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O que dizem projetoslei que tentam restringir ainda mais aborto no Brasil:
A Cfemea realiza análises semanais e anuais sobre projetos apresentados etramitação no Congresso Nacional. O último relatório oficial publicado traça um retrato do ano2021 no Legislativo, e, à pedido da BBC News Brasil, o centro compilou os dados mais recentes, até 29junho2022.
Segundo a cientista política e assessora técnica do Cfemea, Priscilla Brito, a tendência observada nos projetoslei,um predomínioproposições que restringem mais o aborto, se repete também com outros tiposproposições, como projetosdecreto legislativo, propostasemenda constitucional e requerimentos diversos apresentados etramitação tanto na Câmara quanto no Senado.
"Os projetosdecreto legislativo têm sido muito usados atualmente pela oposição para se contrapor ao governo, mas eles raramente avançam", comenta Brito.
Ao mesmo tempo, explica Brito, o estudo do Cfemea trata das medidas mais recentes porque existe maisuma centenaproposições que tratam do aborto no Congresso. "Mas alguns estão parados há anos e dificilmente avançarão", diz.
O levantamento se concentra na Câmara porque a Casa é onde o tema costuma gerar mais repercussões. "Há ainda menos projetoslei que têm origem no Senado e,geral, eles não tramitam tão rápido quanto os que saem da Câmara", afirma Brito.
Segundo a especialista, o maior númeroprojetoslei contra o aborto é um reflexoum crescimento significativo da bancada mais conservadora no Congresso Nacional, ao mesmo tempoque há uma contração do campoesquerda. Brito afirma ainda que o uso político da pauta pode contribuir para isso.
"Desde a primeira apresentação do Estatuto do Nascituro2007, inaugurou-se uma tendênciapautar o direito à vida com mais força. Na atual Legislatura, a base aliada do governo está ainda mais ativa nesse sentido", diz.
O tema voltou à tona nas últimas semanas depois que o casouma menina11 anos, vítimaestupro, repercutiutodo o país. A criança teve o direito ao aborto legal inicialmente negadoSanta Catarina, mas conseguiu realizar o procedimento depoisuma recomendação do Ministério Público Federal (MPF).
A divulgação da história da atriz Klara Castanho também provocou discussõestorno do assunto. A jovem21 anos publicousuas redes sociais um texto contando que foi vítimaviolência sexual, engravidouconsequência do estupro e que, mesmo tendo direito ao aborto legal, decidiu levar a gravidez até o fim e, posteriormente, entregou a criança para adoção.
Ela disse ainda que, logo após o parto, enquanto ainda estava sob os efeitos da anestesia, foi abordada por uma enfermeira do hospital que ameaçou vazarhistória para a imprensa.
O caso levou à apresentação do único projetoteor mais favorável à ampliação do direito ao aborto protocolado na Câmara no período, segundo o Cfemea.
O PL 1763/2022, do deputado Ricardo Silva (PSD/SP), busca alterar o Código Penal para incluir um artigo que cria o crimedivulgaçãoinformações sobre a vítimacrime contra a dignidade sexual. Entre os dados que o projeto busca impedir que sejam divulgados, está a prática do aborto legal.
Restrição ao aborto
Atualmente, o aborto é legal no Brasil nos casosque a gravidez é decorrenteestupro, quando há risco à vida da gestante ou quando há um diagnósticoanencefalia do feto — este último caso foi garantido por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF)2012.
Em qualquer outra circunstância, é considerado crime, previsto no Código Penal1940. A pena variaum a três anosprisão, para a mulher, eum a dez anos para quem realiza ou auxilia o procedimento.
Entre as propostas que preveem restringir ainda mais o aborto no país apresentadas desde 2021 está o PL 2125/2021, do deputado Junio Amaral (PSL-MG).
O projeto visa aumentar as penas para até 20 anos para mulheres que interrompem a própria gestação ou permitem que outra pessoa realize o procedimento, e até 30 anos para quem realiza ou auxilia um aborto sem o consentimento da gestante oumenores14 anos e pessoas com deficiência mental.
A proposta foi fundida com outra apresentada também2021, o PL 4148/2021, que visa a aumentar a pena aplicada a quem ajuda alguém a abortar se essa pessoa for "o cônjuge ou a companheira".
O PL 232/2021, também protocolado no período, propõe alterar a lei para tornar obrigatória a apresentaçãoboletimocorrência com examecorpodelito positivo que ateste a veracidade do estupro, para realizaçãoaborto decorrenteviolência sexual. A proposta éautoria das deputadas Carla Zambelli (PL-SP) e Major Fabiana (PSL-RJ).
Ainda foram apresentados2021 o PL 299/2021, que visa a proibir qualquer formamanipulação experimental, comercialização e descarteembriões humanos, e o PL 1515/2021, que busca vedar a realizaçãoqualquer procedimentonatureza abortiva na modalidade telemedicina.
Já o PL 434/2021 prevê instituir o Estatuto do Nascituro — o termo "nascituro" é um sinônimo para feto. A proposta estabelece, entre outras coisas, que "a personalidade civil do indivíduo humano começa com a concepção" e que "o nascituro goza do direito à vida, à integridade física, à honra, à imagem etodos os demais direitos da personalidade".
O projeto, das deputadas Chris Tonietto (PSL-RJ) e Alê Silva (Republicanos-MG), prevê alterações no Código Penal e na Lei nº 8.0721990, que dispõe sobre os crimes hediondos. Ele foi apensado a outra proposição,2018, que trata do mesmo tema.
Já2022 foi apresentado o PL 883/2022,autoriaZambelli, que tem como objetivo alterar o Código Civil para incluir disposições referentes ao direito do nascituro e criar, no Código Penal, o crimeincitação ao aborto.
Ele foi anexado a outro projeto,2007, que trata do mesmo tema e está pronto para pauta na ComissãoDefesa dos Direitos da Mulher.
Outros projetos
Entre os 13 projetoslei contabilizados pelo Cfemea, pelo menos quatro buscam criminalizar propaganda ou distribuiçãomaterial sobre o aborto, propõem fazer algum tipocampanha contra a prática ou proíbem parcerias entre a administração pública e organizações da sociedade civil que promovam o tema,acordo com o centro.
No ano passado, foi protocolado o PL 2451/2021, apresentado pelo deputado Loester Trutis (PSL-MS), que busca penalizar quem,qualquer modo, criar, produzir, divulgar, incitar, reproduzir, distribuir ou financiar por meio digital, rádio e televisão, oumateriais impressos, mesmo queforma gratuita, campanhasincentivo ao aborto.
A pena seriatrês a dez anosprisão e multa, com acréscimoscasosusorecursos públicos ou campanhas realizadas dentroinstituiçõesensino.
O projeto foi apensado a outro,2013, que torna um crime contra a vida o anúnciomeio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a gestante ao aborto. Ele já está pronto para entrar na pauta no plenário.
Já o PL 1753/2022,Tonietto, foi apresentado pouco depois que o caso da menina11 anos, que realizou aborto legal após estuproSanta Catarina, repercutiu na imprensa. A proposição prevê que as parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil atendam aos interesses do nascituro, da criança e do adolescente.
"O novo texto prevê expressamente o impedimentoparcerias da administração pública com organizações que façam apologia ou promovam, por qualquer meio, a prática direta ou indireta do aborto", afirmou Tonietto sobre o projetosuas redes sociais.
Há também proposições para instituir o Dia Nacional do Nascituro eConscientização sobre os Riscos do Aborto e a Semana NacionalCelebração da Vida.
Em 2022 ainda foi protocolado o PL 344/2022, que dispõe sobre a sustaçãoatos normativos do Judiciário que exorbitem daatribuição jurisdicionalface da competência legislativa do Congresso Nacional, mas foi retirado pela autora, a deputada CarolineToni (PSL-SC).
Ao todo, atualmente tramitam na Câmara e no Senado maisuma centenaproposições que tratam do aborto, apresentadas ao longomuitos anos, segundo o Cfemea.
Em 2022, mais especificamente até 29junho, o centro contabilizou 51 proposições tratando do tema no Congresso Nacional, entre projetoslei apresentados ou movimentados (14), projetosdecreto legislativos (15), emendas (3) e requerimentos diversos (19).
Játodo o ano2021, foram 26 proposições, entre projetoslei (19), projetosdecreto legislativo (6) e propostasemenda constitucional (1).
Lados opostos da Câmara
Segundo o levantamento do Cfemea, Chris Tonietto é a deputada campeãproposiçõestemas relacionados ao aborto na Câmara no período analisado.
À BBC News Brasil, a parlamentar afirmou ter mais30 proposições legislativas (entre projetoslei, requerimentos, projetosdecreto legislativo etc.) que tratam diretamente do assuntotramitação no Congresso atualmente.
"Meu objetivo com esses projetos nada mais é do que proteger integralmente o mais frágil e inocente dos seres que é o nascituro e fazer valer o seu direito fundamental e inviolável à vida, consagrado na Constituição da República como cláusula pétrea, inclusive", disse a deputada.
Segundo Tonietto, o projeto mais importantesua legislatura é o PL 2893/2019, que revoga o artigo 128 do Código Penal, que trata dos casosque a interrupção da gravidez é previstalei: quando a gestação decorreestupro ou quando a gravidez representa risco à vida da mulher.
"Considero-o o mais importante projetominha legislatura e também para o eleitorado, porque expressamente visa coibir as ameaças a esse direito fundamental que é consagrado na nossa Lei Maior", afirmou.
Do outro lado do espectro político, a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) é uma das maiores defensoras da manutenção e ampliação do direito ao aborto no Congresso. A deputada afirma que seu maior objetivo é mostrar que "não é um fato dado que não se pode debater esse tema na Câmara ou que não existe necessidade social entre as mulheres para que se discuta isso".
"É um temasaúde pública e proteção acimatudo e há necessidade e urgênciadiscuti-lo", diz Bomfim.
A deputada é responsável, ao ladooutras legisladorasseu partido, pelo PL 4297/2020, que dispõe sobre a criaçãouma zonaproteção no entorno dos estabelecimentossaúde que prestam o serviçoaborto legal e serviços que prestam atendimento especializado a mulheres vítimasviolência sexual.
A proposição foi apresentada2020 e está aguardando parecer do relator na ComissãoSegurança Pública e Combate ao Crime Organizado.
"O objetivo é que não vejamos mais se repetirem cenas como as registradas no caso da menina do Espírito Santo, quando organizaçãoturbas conservadoras tentaram violar o direito delater a opção do aborto", afirmou a deputada, se referindo ao casouma criança10 anos que2020 enfrentou dificuldades para realizar o procedimento após ser abusada pelo próprio tio e engravidar.
Tonietto e Bomfim protagonizaram uma discussão na quarta-feira (6/7) na Comissão da Mulher na Câmara. A sessão debatia a aprovaçãouma MoçãoAplauso e Reconhecimento à juíza Joana Ribeiro Zimmer, "pela corajosa e exemplar defesa do direito à vida desde a concepção".
Em audiência no dia 9maio, Ribeiro Zimmer iinduziu a menina11 anos, vítimaestuproSanta Catarina, a desistirfazer um aborto legal.
O pedidohomenagem à juíza foi apresentado por Chris Tonietto e pelo deputado federal Diego Garcia (Republicanos-PR). Os ânimos se exaltaram durante a análise do requerimento.
Esquerda minoritária, bancada conservadora e plataforma eleitoral
Segundo Priscilla Brito, o predomínioprojetos que buscam restringir ainda mais o aborto no Brasilrelação aos que buscam ampliar o direito pode ser explicada por três principais fatores.
O primeiro está relacionado ao fato do campoesquerda no Congresso Nacional ser minoritário atualmente.
"Mesmo dentro do campoesquerda, o númeroparlamentares que defendem a manutenção ou a ampliação do direito ao aborto é muito pequeno. Em geral, são apenas as mulheres do campo progressista identificadas com a pauta feminista", diz Brito.
Ao mesmo tempo, segundo a pesquisadora, houve uma ampliação significativa da bancada mais conservadora no Legislativo após as eleições2014 e 2018.
O PL, partido do presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, tem 77 deputados na Câmara atualmente.
De acordo com Brito, o terceiro fator é a proximidade das eleições.
"O aborto é uma pauta relativamente fácilconverteruma plataforma política conservadora", diz a cientista política. "A proximidade do período eleitoral faz com que os parlamentares conservadores usem isso como plataforma política e eleitoral."
"O próprio governo, ao notar que o jogo eleitoral está desfavorável para o presidente Bolsonaro neste momento, começa a usar a pauta para agitarbase eleitoral e ganhar a simpatia da população mais conservadora."
Para a professoraSaúde Pública da UniversidadeSão Paulo (USP) Cristiane Cabral, a influência profunda da religião na esfera pública no Brasil também contribui para que existam mais projetos que visam a restringir e criminalizar o aborto no país.
"Há uma união entre representantes evangélicos e católicos para oposição à questão do aborto", diz Cabral. "Até o aparatoEstado está povoado por uma ideologia moral cristã."
Na semana passada, o ministro Edson Fachin, do STF, pediu que o governo dê mais informações sobrepolíticarelação à interrupção voluntária da gravidez.
O pedido foi feito após um documento disponível no site da Biblioteca VirtualSaúde do Ministério da Saúde dizer que "não existe aborto 'legal'" e defender que os casosque há "excludenteilicitude" sejam comprovados após "investigação policial".
Fachin é relatoruma ação apresentada por quatro entidadessaúde que pedem para o STF impedir que o governo e decisões judiciais possam restringir o aborto legal para gestaçõesaté 22 semanas. As entidades pedem ainda que o Supremo determine a imediata suspensão da cartilha do Ministério da Saúde.
O tema entre a sociedade brasileira
Para Priscilla Brito, porém, o maior númeroprojetos contra o aborto no Congresso não necessariamente traduz o sentimento da população brasileirarelação à prática. "O Congresso está um pouco mais conservador do que a sociedade, o que está diretamente relacionado com o uso político da pauta do aborto por algumas bancadas", diz.
Cristiane Cabral avalia: "Nem todos têm educação política para entender que, ao votarmos, estamos também elegendo projetos políticospartidos, não apenas indivíduos".
Algumas das últimas pesquisas feitas sobre o tema mostram uma aceitação maior da populaçãorelação ao aborto da forma como ele está previsto na lei atualmente, ou seja, legal apenascasosestupro, risco à vida da gestante ou diagnósticoanencefalia do feto, do que à ampliação do direito.
Uma pesquisa do Datafolha divulgada no iníciojunho mostrou que 39% dos brasileiros entrevistados consideram que a lei deve permanecer como está, enquanto 26% disseram acreditar que o aborto deve ser permitidomais situações outodas as situações.
Por outro lado, 32% disseram concordar com a total restrição da interrupção da gravidez no país. Em dezembro2018, a taxa era41%.
Em termos globais, a edição2021 do estudo Global Views on Abortion, da Ipsos, classificou o Brasil como o quinto país menos favorável à legalização total do abortoum conjunto27 nações analisadas.
Na pesquisa, 31% dos brasileiros disseram ser favoráveis à descriminalização do aborto sempre que for o desejo da mulher — a média nos países pesquisado foi46%.
O estudo apontou ainda que 33% afirmaram que "o aborto deve ser permitidodeterminadas circunstâncias, por exemplo, no casouma mulher ter sido estuprada"; 16% disseram que "o aborto não deve ser permitidohipótese alguma, exceto quando a vida da mãe estiverrisco"; e 8% responderam que "o aborto nunca deve ser permitido, não importando sob quais circunstâncias" — 13% não souberam ou não quiseram opinar.
- Texto originalmente publicadohttp://vesser.net/brasil-62041902.
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