Xokleng: povo indígena quase dizimado protagoniza caso histórico no STF:7games ferramenta app

Bugreiros, mulheres e crianças indígenas Xokleng

Crédito, ACERVO SCS

Legenda da foto, Em pé, bugreiros posam com mulheres e crianças do povo Xokleng capturadas após ataque a acampamento.

O relato está no livro Os Índios Xokleng - Memória Visual, publicado7games ferramenta app1997 pelo antropólogo Silvio Coelho dos Santos.

"O corpo é que nem bananeira, corta macio", prossegue o bugreiro na descrição dos ataques. "Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço. Às vezes, para mostrar, a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que matar todos. Se não, algum sobrevivente fazia vingança", completou.

Poucas etnias foram tão combatidas pelos bugreiros quanto os Xokleng,7games ferramenta appSanta Catarina. Nesta quarta-feira (25/08), o povo poderá seu destino definido num dos julgamentos mais importantes da história recente do Supremo Tribunal Federal (STF), que definirá o futuro das demarcações7games ferramenta appterras indígenas no Brasil.

Em 117games ferramenta appjunho, o relator do processo sobre os Xokleng no STF, ministro Edson Fachin, votou contra a tese do "marco temporal". O julgamento foi suspenso após um pedido7games ferramenta appvista do ministro Alexandre7games ferramenta appMoraes.

Agora, o processo voltou à pauta7games ferramenta appjulgamento do plenário, previsto para esta quarta-feira. Entretanto, é possível que novos pedidos7games ferramenta appvista posterguem uma decisão.

A retomada do caso se torna ainda mais relevante porque avança na Câmara dos Deputados o Projeto7games ferramenta appLei (PL) 490, que, entre outros pontos, estabelece 1988 como marco temporal para a demarcação7games ferramenta appterras indígenas.

Se a corte derrubar a tese no julgamento sobre os Xokleng, é provável que os congressistas tenham7games ferramenta appmudar o texto do PL sob o risco7games ferramenta appterem a proposta invalidada pela corte.

O caso mobiliza as atenções7games ferramenta appgrupos ruralistas e terá repercussão para dezenas7games ferramenta appoutros povos no país.

Criança Xokleng7games ferramenta appacampamento na floresta,7games ferramenta app1963

Crédito, Acervo SCS

Legenda da foto, Criança Xokleng7games ferramenta appacampamento na floresta,7games ferramenta app1963

Questão do 'marco temporal'

A corte vai avaliar se a Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ — habitada pelos Xokleng e por outros dois povos, os Kaingang e os Guarani — deve incorporar ou não áreas pleiteadas pelo governo7games ferramenta appSanta Catarina e pelos ocupantes7games ferramenta apppropriedades rurais.

Em jogo está a tese do chamado "marco temporal", princípio defendido por entidades ruralistas e segundo o qual só podem reivindicar terras indígenas as comunidades que as ocupavam na data da promulgação da Constituição: 57games ferramenta appoutubro7games ferramenta app1988.

O governo passou a encampar formalmente essa tese7games ferramenta app2017, quando Michel Temer era presidente, o que na prática paralisou as demarcações no país.

Em 2018, num outro julgamento sobre a demarcação7games ferramenta appterritórios quilombolas, o STF rejeitou o princípio do "marco temporal".

O princípio faz parte do léxico ruralista desde pelo menos 2009, quando o então ministro do STF Ayres Britto propôs7games ferramenta appadoção ao julgar um caso sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Os indígenas, por outro lado, são contrários à aplicação do marco temporal, pois dizem que muitas comunidades foram expulsas7games ferramenta appseus territórios originais antes7games ferramenta app1988.

É esse o argumento usado pelos Xokleng no julgamento no STF: eles afirmam que décadas7games ferramenta appperseguições e matanças forçaram o grupo a sair do território que hoje tentam retomar.

Jovens Xokleng durante apresentação sobre o primeiro contato entre indígenas e brancos.

Crédito, Prefeitura7games ferramenta appIbirama

Legenda da foto, Jovens Xokleng durante apresentação na Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ

"Não tínhamos fronteiras, andávamos por todo aquele espaço. Mas éramos tutelados, não tínhamos como responder por nós. Mal sabíamos falar português, imagine nos defender", diz à BBC News Brasil Ana Patté, jovem liderança Xokleng integrante da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e assessora parlamentar da deputada estadual Isa Penna (PSOL-SP).

Patté afirma que o território7games ferramenta appdisputa era usado pelos Xokleng para a caça, pesca e coleta7games ferramenta appfrutos, especialmente o pinhão. A Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ foi demarcada7games ferramenta app1996 e,7games ferramenta app2003, mais que triplicou7games ferramenta apptamanho, passando7games ferramenta app15 mil para 37 mil hectares.

A área hoje7games ferramenta appdisputa integra a parte incorporada7games ferramenta app2003 e está parcialmente ocupada por plantações7games ferramenta appfumo — atividade que, segundo Patté, fez o solo e os rios da região se contaminarem com agrotóxicos.

Ela diz que, se o STF julgar que o pleito da comunidade procede, a área7games ferramenta appdisputa será reflorestada, o que trará benefícios não só para os Xokleng mas para todos que dependem dos rios que cruzam aquelas terras.

Já o governo7games ferramenta appSanta Catarina afirma que essa área era pública e foi vendida a proprietários rurais no fim do século 19.

Mapa da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ após a ampliação7games ferramenta app2003

Crédito, ISA

Legenda da foto, Mapa da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ após a ampliação7games ferramenta app2003

Políticos ruralistas catarinenses apoiam a posição do governo estadual. Em 2008, os então deputados federais Valdir Colatto e João Matos, ambos do MDB, elaboraram um decreto legislativo anulando a ampliação da terra indígena.

Eles afirmaram que, na área englobada pela ampliação, havia 457 pequenas propriedades agrícolas, com média7games ferramenta app15 hectares cada.

"Nunca houve, e nem há, critérios seguros para se demarcar áreas indígenas, ficando a sociedade à mercê do entendimento pessoal do antropólogo que se encontra fazendo o trabalho num determinado momento", argumentaram os deputados ao justificar o decreto.

O Estado7games ferramenta appSanta Catarina também disputa com os Xokleng 3.800 hectares onde há sobreposição entre a terra indígena e reservas biológicas estaduais.

Em 2019, o STF decidiu que o julgamento sobre a Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ tem repercussão geral — ou seja, a decisão aplicada ali valerá para outros casos semelhantes.

Se a corte se opuser à tese do marco temporal, o governo federal7games ferramenta apptese será obrigado a retomar os processos7games ferramenta appdemarcação que foram travados com base nesse princípio.

'Potencial7games ferramenta appconflagração'

Essa possibilidade tira o sono7games ferramenta appassociações ruralistas. Em maio7games ferramenta app2020, um advogado da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) disse no STF que a rejeição do princípio do marco temporal traria "um enorme potencial7games ferramenta appconflagração do país e retorno a uma situação muito grave que se vivia no Brasil antes7games ferramenta app2009 (ano da decisão do STF sobre o caso Raposa Serra do Sol)".

Já uma decisão favorável ao estabelecimento7games ferramenta appum marco temporal tende a dificultar novas demarcações.

Indígenas7games ferramenta appcarro à frente7games ferramenta appposto do SPI

Crédito, Acervo SCS

Legenda da foto, Posto do Serviço7games ferramenta appProteção ao Índio (SPI) dedicado aos Xokleng no fim dos anos 1920

Segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio), há 245 processos7games ferramenta appdemarcação7games ferramenta appterras ainda não concluídos.

Em muitos desses casos, os indígenas reclamam territórios7games ferramenta apponde dizem ter sido expulsos antes7games ferramenta app1988.

Há ainda muitas demandas por demarcação que nem sequer foram analisadas pelo governo — o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), braço da Igreja Católica que atua7games ferramenta appprol dos povos indígenas, conta 537 casos desse tipo.

Indígenas protestam e são observados por policiais

Crédito, Reuters

Legenda da foto, Indígenas protestam7games ferramenta appBrasília contra o governo Jair Bolsonaro e propostas legislativas que consideram nocivas, como o PL 490

Colonização europeia

Após perder dois terços7games ferramenta appseus membros no século passado, a população Xokleng voltou a crescer. Hoje, a etnia soma cerca7games ferramenta app2,3 mil integrantes.

O julgamento no STF7games ferramenta appquestão não é a primeira ocasião7games ferramenta appque um fato relacionado a esse povo redefine as relações do Estado brasileiro com os povos indígenas.

Em 1908, o etnógrafo tcheco Albert Vojtech Fric discursou7games ferramenta appum congresso7games ferramenta appViena, na Áustria, sobre o impacto da imigração europeia nas populações indígenas do Sul do Brasil.

Segundo Fric, a "colonização se processava sobre os cadáveres7games ferramenta appcentenas7games ferramenta appíndios, mortos sem compaixão pelos bugreiros, atendendo os interesses7games ferramenta appcompanhias7games ferramenta appcolonização,7games ferramenta appcomerciantes7games ferramenta appterras e do governo".

Anos antes, Fric havia sido convidado por um grupo7games ferramenta apppolíticos, humanistas e intelectuais7games ferramenta appSanta Catarina para servir à Liga Patriótica para a Catequese dos Silvícolas.

Enquanto poderosos locais defendiam exterminar os indígenas, esse grupo propunha uma abordagem mais "light": cristianizá-los e incorporá-los à força7games ferramenta apptrabalho nacional.

Fric havia sido encarregado7games ferramenta appliderar a "pacificação" dos Xokleng - termo usado na época para designar a aproximação com indígenas que mantinham relação conflituosa com a sociedade envolvente.

Indígenas sentados7games ferramenta apppedaço7games ferramenta appmadeira

Crédito, Acervo SCS

Legenda da foto, Comunidade Xokleng após o contato com os brancos (data desconhecida)

A presença dos Xokleng era vista como um entrave à colonização da região. Eram comuns relatos7games ferramenta appfurtos ou ataques7games ferramenta appindígenas a trabalhadores que avançavam sobre seu território tradicional.

Mas Fric acabou deixando o Brasil antes7games ferramenta appcumprir a missão.

Em Os Índios Xokleng - Memória Visual, o antropólogo Silvio Coelho dos Santos (1938-2008) diz que Fric foi retirado do posto provavelmente por causa7games ferramenta apppressões7games ferramenta appcompanhias7games ferramenta appcolonização alemãs que atuavam7games ferramenta appSanta Catarina e não concordavam com7games ferramenta appabordagem.

O antropólogo afirma, porém, que o discurso7games ferramenta appFric7games ferramenta appViena teve grande repercussão na imprensa europeia e estimulou o governo brasileiro a agir para mostrar que se preocupava com os povos nativos.

Em 1910, durante a presidência7games ferramenta appNilo Peçanha, foi criado o Serviço7games ferramenta appProteção ao Índio (SPI), precursor da atual Funai.

Inspirado por ideais positivistas, o órgão dizia ter como objetivo "civilizar" os indígenas e incorporá-los à sociedade brasileira — postura enterrada pela Constituição7games ferramenta app1988, que reconheceu aos indígenas o direito7games ferramenta appmanter seus costumes e modos7games ferramenta appvida.

Mesmo após a criação do SPI, as expedições7games ferramenta appbugreiros contra povos como os Xokleng continuaram a acontecer por décadas.

Em seu livro, Silvio Coelho dos Santos entrevista um bugreiro que diz ter participado7games ferramenta appuma expedição para matar indígenas no governo Getúlio Vargas (1930-1945), ao menos 20 anos após a criação do órgão.

As missões para aniquilar povos nativos aconteciam enquanto, na Europa, Adolf Hitler punha7games ferramenta appmarcha seu plano7games ferramenta appexterminar os judeus.

Ou enquanto artistas brasileiros passavam a valorizar a participação indígena na formação nacional, influenciados pela Semana7games ferramenta appArte Moderna7games ferramenta app1922.

Mulheres e crianças Xokleng

Crédito, Acervo SCS

Legenda da foto, Mulheres e crianças Xokleng capturadas por bugreiros e entregues a freiras7games ferramenta appBlumenau; duas mulheres e duas crianças conseguiram fugir, voltando à floresta.

Crianças assassinadas

A proximidade temporal dos ataques aos Xokleng ainda provoca dor na comunidade.

Em entrevista à BBC News Brasil por telefone, Brasílio Pripra,7games ferramenta app63 anos e uma das principais lideranças Xokleng, chora ao falar7games ferramenta appum massacre ocorrido7games ferramenta app1904 contra seus antepassados.

"As crianças foram jogadas para cima e espetadas com punhal. Naquele dia, 244 indígenas foram covardemente mortos pelo Estado", afirma.

O episódio foi descrito no jornal já extinto Novidades,7games ferramenta appBlumenau, citado7games ferramenta appartigo do jurista Flamariom Santos Schieffelbein na revista eletrônica argentina Persona,7games ferramenta app2009.

"Os inimigos não pouparam vida nenhuma; depois7games ferramenta appterem iniciado a7games ferramenta appobra com balas, a finalizaram com facas. Nem se comoveram com os gemidos e gritos das crianças que estavam agarradas ao corpo prostrado das mães. Foi tudo massacrado", relata o jornal.

Pripra diz ter crescido ouvindo histórias como essa.

"Eu choro, me emociono. Sou neto7games ferramenta apppessoas que ajudaram a trazer a comunidade 'para fora', a fazer o contato (com não indígenas). É por isso que luto."

Línea

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