Lei do Ventre Livre: como as mulheres escravizadas davam à luz no Brasil?:casa ou fora aposta

Mulher escravizadas leva o filho preso às costas

Crédito, Biblioteca Nacional

Legenda da foto, Histórias por muito tempo invisíveis vêm sendo contadas com a ajudacasa ou fora apostajornais, registroscasa ou fora apostatribunais e até periódicos médicos

As escravizadas grávidas estavam sujeitas a violências terríveis: a tortura, a exaustão pelo trabalho — que muitas vezes se estendia até o dia do parto —, um resguardo mínimo, com frequênciacasa ou fora apostaapenas três dias, a possibilidadecasa ou fora apostaseparação abrupta dos filhos recém-nascidos.

Não surpreende que, como Felippa, muitas mulheres grávidas tentaram fugir.

Por muito tempo invisíveis, essas histórias vêm sendo contadas por pesquisadores que buscam vestígios dessas personagens nos registros históricos disponíveis.

Uma delas é a historiadora Lorena Féres da Silva Telles, que mergulhoucasa ou fora apostaarquivoscasa ou fora apostajornais publicados entre 1830 e 1888 e encontrou o anúncio sobre Felippa — e outros 131 com o mesmo tema, a fugacasa ou fora apostaescravizadas grávidas.

Os dados viraram substrato paracasa ou fora apostatesecasa ou fora apostadoutorado e,casa ou fora apostaconjunto com informações colhidascasa ou fora apostaperiódicos médicos e teses das faculdadescasa ou fora apostaMedicina, ajudaram-na a trazer à superfície a relação entre maternidade e escravidão na cidade do Riocasa ou fora apostaJaneiro no século 19.

"Como é um tema sem uma fonte seriada, o pesquisador tem que buscar fontescasa ou fora apostanaturezas diversas,casa ou fora apostaautoria muitas vezescasa ou fora aposta'senhores', homens brancos, com uma escrita com um teor extremamente racista, objetificante com relação às mulheres", ela sublinha.

"A partir desses textos, você tenta extrair a perspectiva delas. Os ecos através da documentação — esse é o ofício da historiadora ali, né? Pegar fontes históricas, porque elas não escreveram a próprio punho, e encontrar os projetos, os desafios, as experiências, as visõescasa ou fora apostamundo, as atitudes, as agências delas."

A tese será transformadacasa ou fora apostalivro, com publicação prevista para 2022.

Escravos trabalhamcasa ou fora apostauma plantaçãocasa ou fora apostacafé no Brasil

Crédito, The New York Public Library

Legenda da foto, Nas fazendas, grávidas às vezes não conseguiam chegar a tempo à senzala

Dando à luz no cafezal

Até o começo do século 20, a maioria dos partos no Brasil era feitacasa ou fora apostacasa, por parteiras ou pelas "comadres", mulheres sem treinamento técnico, mas com grande conhecimento empírico, que gozavam da confiança das mulherescasa ou fora apostasuas comunidades.

"Isso valia tanto para as 'senhoras' quanto para as mulheres escravizadas; para as que moravam na cidade ou nas fazendas", diz Cassia Roth, professoracasa ou fora apostaHistória da América Latina e Caribe na Universidade da Georgia, nos EUA.

"Os médicos só eram chamados quando havia algum problema", diz a pesquisadora, que há anos estuda o tema, com uma pesquisa minuciosacasa ou fora apostafontes como os Annaes Braziliensescasa ou fora apostaMedicina ecasa ou fora apostadocumentos do Judiciário.

As semelhanças, contudo, paravam por aí.

As mulheres escravizadas eram levadas ao limite nos trabalhos forçados. Parte das evidências vem dos registroscasa ou fora apostaviajantes como o francês Charles Ribeyrolles, quecasa ou fora aposta1858 assistiu com perplexidade mulheres grávidas prestes a dar à luz trabalhando na colheitacasa ou fora apostacafé nas plantações do Vale do Paraíba.

Nessa mesma época, o médico Antonio Ferreira Pinto escrevia que era comum que muitas entrassemcasa ou fora apostatrabalhocasa ou fora apostaparto no serviço ou a caminho dele, com frequência carregando pesados cestos na cabeça.

Ele narra o caso chocantecasa ou fora apostauma escravizada que começou a sentir as dores do parto no cafezal, mas não conseguiu chegar à senzala a tempo: teve o bebê sozinha, desmaiou, "quer por perda considerávelcasa ou fora apostasangue, quer assustada por se ver só", e acordou quando os porcos dilaceravam seu filho.

Telles pontua que, ainda que nas cidades a realidade fosse diferente daquela das grandes propriedades cafeeiras, não significa que a rotina fosse menos extenuante.

"O trabalho urbano também poderia ser muito pesado — muitas tinhamcasa ou fora apostacarregar tinascasa ou fora apostaágua."

As lavadeiras, por exemplo, passavam longos períodoscasa ou fora apostapé, curvadas, o que lhes inchava as pernas e pés e, às vezes, chegava a prejudicar o desenvolvimento do útero.

Fotocasa ou fora apostaRevert Henry Klumb retrata lavadeiras na Tijuca por voltacasa ou fora aposta1860

Crédito, Biblioteca Nacional

Legenda da foto, Fotocasa ou fora apostaRevert Henry Klumb retrata lavadeiras na Tijuca por voltacasa ou fora aposta1860

"E mesmo os trabalhos considerados menos pesados do pontocasa ou fora apostavista do esforço físico eram também muito complicados e difíceis, como o das mucamas e das costureiras, porque elas ficavam muito cerceadas e reclusas dentro das casas e, ali, sujeitas a assédios, abusos e violências por parte da 'senhora' e do 'senhor'", acrescenta a historiadora.

Nesse sentido, o momento do parto também poderia ser muito invasivo para essas mulheres.

Em muitos dos paísescasa ou fora apostaorigem das mulheres escravizadas —casa ou fora apostaAngola, por exemplo —, a experiênciacasa ou fora apostadar à luz envolvia posições e movimentos diferentes. As mulheres não costumavam cobrir o corpo e os bebês passavam por uma sériecasa ou fora apostaritos depois do nascimento.

Alguns desses costumes, ainda que com restrições, tinham espaço nas áreas rurais do Brasil, onde o númerocasa ou fora apostaescravizadoscasa ou fora apostacada propriedade costumava ser maior. Como relata Roth, o mais comum nesses casos era que os partos acontecessem nas senzalas e que as mulheres fossem auxiliadas por outras escravizadas.

No ambiente urbano, a situação era bem diferente.

"Se você pensarcasa ou fora apostauma jovem africana,casa ou fora apostarepente ela se vê na presença da 'senhora', que é uma mulher católica, que é branca, que tem outra noçãocasa ou fora apostaparto. Pensar que essas mulheres têm o parto desse jeito é extremamente violento, é uma violênciacasa ou fora apostavárias dimensões", ressalta Telles.

Tanto nas fazendas quanto nas áreas urbanas, o tempocasa ou fora apostaresguardo era mínimo. Os relatoscasa ou fora apostaviajantes indicam que, muitas vezes, elas estavamcasa ou fora apostavolta ao trabalho apenas três dias depoiscasa ou fora apostadar à luz.

Imagenscasa ou fora apostaestúdio feitas por Marc Ferrez com mulheres escravizadas

Crédito, Biblioteca Nacional

Legenda da foto, Imagenscasa ou fora apostaestúdio feitas por Marc Ferrez com mulheres escravizadas: escravidão durou tanto tempo no Brasil que chegou a ser retratada pela fotografia

Como o sistema escravista moldou a obstetrícia no Brasil

O século 19 marcou não apenas o último capítulo da longa história do escravismo como instituição formal no Brasil.

Esse também foi um períodocasa ou fora apostaque a ginecologia e a obstetrícia se consolidaram como campos da Medicina no país. Nesse momentocasa ou fora apostatransição, não era raro que os médicoscasa ou fora apostaformação praticassem nos corpos das escravizadas.

Roth disse não ter encontrado evidênciascasa ou fora apostaque eles submetessem essas mulheres a experimentos científicos — como foi o caso, nos Estados Unidos,casa ou fora apostamédicos como James Marion Sims, que usou mulheres negras como cobaias.

"Não se pode dizer, a partir dos documentos, se esse tipocasa ou fora apostaexperimentação aconteceu ou não no Brasil. Mas houve, sim, um outro tipocasa ou fora apostaexperimentação que também é perversa… é horrível ler esses relatos um após o outro", diz ela, referindo-se aos periódicos médicos.

Um deles está citadocasa ou fora apostaum trabalho recente da historiadora — o capítulocasa ou fora apostaum livro ainda não publicado. Retrata uma palestracasa ou fora aposta1856 no auditóriocasa ou fora apostaanatomia da Faculdadecasa ou fora apostaMedicina do Riocasa ou fora apostaJaneiro,casa ou fora apostaque se apresentava o casocasa ou fora apostauma "preta" sem nome que morreu durante o parto.

O médico que assistiu a paciente, sem prática no uso do fórceps (uma espéciecasa ou fora apostapinça usada para puxar o bebê quando ele enfrenta dificuldade para sair), aplicou-o com tanta força que "se rasgara a vagina e exercera-se uma compressão tão forte sobre o colo do útero que esse se achava bastantemente equimosado". Após a "tortura", como define a pesquisadora, a mulher morreu.

Nos relatórios dos obstetras que se formaram na Santa Casacasa ou fora apostaMisericórdia do Riocasa ou fora apostaJaneiro, Roth encontrou Henriqueta, que deu entrada na maternidade do hospital escola, aos 17 anos,casa ou fora aposta20casa ou fora apostaabrilcasa ou fora aposta1884.

Um primeiro exame mostrou que o feto estavacasa ou fora apostaposição invertida, com os pés para baixo e cabeça para cima. Meia hora depois, o bebê tinha girado quase 180 graus. O ventrecasa ou fora apostaHenriqueta foi apalpado por tantos alunos e por tantas vezes que o feto acabou sendo involuntariamente deslocado. A filha da jovem nasceu morta e Henriqueta passou outros três meses no hospital até se recuperarcasa ou fora apostauma infecção.

Boa parte desses casos tem um denominador comum: a ideiacasa ou fora apostaque as mulheres negras tinham um nívelcasa ou fora apostatolerância maior à dor.

Esse pensamento se espalhou entre a comunidade médica do século 19, na esteira das teorias raciais e do racismo científico, mas transborda esse período.

"Acho que a ideiacasa ou fora apostaque as mulheres negras suportam mais dor ainda existe na profissão médica no Brasil. A mesma coisa nos Estados Unidos", ressalta Roth.

"É preciso ter cuidado para não estabelecer necessariamente uma causalidade, mas definitivamente é possível enxergar paralelos e ver como a instituição da escravidão afetou e moldou a profissão da obstetrícia no Brasil", completa a pesquisadora, que trata desse assunto no livro A Miscarriage of Justice Women's Reproductive Lives and the Law in Early Twentieth-Century Brazil ("Um Erro da Justiça: A Vida Reprodutiva das Mulheres e a Legislação do Brasil do Início do Século 20",casa ou fora apostatradução livre), publicadocasa ou fora aposta2020 pela editora Stanford University Press.

Augusto Gomes Leal comcasa ou fora apostaamacasa ou fora apostaleite Mônica, albúmencasa ou fora apostaJoão Ferreira Villela,casa ou fora aposta1860

Crédito, Acervo Fundação Joaquim Nabuco/Min. da Educação

Legenda da foto, Augusto Gomes Leal comcasa ou fora apostaamacasa ou fora apostaleite Mônica,casa ou fora apostafotografiacasa ou fora apostaJoão Ferreira Villela,casa ou fora aposta1860

As mães escravizadas e os bebês brancos

A abolição da escravaturacasa ou fora aposta13casa ou fora apostamaiocasa ou fora aposta1888 foi o último capítulo da morte lenta do regime escravista no Brasil. Antes da Lei Áurea, um conjuntocasa ou fora apostaleis abolicionistas já vinha sendo instituído no país, a conta gotas.

Houve a proibição do tráfico negreirocasa ou fora aposta1850, que acabou com os desembarques nos portos brasileiroscasa ou fora apostaafricanos sequestrados, e,casa ou fora aposta1871, a Lei do Ventre Livre, que considerava libertos todos os filhoscasa ou fora apostamulheres escravizadas nascidos apóscasa ou fora apostadatacasa ou fora apostapromulgação.

Essa implosão lenta do regime escravista brasileiro teve efeitos colaterais perversos para as mulheres escravizadas.

Um deles se abateu sobre o "mercado"casa ou fora apostaamascasa ou fora apostaleite que há décadas dava lucro aos "senhores"casa ou fora apostacidades como o Riocasa ou fora apostaJaneiro, Salvador e Recife.

Mães escravizadas eram tradicionalmente alugadas para amamentar os filhoscasa ou fora apostamulheres brancascasa ou fora apostaclasse média e alta, que raramente davamcasa ou fora apostamamar aos próprios bebês.

Por quê?

A resposta está no discurso médico da época, que dizia que "a mulher branca é frágil, é linfática, é inconstante, é nervosa, tem o leite 'fraco'", explica Telles.

"E se dizia exatamente o oposto complementar para a mulher negra: elas são fortes, robustas, conseguem amamentar maiscasa ou fora apostauma criança ao mesmo tempo, têm muito leite, seus filhos não precisamcasa ou fora apostatantos cuidados assim."

Esse "mercado" acabou se tornando extremamente lucrativo depois da proibição do tráfico. Com a redução do númerocasa ou fora apostaescravizadas urbanas, o valor pago pelas amascasa ou fora apostaleite entroucasa ou fora apostatrajetória crescente.

"E aí entra um traço muito cruel: as classes médias e as elites preferem pagar o dobro ou o triplo do preço da mulher escrava sem o seu bebê", relata Telles.

Assim, muitas mães eram separadas — temporária ou permanentemente — dos recém-nascidos para que os bebês brancos não disputassem atenção com seus filhos.

Antes da Lei do Ventre Livre, os "senhores" tinham um incentivo econômico para manter os recém-nascidos vivos, já que eles nasciam escravos e, nesse sentido, representavam-lhes ganhos potenciais no futuro.

"Depoiscasa ou fora aposta71, quando as crianças não vão ser mais escravizadas, elas começam a ser largadas na rua, nas praias, na Roda dos Expostos."

A historiadora conta que muitas parteiras — no caso do Riocasa ou fora apostaJaneiro, muitascasa ou fora apostaorigem francesa — se especializaram no que acabou virando um filão dos estertores do mercado escravista: elas faziam os partos das mulheres escravizadascasa ou fora apostasuas próprias casas, chamadascasa ou fora aposta"casascasa ou fora apostamaternidade", e já se encarregavamcasa ou fora apostasumir com os bebês e alugar as mulheres.

O númerocasa ou fora apostacrianças na Roda dos Expostos, também conhecida como roda dos enjeitados — ligadas às igrejas e instituiçõescasa ou fora apostacaridade, que recebiam recém-nascidos abandonados — cresceu substancialmente nessa época.

Gravuracasa ou fora apostaLaurent Deroy mostra lavadeiras reunidas na cidade do Rio na primeira metade do século 19

Crédito, Biblioteca Nacional

Legenda da foto, Lavadeiras na cidade do Rio na primeira metade do século 19: redecasa ou fora apostasolidariedade entre mulheres foi fundamental nos atoscasa ou fora apostainsurreição

O destinocasa ou fora apostaFelippa

A revolta das mulheres escravizadas aparececasa ou fora apostahistórias como acasa ou fora apostaFelippa, nos registroscasa ou fora apostafugas nos jornais.

"Uma mulher que foge grávidacasa ou fora apostaoito, nove meses,casa ou fora apostarepente ela já sabe do plano do senhorcasa ou fora apostaalugá-la como amacasa ou fora apostaleite", ilustra Telles.

"Então elas decidem fugir tanto pela questão da sobrevivência dos filhos, para deixá-los com alguma comadre, com alguém que zele pela sobrevivência deles, quanto para não serem torturadas ou mesmo para poderem viver o partocasa ou fora apostauma forma que elas julgassem mais apropriada."

Nesse sentido, a redecasa ou fora apostasolidariedade que existia entre as mulheres era fundamental.

"Essas mulheres têm comadres, elas andam pelas ruas. A concentração africana e afrodescendente na cidade do Riocasa ou fora apostaJaneiro é fortíssima. Tem ainda os 'zungus', que são casascasa ou fora apostabatuque e tambémcasa ou fora apostaalimentação… toda uma rede que o mundo urbano permite que exista, e que é onde elas vão se amparar e tentar encontrar maneiras menos adversas para viver o parto e o pós-parto."

No casocasa ou fora apostaFelippa, registros do Jornal do Commerciocasa ou fora aposta1874 mostram que, depoiscasa ou fora apostadar à luz, ela entrou com uma açãocasa ou fora apostaliberdade na Justiça reivindicandocasa ou fora apostaalforria.

A "secção judiciária" do jornal O Globocasa ou fora aposta16casa ou fora apostamaiocasa ou fora aposta1875 informa, contudo, que o pedido foi negado.

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