o que poderia me dar alguma pista.

Lembro que no anoque John Kennedy foi morto, minha mãe me perguntou: o que você quer no Natal?

Pedi um gravador, que coloquei embaixo do sofá para ativar com uma mola quando eles vieram visitar minha mãe e nos tiraram da sala.

Quando cresci, comecei a contatar a Força Aérea no Alabama e outras pessoas que conheciam meu pai. A maioria deles não falou comigo, mas alguém finalmente me disse: "Ah, ele caiuCuba quando foi à Baía dos Porcos".

Isso foi como uma primeira pista, uma dicaque eles sabiam outra coisa.

familia

Crédito, Arquivo pessoalJanet Ray

Legenda da foto, Filha diz não se recordar da vozseu pai

Na televisão, algum tempo depois, ouvi dizer que Castro libertaria alguns prisioneiros que capturaram na Baía dos Porcos. Quando voltaram para os Estados Unidos, pensei que meu pai também estaria entre eles.

Lembro-meassistir à TV olhando para ver se eu via o rosto dele no grupohomens que Kennedy recebeu na Flórida. Fiquei rente à tela tentando encontrar o rosto dele entre osoutros.

Mas papai nunca chegou.

Quando eu tinha 15 anos,1970, comecei a escrever cartas mensais para Fidel Castro para perguntar sobre meu pai. Escrevi mais200 cartas por nove anos.

Eu nunca recebi uma resposta.

Nas fériasverão, quando eu estava na faculdade, viajei com meus amigos para Miami.

Quando eles foram à praia, fui a Little Havana (bairro históricocubanos da cidade)buscapistas sobre pessoas que conheceram meu pai.

Little Havana

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Janet Ray fez diversas viagens a Miamibuscainformações sobre seu pai

Mas ninguém queria falar comigo. A única coisa que eu consegui foi alguém me dizer que ele havia sido um bom piloto.

Eu nunca entendi por que tanto segredo, por que meu governo fez o que foi possível para que eu não soubesse onde meu pai estava.

Sabia queMiami eles tinham informações, que sabiam alguma coisa. Então, eu continuava voltando ali.

Foiuma dessas viagens que alguém me disse que havia rumoresqueum necrotérioHavana havia um corpoamericano, que havia um cadáver e fotografias dele feitas apósmorte.

Heroísmo e napalm

- Você enxerga seu pai como um herói, mas como avalia o fatoque ele invadiu um país estrangeiro, o bombardeou e até lançou bombaNapalm?

- Acredito que, no final, meu pai cumpriu seu dever como militar, a serviçoseu país.

O envelope

Em uma certa manhã,abril1979, no 18º aniversário do desaparecimentoseu pai, Janet Ray ouviu baterem à porta da casaque morava, na base aéreaHahn, na Alemanha.

Ela se mudou para lá anos antes depoisse casar com um piloto militar.

Quando abriu a porta, encontrou um envelopePeter Wyden, jornalista com quem havia falado meses antes e que estava escrevendo um livro sobre a invasão da Baía dos Porcos.

Janet caminhou até a rua, procurando a luz mais próxima para ver o que havia dentro.

MonumentoMiami

Crédito, AFP

Legenda da foto, HomenagemMiami aos mortos na invasão à Baía dos Porcos

Abriu o pacote numa misturamedo e dúvida.

"Lembro-meentrarcasa e ligar para um amigo. Pedi que ele me levasse com urgência ao aeroporto. Quando chegamos, o último voo para os Estados Unidos estava cheio. Pedi para falar com o piloto e implorei que ele me levassevolta para casa, que meu pai também era piloto, que ele morreu na Baía dos Porcos e que seu corpo estavaCuba."

"Como não havia espaço, os dois pilotos concordaramme levar com eles emcabine. Viajei com apenas US$ 10 no bolso".

Carregava o envelope que havia recebido à noite.

Eles eram fotosseu pai morto.

Como obter o corpovolta

Os sete meses seguintes foram decisivos: por caminhos distintos, Janet Ray tentou se comunicar com o governoCuba.

Por meioum primo jornalista esua avó, passou a procurar a ajudapolíticos locais.

"Era como estar entre dois incêndios: por um lado, o governo cubano sempre me dava novas condições para me dar o corpo, que eu teria que pagar, que eu teria que ir, que eu teria que dizer isso ou aquilo".

"Por outro lado, a CIA me negava todas as informações. Eles não queriam me dar as impressões digitais do meu pai. Eu tive que encontrar registrossua arcada dentária para que o corpo pudesse ser identificado."

Janet Ray

Crédito, Arquivo pessoalJanet Ray

Legenda da foto, Janet Ray (dir.), com primo e a avó, fez várias campanhas para obter informações sobre o pai

Finalmente, análises independentesCuba e do FBI (polícia federal americana) com impressões digitais e arcada dentária corroboraram a identidade.

O homem que estava no necrotério do InstitutoMedicina LegalHavana por 18 anos era Thomas Ray.

Em meio a esforços do governo do democrata Jimmy Carter, o corpo só seria devolvido a seus familiares5dezembro1979.

O governo cubano enviou o corpo com uma contamaisUS$ 30 mil: as "despesas com a conservação do corpo" por tanto tempo.

Janet Ray
Legenda da foto, Janet Ray reuniu durante 18 anos recortesjornais, mapas, depoimentos e documentosbuscapistas

Janet Ray nunca acreditou na versão que recebeu e afirma que seu pai foi capturado, torturado e baleado na cabeça à queima-roupa, algo que Havana nega.

"Thomas Willard Ray, conhecido como 'Pete', voou para Cuba para atacar um país estrangeiro. Ele nunca foi preso, nunca foi tratado por nenhum médico e sefamília deveria agradecer por alguma coisa, é que, diante da atitude desumana do governo dos Estados Unidos, as autoridades cubanas preservaram e protegeram seu corpo, para quealgum momento ele pudesse ser entregue a seus parentes", escreveu o portal oficial Cubadebate,2004.

Dois anos depois, Janet Ray venceu uma ação contra Fidel CastroUS$ 23,9 milhõesum tribunalMiami pela "morte ilícita"seu pai e recebeu o dinheiro dos fundos congelados do governoCuba no início da Revolução liderada por Castro.

O governo cubano renegou o julgamento e o chamou"luxúria" e "buscadinheiro" pela filha do piloto.

A BBC News Mundo pediu a versão atual das autoridades da ilha sobre o caso, mas não obteve resposta.

'Ninguém me impediria'ver meu pai

Quando trouxeramvolta o corpomeu pai, eu estava grávida e me sentia muito mal naquele dia.

Estava resfriada ou algo assim. Minha família decidiu que não me deixariam ver o cadáver. Mas naquele momento, era algo que ninguém me impediriafazer.

Janet Ray

Crédito, Arquivo pessoalJanet Ray

Legenda da foto, Janet Ray estava grávida quando o corposeu pai foi levadovolta aos EUA

Eu sabia que teria que abrir mão da imagemmeu pai que tinha desde a infância e vê-lo dessa maneira. Eu devia isso a ele.

Além disso, a essa altura, tantas pessoas mentiram para mim, tantas pessoas foram desonestas comigo, que se eu não tivesse visto pessoalmente, não teria acreditado que era ele.

Eu entrei e vi a boca dele estava aberta. Vi os dentes que haviam se partido quando ele era jovemum jogofutebol, as feridasquando ele morreu. Eu não tinha dúvidaque era ele, que meu pai estava pertomim novamente.

Eles finalmente vestiram um uniforme militar. Ele tinha ido a Cubaroupas civis, para que não pudessem identificá-lo como integrante das Forças Armadas dos Estados Unidos.

Escrevi uma longa carta para ele quando voltei da Alemanha e a coloquei no bolso, sobre seu coração.

Eu disse: 'Quero que você saiba que sempre preciseivocê e que, se tivesse que procurá-lo novamente por mais 18 anos, faria tudonovo, porque você me deu tanto que me ensinou o verdadeiro significado da liberdade. Sempre te amarei".

XII

Em 1974, a CIA entregou a Cruz da Inteligência,distinção máxima, para Thomas Ray. Sua família só soube disso muitos anos depois.

Carta da CIA

Crédito, Arquivo pessoalJanet Ray

Legenda da foto, Em 1994, mais30 anos depois da invasão, a CIA continuou negando participação

Em 1994, Janet Ray escreveu à agênciainteligência americana depoisdescobrir que uma das estrelas na entrada do Pentágono (em homenagem aos militares mortosserviço) era dedicada ao seu pai. A CIA afirmou que a informação era verdadeira, mas no casoPete Ray, tratava-seuma "exceção".

A CIA só reconheceriaparticipação na invasão da Baía dos Porcos, e que Thomas Ray era um dos seus,1998.

Línea

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