Dom Paulo Evaristo Arns: o arcebispo que enfrentou a ditadura ao celebrar missa para estudante morto sob tortura:roleta stop
A certa altura, um cinegrafista da TV Globo começou a registrar imagens para o telejornal da noite. Com medoroleta stoprepresálias, os estudantes cobriram os rostos com os folhetosroleta stopcânticos.
Quem participou do ato religioso foi o cantor e compositor Sérgio Ricardo (1932-2020). Durante a comunhão, ele cantou a música Calabouço, compostaroleta stophomenagem a outro estudante, Edson Luísroleta stopLima Souto (1950-1968), morto durante confronto com a PMroleta stopum restaurante do Rio.
Terminada a missa, Dom Paulo cumprimentou a mãeroleta stopAlexandre, Egle Maria Vannucchi Leme, sentada na primeira fila, e pediu a todos que saíssemroleta stopbraços dados,roleta stopgruposroleta stopquatro ou cinco, "para evitar qualquer problema aí fora".
Como canto final, a multidão entoou Pra Não Dizer que Não Falei das Flores,roleta stopGeraldo Vandré. "Vem, vamos embora, que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora, não espera acontecer", diz o refrão.
O ato religiosoroleta stopmemóriaroleta stopAlexandre Vannucchi Leme é considerado o primeiro grande ato público contra a ditadura militar a ser realizado depois do AI-5.
'Não se pune um crime, se existiu, com um crime ainda maior'
Dom Paulo costumava conversar com o então ministro da Educação do governo Médici, Jarbas Passarinho (1920-2016), por carta. Um padre da confiança do cardeal levava e trazia a correspondência. Mas, daquela vez, o religioso preferiu usar o telefone para cobrar explicações.
"Te dou uma resposta daqui a pouco", respondeu o ministro.
Passados alguns minutos, confirmou a versão dada pelo Secretárioroleta stopSegurança Pública, o general Sérvulo Mota Lima,roleta stopque Alexandre morrera atropelado durante uma tentativaroleta stopfuga. Dom Paulo não acreditou na história.
"Não se pune um crime, se existiu, com um crime ainda maior", rebateu,roleta stopcarta. "Houve um temporoleta stopque ter um filho na universidade era motivoroleta stoporgulho e tranquilidade. Hoje, éroleta stopansiedade e medo."
Jarbas Passarinho retrucou: "Alexandre era estudante terrorista. Não foi atingido enquanto estudante, mas enquanto terrorista". E prosseguiu: "Essa missa, Senhor Cardeal, poderia ter provocado um rioroleta stopsangue! Graças à prudência das autoridades, felizmente, não aconteceu".
"Dom Paulo teve uma briga feia com Jarbas Passarinho. Não eram amigos, mas tinham uma relação cordial", explica a jornalista Evanize Sydow, coautora da biografia Dom Paulo Evaristo Arns - Um Homem Amado e Perseguido (1999). "Dom Paulo era intransigente na defesa dos direitos humanos. As pessoas, dizia, têm que ter liberdade para lutar pelo que acreditam".
'Éramos felizes e não sabíamos'
Filhoroleta stopprofessores, Alexandre Vannucchi Leme nasceu no dia 5roleta stopoutubroroleta stop1950roleta stopuma família católicaroleta stopSorocaba (SP), a 87 quilômetros da capital. Sua mãe, Egle, tinha um irmão padre e três irmãs religiosas.
Alexandre era o mais velhoroleta stopseis irmãos: Maria Regina, Maria Cristina, Miriam, José Augusto e Beatriz. Aluno exemplar, foi aprovadoroleta stopprimeiro lugar no vestibular da USP.
"Foi meu calouro na universidade. Tinha uma inteligência acima da média", elogia o geólogo Adriano Diogo, amigoroleta stopAlexandre. "Se estivesse vivo, seria um grande cientista ou professor".
Por ser franzino e gostarroleta stopterra, ganhou logo um apelido na USP: "Minhoca". Mas,roleta stopcasa, todos o chamavamroleta stop"Lê".
"A lembrança dele, mesmo depoisroleta stoptantos anos, ainda é muito forte", afirma a funcionária pública Maria Cristina,roleta stopirmã.
"Lembro-me vivamente do nosso último Natal,roleta stop1972. Estávamos na casa da nossa tia Afra, a matriarca da família. Ele não queria ser fotografado, mas a namorada Lisete e minha mãe o seguraram na poltrona. Éramos felizes e não sabíamos."
Acusadoroleta stoppertencer ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), o tio padreroleta stopAlexandre chegou a ser detido no dia 5roleta stopabrilroleta stop1964, apenas quatro dias depois do golpe militar.
"Passei uma noite na cadeia e nove diasroleta stopprisão domiciliar no seminário", recorda Aldo que,roleta stop1974, largou a batina e, 40 anos depois, publicou o livro Alexandre Vannucchi Leme - Jovem, Estudante, Morto pela Ditadura.
"Quando soube o que fizeram com ele, senti como se meu coração tivesse sido estraçalhadoroleta stopdor."
Capturado no dia 16roleta stopmarçoroleta stop1973, por volta das 11h, Alexandre não teve a mesma sorte do tio. Levado por agentes do Destacamentoroleta stopOperaçõesroleta stopInformação - Centroroleta stopOperaçõesroleta stopDefesa Interna (DOI-Codi), o estudanteroleta stop22 anos foi torturado até a morte, um dia depois.
Era integrante da Ação Libertadora Nacional (ALN), fundada por Carlos Marighella (1911-1969), e teria sido entregue por um agente infiltrado conhecido como Jota.
"A família não sabia da ligação do Alexandre com a ALN. Mas, os pais pediam para que ele tomasse cuidado. 'Estão caçando gente da oposição', alertava a mãe", recorda Aldo.
"Tempos depois, conversando com minha mãe, ela contou que tinha certezaroleta stopque ele havia sido preso", completa Maria Cristina.
Na sede da Operação Bandeirante (Oban), situada na rua Tutóia, Alexandre não delatou ninguém. Era acusado, entre outros crimes,roleta stopparticiparroleta stopdois assaltos eroleta stopfornecer informações que resultaram no rouboroleta stopquatro carros e na morteroleta stopum comerciante.
"No dia e horárioroleta stopum dos supostos assaltos, Alexandre estava numa mesaroleta stopcirurgia", explica o jornalista Pauloroleta stopTarso Vannucchi, primoroleta stopAlexandre. "Ia operar apendicite."
'Quero estourar seus miolos!'
A certa altura do interrogatório, segundo relatosroleta stopnove presos políticos que estavamroleta stopcelas vizinhas do DOI-Codi, o rapaz teria gritado: "Meu nome é Alexandre Vannucchi Leme. Sou estudanteroleta stopGeologia. Me acusamroleta stopser da ALN. Eu só disse o meu nome".
Sob o comando do então major Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), Alexandre foi torturado por 13 agentes, entre tenentes, delegados e soldados. Eles se revezaramroleta stopdois turnos: uma equipe à noite, a A, e outraroleta stopdia, a C.
No dia 17, por volta das 17h, um carcereiro conhecido como Peninha foi buscá-lo na cela para mais uma sessãoroleta stoptortura, mas já o encontrou morto numa poçaroleta stopsangue.
"Em janeiroroleta stop1973, Alexandre foi submetido a uma cirurgiaroleta stopapendicite no Hospital Santa Lucinda,roleta stopSorocaba. A tortura que sofreu, muito provavelmente, resultou na ruptura dos pontos eroleta stophemorragia interna", lamenta Pauloroleta stopTarso.
Os militares, então, forjaram duas versões: numa, Alexandre teria cometido suicídio, cortando a própria garganta com uma lâminaroleta stopbarbear no interior da cela; noutra, teria sido atropelado por um caminhão, no cruzamento da rua Bresser com a avenida Celso Garcia, no Brás, enquanto fugia da polícia.
Na manhã do dia 17, Adriano, o amigoroleta stopAlexandre, foi levado à Operação Bandeirante para ser interrogado. Foi recebido, conta, por um Ustra "visivelmente transtornado".
"Acabeiroleta stopmatar o Minhoca!", gabou-se o militar, bradando uma pistola Magnum 45.
"Mandei-o para a Vanguarda Popular Celestial!", completou, fazendo alusão à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), um dos muitos gruposroleta stopesquerda que lutavam contra a ditadura.
"As novas gerações não fazem ideiaroleta stopquem foi Brilhante Ustra", garante Adriano.
"Era um assassino sanguinário. Um sádico perverso", descreve. "Quando me viu, avisou: 'Quero estourar seus miolos!'."
No períodoroleta stopque esteve preso na rua Tutóia, Adriano foi submetido aos mais variados tiposroleta stoptortura, do pauroleta stoparara à cadeira do dragão. Em ambos, o prisioneiro, nu, sofria choques elétricosroleta stopdiferentes partes do corpo, incluindo os órgãos genitais.
'Por que vocês mataram meu filho?'
No dia 20roleta stopmarço, por volta das 10h, a famíliaroleta stopAlexandre recebeu um telefonema anônimo: "O Alexandre está aqui no DOPS. Venham buscá-lo!".
Na mesma hora, o pai do rapaz, Joséroleta stopOliveira Leme, acompanhado do tio dele, Aldo Vannucchi, viajaram para São Paulo.
Na Delegaciaroleta stopOrdem Política Social (DOPS), o pairoleta stopAlexandre confrontou o delegado Sérgio Paranhos Fleury (1933-1979): "Por que vocês mataram meu filho?".
Enquanto Fleury sustentava a versãoroleta stopatropelamento, outro delegado do DOPS, Edsel Magnotti, defendia a teseroleta stopsuicídio.
Diante das versões desencontradas, Joséroleta stopOliveira deu continuidade às buscas. Procurava pelo filhoroleta stopórgãos do governo. Já Aldo buscava informaçõesroleta stophospitais. A resposta era sempre a mesma: ninguém sabiaroleta stopnada. Sem notícias, voltaram para Sorocaba.
Na manhã do dia 23, reiniciaram a busca. Foi quando, na rodoviáriaroleta stopSorocaba, José leu, na Folharoleta stopS. Paulo: "Terrorista morre atropelado no Brás".
No Instituto Médico Legal (IML/SP), descobriu que Alexandre já tinha sido enterrado, como indigente, no Cemitério Dom Bosco,roleta stopPerus, onde os órgãosroleta stoprepressão do governo militar escondiam as ossadasroleta stopsuas vítimas. Para agilizar a decomposição do cadáver e esconder as marcasroleta stoptortura, cobriram o corpo do rapaz com cal.
Segundo o laudo assinado pelos legistas Isaac Abramovitch e Orlando Brandão, Alexandre teria morridoroleta stopdecorrênciaroleta stop"lesões traumáticas crânio-encefálicas". Sua ossada, porém, só foi resgatada dez anos depois,roleta stop24roleta stopmarçoroleta stop1983.
"A identificação só foi possível porque,roleta stopdezembroroleta stop1972, ele me deu,roleta stoppresente, um molderoleta stopgessoroleta stopsua arcada dentária", recorda Maria Cristina.
"Estava fazendo tratamento na época."
Seus restos mortais foram exumados e, então, trasladados para Sorocaba, onde descansam no Cemitério da Saudade.
No dia 16roleta stopdezembroroleta stop2013, exatos 40 anos depois, a juíza Renata Mota Maciel Dezem, da 2ª Vararoleta stopRegistros Públicos da Capital, retificouroleta stopcausa mortis: Alexandre Vannucchi Leme morreuroleta stoplesões provocadas por tortura e maus-tratos sofridos nas dependências do DOI-Codi, e não por suposto atropelamentoroleta stopvia pública.
"Como Alexandre estaria hoje, aos 71 anos? Já nos fizemos essa pergunta várias vezes", reflete Maria Cristina.
"Temos quase certezaroleta stopque continuaria amoroso e brincalhão conosco. Mas, por outro lado, estaria indignado com o aumento da desigualdade social e com os milhõesroleta stopfamintos no país do 'agro é pop'. Tenho absoluta certezaroleta stopque estaria na linharoleta stopfrente, lutando contra a escalada do fascismo no Brasil."
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