A pressão internacional por preservação que ameaça soja e carne do Brasil:
As iniciativasdiscussão podem atingir os dois principais pilares do agronegócio nacional: a soja e a carne bovina.
Isso porque os dois produtos, que hoje têm grande penetração no mercado global, são frequentemente associados ao desmatamento ocorrido no Brasil.
Analistas ouvidos pela BBC News Brasil concordam que há uma pressão inédita sobre os produtos, mas há divergências sobre a postura que a China adotará nesse cenário.
E a posição do país asiático é a que mais importa, pois a China respondeu por 73,2% das comprassojagrãos e por 43,2% das comprascarne bovina do Brasil2020.
A soja e a carne bovina ocupam, respectivamente, o primeiro e o sexto lugar no rankingexportações brasileiras.
Ofensiva da União Europeia
Para Raoni Rajão, professor do DepartamentoEngenhariaProdução da Universidade FederalMinas Gerais (UFMG), as mudanças legislativasdiscussão na União Europeia podem fechar as portas para pelo menos um quinto da soja brasileira que hoje é exportada para o bloco.
Segundo Rajão, esse é o volume da soja cultivadapropriedades que desmataram ilegalmente após 2008 - embora essa área desmatada não tenha sido usada pelos proprietários para produzir soja, e sim outros produtos como milho, sorgo ou carne.
O cálculo foi publicadoum artigoRajão na revista científica Science2020 e se baseou nos dados815 mil propriedades rurais com registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR), um sistema oficial do governo.
Segundo Rajão, essa soja hoje entra no mercado europeu, mas seria barrada caso a União Europeia aprove as regras que estãodiscussão e que determinam que o bloco só compre alimentos produzidosforma legal.
"Se aquele imóvel está desmatando ilegalmente, toda a produção naquela área é ilegal", diz o pesquisador.
Mas o alcance das novas regras pode ser ainda maior e entrarconflito com a legislação brasileira.
Hoje, o Código Florestal brasileiro exige que proprietários rurais conservem entre 20% e 80%suas propriedades, percentual que varia conforme o bioma onde elas estão. As áreas restantes das propriedades podem ser desmatadas legalmente, desde que se obtenha uma licença.
Pelas novas regrasdiscussão na União Europeia, no entanto, qualquer produto oriundoáreas desmatadas a partir2021 seria barrado, ainda que esse desmate seja considerado legal pelo paísorigem.
A medida impactaria principalmente a soja produzida na regiãoCerrado conhecida como Matopiba, que engloba partes do Maranhão, do Tocantins, do Piauí e da Bahia.
Essa é a principal região brasileira por onde a soja tem se expandido e ainda poderia se expandir nos próximos anos.
Já na Amazônia, um acordo entre as principais empresas compradorassoja já impede a comercializaçãogrãos cultivadosáreas desmatadas após 2008, o que tem freado a expansão deste cultivo nas áreas recentemente derrubadas no bioma.
Protecionismo comercial?
As restrições europeiasdiscussão também se aplicariam a outros produtos, como carne bovina, café, cacau, madeira e óleopalma.
Para que os itens consigam entrar no mercado europeu, os fornecedores teriam que comprovar que os produtos não têm qualquer relação com o desmatamento - trabalho que tende a elevar os custos.
A proposta gerou duras reações entre produtoressoja brasileiros. A Aprosoja, principal associação do setor, classificou a iniciativa"protecionismo comercial disfarçadopreocupação ambiental".
Em nota, a associação afirmou que a iniciativa "trará impacto direto não somente para os brasileiros, mas também aos países que são abastecidos pelo Brasil, entre eles grandes mercados na Ásia, na África e, até mesmo, na própria Europa".
A União Europeia é a segunda maior importadorasojagrãos brasileira, responsável por 8% das compras do produto nos últimos cinco anos. E é a maior compradorafarelosoja nacional, com 52% das compras.
A nota da Aprosoja não detalha como outros países seriam impactados pela eventual aprovação da proposta europeia.
Para analistas, essa influência se daria porque os padrões europeus podem se tornar uma referência para outros países interessadosmanter uma boa relação comercial com a UE.
E a China?
Mas a proposta europeia poderia incentivar uma nova atitude da China frente à soja brasileira?
Para Raoni Rajão, independentemente do que façam os europeus, o governo chinês já tem sinalizado a intençãocoibir importações associadas ao desmatamento - algo que pode, sim, impactar a soja brasileira.
"A China, durante muito tempo, foi considerada pelo agro brasileiro como aquele país que compra qualquer coisa sem preocupações ambientais, mas essa já era uma leitura errada faz algum tempo", afirma o pesquisador.
Ele cita como exemplo uma declaração feita20019 pelo diretor-executivo da Cofco, estatal chinesa que é uma das principais importadorasalimentos do mundo e compra um grande volumesoja brasileira.
O executivo disse que a empresa buscaria ter "cadeias mais sustentáveis" - declaração que, segundo Rajão, está alinhada com a postura do governo centralPequim.
Crédito barato
O pesquisador afirma que a atitude não reflete necessariamente uma maior preocupação dos chineses com questões ambientais, mas sim a busca dessas empresas por crédito baratoinstituições como o Banco Mundial.
"Hoje, esse empréstimos só estão saindo se a empresa tem compromissos ambientais", diz Rajão.
O pesquisador cita outro gesto da China que, segundo ele, sinalizaria uma nova postura do paísrelação ao comércioprodutos ligados ao desmatamento.
Na COP26, a China assinou uma declaração conjunta com os Estados Unidos na qual os países se comprometeram a banir o desmatamento ilegal associado a importações agrícolas.
"Banir é uma palavra muito forte", diz Rajão.
"Foi a sinalização mais importante que a China fez (na área ambiental) nos últimos anos", afirma.
Dependência da soja brasileira
Já Daniele Siqueira, analistamercado da AgRural, uma assessoria brasileiracomercializaçãosoja e milho, vê os gestos chineses com algum ceticismo.
Ela afirma que, há alguns anos, a China afirmou que se tornaria uma economialivre mercado para ingressar na Organização Mundial do Comércio (OMC), mas jamais cumpriu a promessa.
"Nesses encontros (como a COP26), há muitas intenções, muitos discursos, mas muitas dessas coisas não são postasprática", diz.
Para Siqueira, a China não tem condiçõesreduzir as comprassoja brasileiramodo significativo hoje, pois não há outros países capazessubstituir a produção do Brasil.
"Eles (chineses) podem tomar alguma medida ou outra, mas nada no curto prazo e nada vagamente parecido com o que estão discutindo os europeus", diz a analista.
Segundo Siqueira, a China depende da soja brasileira para alimentar seu rebanho suíno, principal fonteproteína animal do país. Por isso, a soja brasileira é hoje essencial para a segurança alimentar chinesa, diz ela.
Restrições à carne
Se há divergências quanto ao impactonovas regras comerciais para a soja brasileira, a carne nacional parece estar mais pressionada.
Raoni Rajão afirma que um grupo60 grandes importadorescarne chineses enviou um sinal importante ao Brasil nos últimos meses.
O grupo anunciou a metasó comprar gado abatido até os 30 mesesidade e agora discute a possibilidadebarrar carne oriundaqualquer ecossistema natural que venha a ser transformadopastagem.
A idadeabate do gado interfere na quantidademetano que ele produz ao longo da vida. O gás metano é um dos principais causadores do aquecimento global e tem como umasuas principais fontes a digestãobovinos.
Na COP26, maiscem países - entre os quais o Brasil - assumiram o compromissocortar as emissões globaismetano30% até 2030relação aos padrões2020.
Para alcançar a meta, especialistas afirmam que a idade médiaabate dos bois terácair no Brasil, país com um dos maiores rebanhos bovinos do mundo.
Hoje, Rajão diz que a médiaabate no Brasil "é acima dos 36 meses, beirando os 40 meses", o que deixaria boa parte da carne produzida aqui fora dos novos padrões chineses.
Segundo ele, é possível antecipar o abate no país, mas para isso seria necessário melhorar a genética dos rebanhos e complementar a alimentação dos animais mantendo-os confinados, ações que exigiriam investimentos dos pecuaristas.
"Aquele gado que fica velho no pasto, engordando e emagrecendo, e que serve como uma espéciepoupança ambulante do pecuarista, é um gado que gera muita emissão e perderá mercado", diz Rajão.
Os novos critérios chineses para a compragado são discutidos enquanto o país asiático impõe um bloqueio à carne bovina brasileira. Os embarques foram interrompidos no iníciosetembro após dois casos atípicosvaca louca terem sido registrados no Brasil.
A suspensão das vendas fez os preços da carne caírem 11,8% no Brasiloutubro - a primeira queda nos últimos 16 meses - e foram um sinalcomo decisões chinesas podem impactar o setor.
Restrições nos EUA
O possível endurecimento da China nas regras para comprascarne se soma a uma propostadiscussão no Congresso dos Estados Unidos que também pode impactar pecuaristas brasileiros.
A iniciativa, proposta pelo senador Brian Schatz e pelo deputado Earl Blumenauer, busca dificultar as importações pelos Estados Unidosprodutos ligados ao desmatamento.
Os dois congressistas são do Partido Democrata, o mesmo do presidente Joe Biden, que elegeu o combate às mudanças climáticas como umasuas prioridadesgoverno.
Em 2021, o Brasil deverá ser o quarto maior exportadorcarne bovina congelada aos Estados Unidos e o maior fornecedormaterial bruto para a fabricaçãoassentoscouro para carros - dois setores que seriam impactados pela aprovação da proposta.
Consumidores no comando
Para Eduardo Assad, professor do cursoMestrado ProfissionalAgronegócios da Fundação Getúlio VargasSão Paulo (FGV-SP), tanto a soja quanto a carne brasileiras serão impactadas pelas mudanças comerciaisdiscussão.
Segundo Assad, os produtores desses itens serão obrigados a realizar um "trabalhorastreabilidade mais preciso", para comprovar que não têm qualquer vínculo com o desmatamento.
Assad vê uma novidade do movimento que busca restringir as importações associadas a desmatamento: o protagonismo dos consumidores.
"Os países ricos vão deixarcomprar esses produtos porque, se não fizerem, os consumidores vão deixarcomprá-los", afirma.
"Não são mais os grandes compradores que vão ditar o que o mercado faz, agora é o consumidor", diz.
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