Como 'fim do mundo' causado por Belo Monte reuniu indígenas separados há quase um século:internet betway

Família do cacique Giliarde Juruna

Crédito, Lucas Landau/Rede Xingu +

Legenda da foto, Giliarde Juruna com o filho Awãkayu (à esq.) e a filha Anita (ou Yakawilu); ela se tornou fluente na língua ancestral do povo após interâmbio com membros da etnia refugiadosinternet betwayMato Grosso há quase um século

"Nós perdemos a cultura, mas preservamos o território, e nossos parentes do Mato Grosso perderam o território, mas preservaram a cultura", diz à BBC News Brasil Giliarde Juruna, cacique na aldeia Miratu da Terra Indígena Paquiçamba, que concentra parte do povo que ficou na Volta Grande, a terra ancestral da etnia.

A partirinternet betway2011, a comunidade passou a usar parte da verba que recebe como compensação por Belo Monte para promover intercâmbios com o grupointernet betwayMato Grosso, mais conhecido pelo nome yudjá.

Desde então, as famílias da Volta Grande ganharam algumas pessoas fluentes na língua ancestral, retomaram a tradiçãointernet betwaypinturas corporais e suas crianças voltaram a ser batizadas com nomes como Awãkayu e Maykawá (meninos) e Kianayu e Iankurishy (meninas).

A reaproximação, porém, envolveu estranhezas. Nem todos os costumes dos yudjá agradaram aos jurunas da Volta Grande - que, numa viainternet betwaymão dupla, também passaram a influenciar o modointernet betwayvida da outra comunidade (leia mais abaixo).

Terra Indígena Paquiçamba

Crédito, Google

Legenda da foto, Terra Indígena Paquiçamba concentra parte da comunidade juruna que ficou na Volta Grande, região afetada pelo desvio das águas do Xingu para abastecer Belo Monte

'Os donos do rio Xingu'

A relação dos jurunas com a Volta Grande remonta a tempos imemoriais. Canoeiros, eles se consideram "os donos do rio Xingu" e já foram o povo indígena mais numeroso da região.

O avançointernet betwaycolonizadores pela Amazônia, no entanto, quase levou a etnia à extinção. De 2 mil membros,internet betway1842, eles encolheram para 52,internet betway1916, dizimados por epidemias e escravizados para trabalharinternet betwayseringais.

Em 1920, Curt Nimuendajú - etnólogo alemão que viveu maisinternet betway40 anos no Brasil - fez um relatointernet betwaycarta ao Serviçointernet betwayProteção ao Índio, órgão antecessor da Funai:

"Os Juruna, antigamente a tribo mais importante do Xingu, sofreu todo o peso do avanço dos seringueiros. Especialmente o pessoal do coronel Tancredo Martins Jorge, na boca do rio Fresco, cometeu, do assassinato para baixo, toda sorteinternet betwaycrimes contra estes pobres, até que eles se revoltaram e fugiram, chefiados pelo seu tuxáua (chefe) Máma (...)."

Composto por 40 pessoas, o grupointernet betwayfuga gerou a comunidade yudjáinternet betwayMato Gosso. Para chegar à nova morada, eles remaram rio acima uma distância equivalente à que separa Belo Horizonteinternet betwayFlorianópolis, vencendo corredeiras e cruzando áreasinternet betwaypovos inimigos.

Mas Nimuendajú ignorava que um grupointernet betway12 jurunas havia permanecido no território original, próximo à cachoeira do Jericoá, dando origem à comunidade atual da Volta Grande.

Yudjá

Crédito, Museuinternet betwayArte Sacra/MT

Legenda da foto, Jurunas que fugiram da Volta Grande deram origem à comunidade yudjá do atual Território Indígena do Xingu; grupo manteve a língua e várias tradições ancestrais

Urbanização e miscigenação

O grupointernet betwayMato Grosso teveinternet betwayse adaptar a um ambiente distinto, mas conseguiu evitar contatos tão intensos com o mundo dos brancos. Eles mantiveram a língua e tradições únicas - como o taratararu, tipointernet betwayclarinete feitointernet betwaybambu - e hoje somam 248 membros.

Já os que ficaram na Volta Grande "tiveraminternet betwayse misturar para sobreviver", diz à BBC News Brasil Bel Juruna, uma das integrantes do grupo. A comunidade hoje tem cercainternet betwaycem pessoas na Terra Indígena Paquiçamba, aléminternet betwayoutras dezenasinternet betwayáreas vizinhas.

Em meio à forte urbanização na região - impulsionada pela construção da rodovia Transamazônica, nos anos 1970 -, os jurunas da Volta Grande se casaram com ribeirinhos e indígenasinternet betwayoutras etnias. Incorporaram vários itens do mundo branco, como a língua portuguesa, e passaram a ser vistos como "índios aculturados" pela sociedade envolvente.

Giliarde Juruna descreve os efeitos desse processo eminternet betwayfamília. Sua avó, segundo ele, era "uma índia pura" que se casou com um homem branco. Ela foi a última parente a falar a língua juruna na região, até ser obrigada a abandonar o idioma, nos anos 1970.

Ao crescer, Giliarde só falava português com os pais e até chegou a aprender um poucointernet betwaykayapó com indígenas xikrin da região. Só nos últimos anos passou a ouvir a língua jurunainternet betwaycasa, agora falada fluentemente por três filhas que fizeram intercâmbio recentemente com os yudjá.

Jornada juruna

Crédito, Google

Legenda da foto, Distância entre a Terra Indígena Paquiçamba, que concentra os jurunas da Volta Grande, e o Território Indígena do Xingu, para onde parte da comunidade fugiu há quase um século

Constituiçãointernet betway1988

O movimentointernet betway"retorno às origens" descrito pelos jurunas da Volta Grande foi catapultado por dois acontecimentos. O primeiro foi a promulgação da Constituiçãointernet betway1988, que acelerou a demarcaçãointernet betwayvárias terras indígenas pelo país.

Após a aprovação da Carta, vários indígenas que viviaminternet betwayAltamira passaram a se declarar jurunas e a voltar para a região que se tornaria a Terra Indígena Paquiçamba.

Aléminternet betwaybuscar a demarcaçãointernet betwayseus territórios, as comunidades nativas também começavam a se articular para discutir intervenções do governo na Amazônia - tema do 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu,internet betwayAltamira,internet betway1989.

Já naquela época autoridades pretediam erguer na região a usinainternet betwayBelo Monte, inicialmente batizadainternet betwayKararaô.

Um dos representantes do governo no encontro, o engenheiro José Antônio Muniz viu a jovem Tuíra Kayapó se aproximar da mesa com um facão, encostando a lâmina várias vezesinternet betwayseu rosto.

A imagem correu o mundo e sinalizou que os indígenas não aceitariam passivamente os planos das autoridades. Belo Monte só sairia do papel maisinternet betway20 anos depois, executada pelos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, do PT.

Indígenas do Xingu

Crédito, Murilo Santos/ISA

Legenda da foto, 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu reuniuinternet betwayAltamira grupos contrários à construçãointernet betwayBelo Monte,internet betway1989

Impactosinternet betwayBelo Monte

Os preparativos para a obra, nos anos 2000, voltaram a mobilizar indígenas xinguanos e aceleraram o processointernet betway"resgate cultural" dos jurunas, bem comointernet betwayoutras etnias que também chegaram a ser consideradas extintas, como os xipaya e os kuruaya.

Em entrevista à época, Eduardo Viveirosinternet betwayCastro, professorinternet betwayAntropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Riointernet betwayJaneiro (UFRJ), comentou o fenômeno. "Os índios da Volta Grande estavam cada vez mais esquecendo que eram índios. Com Belo Monte, descobriram que juridicamente são índios e passaram a lutar por seus direitos."

O estudo ambientalinternet betwayBelo Monte tratou os jurunas e os araras da Volta Grande como os grupos indígenas mais impactados pela obra, pois o desvio das águas diminuiria sensivelmente o fluxo do riointernet betwaysuas aldeias.

A Norte Energia, consórcio responsável pelo empreendimento, passou então a negociar compensações financeiras com os grupos, gerando graves cisões nas comunidades.

Moradores descontentes com as negociações fundaram novas aldeias para ter suas demandas atendidas. Os jurunasinternet betwayPaquiçamba, que antesinternet betwayBelo Monte viviam todos juntos, se dividiraminternet betwayquatro grupos.

Foi nesse contexto que um parente propôs usar o dinheiro da compensação para custear uma reaproximação com os yudjá. "Foi a única coisa boa que Belo Monte nos trouxe", diz Bel Juruna.

Hidrelétricainternet betwayBelo Monte

Crédito, Governo Federal

Legenda da foto, Canteirointernet betwayobrasinternet betwayBelo Monteinternet betway2015; no ano seguinte, rio Xingu começou a ser desviado para alimentar a usina, diminuindo a vazão das águas na região da Volta Grande

Ela conta que, quando a ideia veio à tona, muitos nem sabiam da existência do grupo. Desde os anos 1990, os parentes haviam abandonado o nome juruna - provavelmente cunhado por outros grupos indígenas - e passado a se identificar como yudjá.

Os jurunas então organizaram uma viagem inicial para visitar os yudjá e apresentar a propostainternet betwayintercâmbio,internet betway2011.

"Foi muito bom", lembra Bel, que diz ter sido recebida "como alguém que é da família". Ela logo percebeu um traço que, apesar da ruptura, continuava a unir os grupos: o apreço por bebidas alcoólicas.

Os visitantes foram recebidos com baldesinternet betwaycaxiri, berbida fermentada à baseinternet betwaymandioca. "Deve ser uma coisa genética", conta Bel, aos risos.

Ela afirma que os yudjá concordaram com o planointernet betwayintercâmbio e se prontificaram a enviar um casal para passar uma temporada na Volta Grande ensinando a língua e tradições aos parentes.

Questãointernet betwaygênero

Os jurunas da Volta Grande aguardaram o casal com grande expectativa. Quando a dupla chegou, porém, a missão se revelou mais complexa do que se imaginava.

O homem falava português e deu um curso introdutório sobre a língua juruna. Mas a mulher só dominava o idioma nativo, o que dificultava a transmissãointernet betwayconhecimentos que, na cultura da etnia, são restritos ao universo feminino.

Somente as mulheres jurunas sabem fabricar caxiri, trabalhar com argila e fazer as pinturas corporais características do grupo. Somente elas dominam as técnicas para o cultivo da mandioca e a torra da farinha, entre tantos outros saberes.

Indígenas do Xingu

Crédito, Museuinternet betwayArte Sacra/MT

Legenda da foto, Na cultura yudjá, mulheres são as detentorasinternet betwayvários conhecimentos tradicionais

O grupo da Volta Grande percebeu que, para realmente absorver os ensinamentos, teriainternet betwayenviar suas mulheres para conviver por longos períodos com as yudjá.

Eminternet betwayprimeira visita aos parentes, Bel já havia notado o domínio que as mulheres exercem na cultura local. Mas ela também achou que as mulheres ficavam sobrecarregadas com tantas atribuições.

"As mulheres lá trabalham muito, e os homens trabalham muito pouco. Eles têm direitointernet betwaysair para a cidade para estudar; as mulheres, nem tanto", conta.

Bel diz que o cenário começou a mudar conforme as parentes passaram a hospedar jovens jurunas da Volta Grande, que estariam influenciando uma nova divisãointernet betwaytarefas na comunidade.

"Creio que (a disparidade entre homens e mulheres) já está se equilibrando, porque o contato, a presença das nossas meninas juruna lá fortalece as mulheresinternet betwaylá", afirma.

Culturainternet betwaymovimento

Os jurunas da Volta Grande buscavam recuperarinternet betwaycultura original com os intercâmbios. No processo, porém, descobriram que nem todos os costumes dos yudjá se encaixavaminternet betwayseus modosinternet betwayvida - e que a cultura dos parentes nunca estivera congelada.

Uma das novidades presenciadas pelos jurunas nas visitas foi o consumointernet betwayayahuasca entre os yudjá. Os yudjá incorporaram a bebida - feita com plantas amazônicas e popularmente conhecida como chá do Santo Daime - após contatos com indígenas do Acre e com adeptos da religião União do Vegetal na cidadeinternet betwayAlta Floresta (MT), nos últimos anos.

Após ouvir relatosinternet betwaypessoas que teriam visto "almas" ao ingerir a bebida, Bel diz ter desistidointernet betwayprová-la. "Não tive coragem", conta.

Cacique Giliarde Juruna

Crédito, Lucas Landau/Rede Xingu +

Legenda da foto, Cacique Giliarde Juruna diz que Belo Monte provocou graves cisões na comunidade que ficou na Volta Grande, fazendo com que uma aldeia se dividisseinternet betwayquatro

O intercâmbio segue a todo vapor. Bel diz que as jurunas que passaram temporadas entre os yudjá estão repassando seu aprendizado às crianças da Volta Grande. No futuro, há planosinternet betwayensinar a língua ancestral nas escolas.

Segundo Bel, cercainternet betway50 jurunas da Volta Grande já visitaram os yudjá, e uns 70 yudjá já passaram temporadas na Volta Grande.

Ela conta que os parentes costumam visitá-los no inverno, quando o Xingu enche e a pesca se torna mais difícil. "Eles passam necessidade e ficam isolados. Quando vêm para cá, gostam do movimento: vão para a cidade, querem ver jogointernet betwayfutebol", diz.

Bel afirma que os parentes são gratos aos jurunas por terem permanecido na terra ancestral da etnia, apesarinternet betwaytodas as pressões. "Eles falam bastante que o território deles é na Volta Grande. Eles não têm culpainternet betwayter subido (o rio), e nós não temos culpainternet betwayter perdido tanta cultura."

Segundo Bel, os yudjá também lamentaram quando as águas do Xingu na Volta Grande passaram a ser desviadas para alimentar Belo Monte,internet betway2016, embora hoje vivam longe do território ancestral e não tenham sido impactados pela construção. A usina deve atingirinternet betwaycapacidade máxima até o fiminternet betway2019.

Bel diz que, após a inauguração, a vazão do rio tem diminuindo progressivamente e hoje se tornou "um fiozinho d'água".

A comunidade ainda tem conseguido pescar, porque há muitos peixes nos trechos que ficaram rasos. Mas há temoresinternet betwayque a menor vazão impeça os animaisinternet betwayacessar os locaisinternet betwaydesova para se reproduzir.

Volta Grande do Xingu após Belo Monte

Crédito, NASA

Legenda da foto, Imagensinternet betwaysatélite mostram como vazãointernet betwayágua na Volta Grande do Xingu caiu drasticamente após o início do desvio para alimentar Belo Monte.

Revisão da licença

Os impactos gerados pelo desvio das águas fizeram o Ministério Público Federal (MPF) recomendar a revisão da licença ambientalinternet betwayBelo Monte, no iníciointernet betwaysetembro.

O órgão defende que haja um aumento da vazão na Volta Grande para evitar "impactos irreversíveisinternet betwayum dos principais rios da Amazônia". Na prática, a mudança impediria a usinainternet betwayoperar com potência máxima.

Procurada pela BBC News Brasil, a Norte Energia não se pronunciou sobre o tema.

Em seu site, a concessionária diz que a vazão da Volta Grande foi definida pela Agência Nacionalinternet betwayÁguas (ANA) antes do leilão para a construção da usina.

A Norte Energia diz "monitorar os processos ecológicos na Volta Grande do Xingu" e trabalhar junto do Ibama, prefeituras e comunidades locais para implementar "ações que ajudarão a lidar melhor com as alterações" causadas pelo desvio das águas.

Duas culturas, um só povo

Para Bel, sete anos após a reaproximação, os jurunas já percebem que nunca terão a mesma cultura que os yudjá - e tudo bem. A retomada dos laços já rendeu muitos frutos e mostrou que o vínculo entre os grupos jamais foi perdido.

"Os juruna e os yudjá podem ir para onde for, mas eles são o povo do rio", ela afirma.

Nessa saga, Belo Monte representa um paradoxo. A mesma obra que estimulou a reconexão dos grupos ameaça os modosinternet betwayvida que os tornam um só povo apesar das diferenças, à medida que a Volta Grande se torna cada vez mais seca.

Bel explica: "Os donos do rio estão sem rio."

raya

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