O que esperar da política externa do governo Lula:

LulacampanhaSão Gonçalo

Crédito, Getty Images

Mas agora, no terceiro mandatoLula, segundo analistas consultados pela BBC News Brasil, o caminho do presidente eleito provavelmente será mais difícil — e repetir algumas das conquistas12 anos atrás pode ser uma tarefa árduaum contexto internacional totalmente distinto.

"Lula não vai conseguir repetir a mesma política externa que fez2003, mas pode tentar recuperar reconhecimento internacional do Brasil após o governo[Jair] Bolsonaro", diz Guilherme Casarões, professorRelações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

O cientista político ressalta que "reconhecimento internacional é diferenteestatura" no cenário global.

"O contextohoje é fundamentalmente diferente do2003. Naquela época havia um grande entusiasmo com a globalização, que sofreu vários reveses tantotermos culturais, quanto políticos e econômicos desde então."

"Outra diferença importante é que o mundoque Brasil, Rússia, Índia e China se posicionavam como países emergentes — não sótermos econômicos mas também geopolíticos —, não existe mais. Temos agora uma ordem internacional articuladatornoChina e Estados Unidos", explica Casarões.

Para LeticiaAbreu Pinheiro, professora do InstitutoEstudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do RioJaneiro (IESP-UERJ), também vivemosum mundo "completamente diferente"termoseconomia internacional.

"Não somente pelo tão comentado boom das commodities ter acabado, mas porque ainda estamosum momentoguerra na Ucrânia, com um impacto muito negativo sobre a economia dos países europeus — que certamente reverbera no mundo todo e, portanto, no Brasil", diz.

Mas segundo os analistas, apesar das condições distintas, é possível prever que temas como meio ambiente, direitos humanos e cooperação na América do Sul ganhem mais relevância nos próximos quatro anos.

Confira a seguir alguns dos principais pontos da política externa do futuro governo Lula, segundo seu planogoverno e a análiseespecialistas no tema.

Cooperação e protagonismo

Em seu planogoverno, Lula destaca a intenção"recuperar a política externa ativa e altiva que nos alçou à condiçãoprotagonista global".

"Nas minhas viagens internacionais, e nos contatos que tenho mantido com líderesdiversos países, o que mais escuto é que o mundo sente saudade do Brasil. Saudade daquele Brasil soberano, que falavaigual para igual com os países mais ricos e poderosos. E que ao mesmo tempo contribuía para o desenvolvimento dos países mais pobres", disse ainda Lulaseu primeiro discurso após a vitória nas eleições.

Lula e aliadosdiscurso após a vitória

Crédito, Reuters

Legenda da foto, Lula e aliadosdiscurso após a vitória

A proposta parte do pressupostoque o país perdeu parteseu protagonismo e tradiçãocooperaçãopolítica externa desde o fim do governo do PT,especial durante os quatro anosmandatoJair Bolsonaro (PL).

"Podemos esperar uma política externa soberana, pragmática e realista para o governo Lula,convergência com a demanda do povo brasileiro", diz Hussein Kalout, pesquisador da UniversidadeHarvard que colaborou informalmente com a campanha do ex-presidente como cientista político convidado por lideranças do PT.

Desdeeleição, Lula já recebeu ligações e mensagensvários líderes mundiais — entre eles do americano Joe Biden e do francês Emmanuel Macron —,um sinal que muitos analistas entendem comoreceptividade para tal plano.

Mas para Leticia Pinheiro, o maior protagonismo do Brasil e o incentivo à cooperação global só virão "às custasmuito trabalho".

"Será preciso reconduzir determinadas políticas e corrigir um pouco decisões equivocadas tomadas nos últimos anos. Não vai ser fácil, embora já haja uma receptividade no ambiente internacional para que o Brasil possa ter um papel mais ativo no diálogo internacional."

A professora da Relações Internacionais salienta também que há uma expectativaque o aparato diplomático e o Ministério das Relações Exteriores passe por uma reforma e ganhe mais relevância nesse processo.

Integração regional

Outro tema que ganhou destaque nos planos do futuro governo Lula é o fortalecimento dos laços com países vizinhos na América do Sul e América Latina.

O texto divulgado pela campanha do petista antes da eleição fala"defender a integração da América do Sul, da América Latina e do Caribe, com vistas a manter a segurança regional e a promoçãoum desenvolvimento integradonossa região, com basecomplementaridades produtivas potenciais entre nossos países" e"fortalecer novamente o Mercosul, a Unasul, a Celac e os Brics" (blocospaíses).

Para Guilherme Casarões, iniciativasnatureza política na região foram "totalmente esvaziadas" durante o governo Bolsonaro. "Passamos quatro anos abertamente ignorando qualquer perspectivaintegração", diz.

Lula e o presidente da Argetina, Alberto Fernandez,São Paulo

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Lula recebeu o presidente da Argetina, Alberto Fernandez,São Paulo pouco apósvitória

Mas segundo o pesquisador, o novo governo deve ter grandes oportunidades para reverter o cenário. Uma delas foi escancarada pela guerra da Ucrânia, que apesardesafiadora, abriu as portas para a América do Sul reorganizar suas cadeias produtivas e investir maisuma regionalização.

"Percebeu-se que uma dependência profundade locais muito distantes ouuma cadeia muito complexa pode ser perigosa, pois se um elo se rompe existe riscoproblemasabastecimento, segurança alimentar ou escassezenergia", diz.

A segunda grande oportunidade encontra-se na atual crise venezuelana. "O Lula está muito bem posicionado para estabelecer uma interlocução com Nicolás Maduro e com a oposição na Venezuela e tentar usar o peso diplomático brasileiro para construir uma alternativa pós-Maduro."

O futuro presidente foi muito criticado durante a campanha porsuposta ligação com governo autocráticosesquerda na América Latina, como o da Venezuela e da Nicarágua. A campanha bolsonarista explorouespecial a faltauma crítica duraLula e seu partido a abusos desses regimes.

O cientista político Hussein Kalout, porém, defende o diálogo pragmático na regiãoprol do equilíbrio geopolítico.

"Isolar esses países não é produtivo na América do Sul. É importante dialogar e com base no diálogo arrefecer os pontostensão - o que não quer dizer também concordar com o métodogovernança", disse à BBC News Brasil.

EUA e China

A atual rivalidade entre Washington e Pequim também pode representar um desafio para o BrasilLula.

No passado, o ex-presidente conseguiu manter uma relação pragmática com as duas potências - foi durante seu governo, aliás, que a China se tornou o principal parceiro comercial do Brasil,2009. Mas desde então o antagonismo se acentuou e os EUA vêm cobrando que seus aliados se posicionemforma mais clara.

Em seu discurso pós-vitória, Lula manifestou o desejo"retomar nossas parcerias com os Estados Unidos e a União Europeianovas bases", ao mesmo tempoque falou sobre fortalecer os Brics — aliança formada por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

Para Leticia Pinheiro, da UERJ, a única solução para o Brasil seria adotar uma "equidistância pragmática" — o termo foi cunhado pelo historiador Gerson Mourareferência à política externa por Getúlio Vargas na relação com EUA e Alemanha antes da 2ª Guerra Mundial.

"Essas relações não precisam sersoma zero, umadetrimento da outra", diz.

E ao que tudo indica, esse deve ser exatamente o caminho do futuro governo. "Tradicionalmente o Brasil tem uma rara que é conseguir transitar sem compromissos ideológicos entre grandes potências", diz Guilherme Casarões.

Bandeiras dos EUA e China

Crédito, Getty Images

"Ao contrário do governo Bolsonaro que antagonizou o [presidente dos EUA, Joe] Biden e a China por muito tempo, Lula não tem razão nenhuma para fazer isso."

Para Hussein Kalout, o presidente eleito deve ser capazmanter uma relaçãorespeito mútuo com os dois países, mas com independência.

"Há uma clara e manifesta disposição, tanto do presidente Biden quantoLula,fazer com que as relações bilaterais sejam alçadas a uma relação ao patamaruma relação estratégica", disse sobre os vínculos com os EUA.

Uma reeleiçãoDonald Trump2024, porém, poderia dificultar essa relação. "O Trump tem uma formajogar política externa que é muito baseadaum 'toma lá dá cá'. Ele barganha muito, ele exige muito e muitas lealdades", diz Casarões, da FGV.

Meio ambiente

A pauta ambiental teve grande destaque no planogoverno e nos discursosLula, assim como a cooperação internacional sobre o tema.

O presidente eleito falou que o Brasil "está pronto para retomar o protagonismo na luta contra a crise climática" e que o próximo governo vai "lutar pelo desmatamento zero na Amazônia".

"Estamos abertos à cooperação internacional para preservar a Amazônia, sejaformainvestimento ou pesquisa científica. Mas sempre sob a liderança do Brasil, sem jamais renunciarmos à nossa soberania", disse ainda o petistaseu discurso após a vitória.

Nos governos Lula, o Brasil consolidou uma posiçãodestaque nas conferências climáticas internacionais, que visam implementar ações globaiscontenção do aquecimento global.

Foi num desses encontros que surgiu a proposta do Fundo Amazônia, implementado2008 com dinheiro da Noruega e da Alemanha para estimular projetoscombate ao desmatamento e uso sustentável da floresta.

Apóseleição, diversos líderes mundiais manifestaram desejocooperar mais com o Brasil na área,mais uma indicaçãoque o meio ambiente deve ganhar bastante espaço na agendapolítica externa do próximo governo.

O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, falou"fortalecer a parceria entre os países" e "avançarprioridades compartilhadas — como proteger o meio ambiente".

Josep Borrell, chefe da diplomacia da União Europeia, disse que o bloco está comprometido"aprofundar e ampliar o relacionamentotodas as áreasinteresse mútuo, inclusive no comércio, no meio ambiente, nas mudanças climáticas e na agenda digital".

Já Rishi Sunak, primeiro-ministro do Reino Unido, falou"trabalhar juntos por questões que importam", como "a proteção dos recursos naturais do planeta".

Área devastada na Amazônia

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Taxadesmatamento na Amazônia subiu nos últimos três anos

Para Guilherme Casarões, o maior investimentodiplomacia ambiental pode destravar um dos obstáculos que têm impedido a concretização do acordo entre União Europeia e Mercosul.

"A real viabilidade do acordo depende dos outros fatores, inclusive internospaíses europeus que estão fora do controle brasileiro, mas pelo menos o pretexto internacional mais óbvio que seguravaassinatura — a questão ambiental — deve ser superado", afirma.

Direitos humanos

Para a professora Leticia Pinheiro, o tema dos direitos humanos também deve ganhar mais espaço na agenda externa do governo.

"Embora o Brasil tenha ficado um pouco isolado durante o governo Bolsonaro, o país teve um certo protagonismo na discussão sobre direitos humanos, no sentidoreverter decisões anteriores e ir contra direitos e posições que o país já havia defendido no passado", diz.

"Há uma expectativaque esse protagonismo na direção inversa dos direitos seja abandonado ou que o Brasil retomedefesa por direitos relacionados à questão reprodutiva egênero."

Para a pesquisadora, isso deve ser feito dialogando com entidades da sociedade civil no Brasil, inclusive as religiosas, que têm ganhado um papel cada vez maior na política nacional.

Guerra na Ucrânia

Apesar da distância física, é inevitável que a guerra na Ucrânia impacte a política externa do governo Lula, pelo menos enquanto o conflito durar.

Disparocanhão

Crédito, Getty Images

O presidente eleito recebeu muitas críticas por uma entrevista dadamaio à revista americana Time,que afirmou que o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, é tão responsável quanto o presidente russo, Vladimir Putin, pelo conflito. "Porque numa guerra não tem apenas um culpado", declarou.

Apesarem geral se manter neutroconfrontos como o que atinge o leste da Europa atualmente, o Brasil é bastante dependente da Rússia para a comprafertilizantes — o país importa 85% dos fertilizantes que utiliza, e os russos respondem por 23% dessas importações. Brasília também mantém relações próximas com Moscou por conta dos Brics.

Ao mesmo tempo, o Brasil também tem interesseaprofundar as suas relações com a Europa — e grande parte dos países europeus estão apoiando a Ucrânia.

Para a professora Leticia Pinheiro, a tendência é que o próximo governo mantenha uma estratégia semelhante à adotada por Jair Bolsonaro nos últimos meses, tentando conciliar posições.

"Após algum tempo, o governo Bolsonaro conseguiu equilibrar seu papel com a Rússia, condenando as ações do país, mas chamando a atenção da comunidade internacional para as demandasMoscou", diz.

Segundo a especialista, a diplomacia brasileira tem larga experiênciase relacionar com forçasconflito — e deve mantertradição.

- Este texto foi publicadohttp://vesser.net/brasil-63522159