Por que o 'casamento' entre bolsonarismo e a Lava Jato pode estar chegando ao fim:
A desavença se acirrou nas últimas semanas depoisintervençõesBolsonaro na Receita Federal, na Polícia Federal e no ConselhoControleAtividades Financeiras (Coaf). O presidente falarenovar e melhorar a produtividade das instituições, alémressaltar que as mudanças são prerrogativas suas.
As medidas enfraqueceram a principal figura ligada à Lava Jato, Sergio Moro, que deixou a magistratura para assumir o Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Em outubro passado, Bolsonaro havia prometido indicar Sergio Moro para uma vaga no Supremo Tribunal Federal.
A rixa está dividindo as ruas, afirmam líderesmovimentosdireita ouvidos pela BBC News Brasil. Embora os apoiadores do presidente ainda sejam maioria nesse segmento da sociedade, a situação está mudando rapidamente, segundo os ativistas.
Para eles, as medidas do presidente seriam também o capítulo mais recente da busca dos Bolsonaros pela hegemonia dentro do campo da direita: a família presidencial estaria tentando sufocar aliados que possam disputar espaço com ela.
Os atritos coincidem com uma fragilidade inédita da Lava Jato. Além do vazamentomensagens privadas atribuídas a procuradores e a Moro, que sugerem irregularidades na conduçãocasos investigados, houve um revés jurídico para a operação que pode levar à anulaçãodiversas condenações.
Mas por que chegou a esse ponto a relação entre Bolsonaro e integrantes e apoiadores da Lava Jato?
Crise remonta a decisãoToffoli
Embora o nívelfervura tenha subido nos últimos dias, ela não é nova. Segundo pessoas ligadas à Lava Jato, a fase mais aguda começoumeadosjulho, depois que o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, decidiuforma liminar (provisória) restringir o usoinformações fiscais detalhadas - como as produzidas pelo Coaf - sem autorização prévia da Justiça.
A decisão atendeu a um pedido da defesaum dos filhos do presidente, Flávio Bolsonaro, que é investigado na Operação Furna da Onça. Ele é suspeitose apropriarparte dos saláriosseus assessores quando era deputado estadual no Rio - o parlamentar nega ter utilizado essa prática.
Nesta terça-feira (3), o procurador aposentado Carlos Fernando dos Santos Lima disse à BBC News Brasil que Bolsonaro era "fontepreocupação" e estava inviabilizando o combate à corrupção no país para proteger seu filho.
"Infelizmente, uma questão menor, um crime dos mais banais envolvendo políticos - a 'rachadinha' dos salários no gabinete - está inviabilizando o combate à corrupção no Brasil", disse.
Moro não falou sobre o assuntopúblico, mas pessoas próximas a ele, sim. O ex-diretor do Coaf, o auditor da Receita Roberto Leonel, afirmoujulho ao jornal O EstadoS. Paulo que a decisão colocavarisco o trabalho feito no Brasil para combater a lavagemdinheiro.
Leonel trabalhou com o ex-juiz federal nas investigações da Lava Jato, e ambos seriam amigos pessoais, segundo relatosquem conviveu com eles. Logo, a declaração foi percebida como um recadoMoro - e desagradou muito a família Bolsonaro.
A relação com os Bolsonaros piorou ainda mais no fimjulho, quando o ministro da Justiça foipessoa ao gabineteToffoli pedir a ele para reconsiderardecisão sobre o Coaf.
Sob Bolsonaro, o órgão foi transformadouma UnidadeInteligência Financeira dentro da estrutura do Banco Central, sem Leonel no comando - a saída dele foi considerada um dos mais duros golpes contra Moro até agora.
Na manhã desta segunda-feira (2), Bolsonaro disse a jornalistas do jornal FolhaS.Paulo que irá trocar o atual diretor da Polícia Federal, Maurício Valeixo, também ligado a Moro.
O presidente classificou"babaquice" as reações na PF aintervenção. "Essa turma [que dirige a PF] está lá há muito tempo, tem que dar uma arejada", disse à Folha.
Agenda anticorrupção é central para o Ministério Público, diz pesquisador
Depois da deflagração da Operação Lava Jato,2014, a imagem do Ministério Público Federal ficou ainda mais ligada ao combate à corrupção. Mas a preocupação com este tema tem raízes muito mais antigas na corporação, segundo o cientista político e professor Fábio Kerche, que pesquisa o tema.
"Se você olhar os primeiros surveys (pesquisasopinião) com procuradores e promotores, lá nos anos 1990, o tema da corrupção já aparece como a principal preocupação. Algo como 60% apontavam o combate à corrupção como principal tema, e essa proporção se mantém nos anos seguintes, ao longo dos anos 2000", diz Kerche, que é doutorciência política pela UniversidadeSão Paulo (USP) e autorum livro sobre a Lava Jato.
O Ministério Público com autonomia, tal como o conhecemos hoje, surgiu com a Constituição1988, lembra o pesquisador. "Mas foi a partir2003 que eles tiveram um aumento substancial da independência, e dos seus instrumentospoder. A agenda anticorrupção é semelhante, só que hoje eles têm muito mais independência, recursos e instrumentos para perseguir esse objetivo", diz.
Kerche cita como exemplos o fatoo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e seus sucessores terem seguido a lista tríplice formulada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) na escolha do procurador-geral da República; a Lei das Organizações Criminosas,2013, que ampliou o usodelações premiadas; além do aumento do orçamento da Polícia Federal eoutros órgãoscontrole.
Para o cientista político Adriano Oliveira, professor da Universidade FederalPernambuco (UFPE), a entradaMoro no governo marca uma virada surpreendente, porque ele trocou o campo jurídico - onde não precisava fazer concessões - pela política, onde precisa negociar.
"Ele tevenegociar, cooperar, e ceder. O que observamos hoje é isto: o presidente Bolsonaro, por várias vezes, já o desautorizou", diz Oliveira, que é doutorciência política e publicouabril deste ano um livro sobre a influência da Lava Jato no comportamento dos eleitores.
Se o poderMoro está declinando no mundo jurídicoBrasília, há outras pessoas aptas a ocupar esse espaço.
"O Toffoli já estava se aproximando do Bolsonaro há mais tempo. Em novembro (passado), nomeou um militar como assessor no seu gabinete (o general da reserva Fernando Azevedo e Silva) que é hoje o ministro da Defesa do Bolsonaro. Bolsonaro não nomeia só ministros do Supremo. Nomeia desembargadores, diretores jurídicosempresas estatais, e vários outros. E o Toffoli hoje tem muito mais peso e influência nessa esfera do governo que Moro", diz um assessor próximoautoridades jurídicas do país.
Equilíbrio na direita está mudando
O movimento Vem Pra Rua foi um dos principais organizadores da manifestação pró-Lava Jato no dia 25agosto, quando pessoas foram às ruas19 Estados e no Distrito Federal para apoiar Moro e pedir nomeação do coordenador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, para o cargoprocurador-geral da República.
Segundo o empresário Rogério Chequer, 51, ex-coordenador do Vem Pra Rua, havia uma divisão clara no ato na avenida Paulista,São Paulo.
"Cada movimento está tomando um caminho diferente. Tem os que priorizam Bolsonaro acimatudo, que defendem o presidente independentemente das atitudes que ele toma. E os que mantêm a coerência e criticam as atitudes dele que estão minando instituiçõescombate à corrupção", diz ele.
Segundo Chequer, as últimas atitudes do presidente "acendem um sinalalerta muito grande" nos defensores da pauta anticorrupção.
Renan Santos, 35, é cofundador e um dos principais líderes do Movimento Brasil Livre (MBL). O grupo deu apoio tácito a Bolsonaro no 2º turno das eleições deste ano - mas ao longo desse ano se distanciou cada vez mais do governo. Segundo Santos, Bolsonaro está tentando minar outros grupos dentro do campo políticodireita que não estejam alinhados a ele.
"O bolsonarismo é hegemonista. Usam fake news e ataques pessoais para tentar demolir qualquer um do campo antipetista que ele imagine que possa ser uma ameaça ao projetopoder deles. Se você reparar bem, nos últimos tempos, Bolsonaro e a família centraram mais ataquespessoas do campo da direita do que na própria esquerda. Atacaram o MBL, a Rachel Sheherazade, e até o Deltan Dallagnol virou agora comunista", diz Renan.
Dias atrás, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) postou um vídeo no qual um YouTuberdireita retrata Deltan Dallagnol como militante esquerdista. "São conexões com ONGs e gruposesquerda, não se trata da opinião do Lilo (o YouTuber), são fatos", diz o tuíte do deputado.
Intervenções na Polícia Federal e na Receita
Duas medidasBolsonaro nas últimas semanas foram consideradas tentativassubordinar ao Palácio do Planalto a Receita e a Polícia Federal - ambos com papel importante nas apurações contra corrupção.
O presidente mandou embora o nº 2 na hierarquia do Fisco, José Paulo Ramos Fachada. Acelerou a transferência para um posto fora do Brasil do chefe da Polícia Federal no Rio, Ricardo Saadi. Ameaçou trocar o chefe da Receita no Rio, Mário Dehon, e até o delegado da alfândega do portoItaguaí (RJ), José AlexOliveira.
No caso da Receita, as ameaças relativas a Dehon e Oliveira não saíram do papel: nas últimas semanas, servidores do órgão fizeram protestosvárias cidades e ameaçaram entregar os cargos.
Na Polícia Federal, Saadi já tinha dito que gostariadeixar a Superintendência do Rio - porém, isso só aconteceria no fim do ano. A pressão do Palácio do Planalto acabou acelerando as coisas, e ele foi convidado para ocupar um cargo a ser criado na Holanda.
Em seu lugar, o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, decidiu colocar o atual superintendente da PolíciaPernambuco, Carlos Henrique Oliveira Sousa. Mas Bolsonaro interveio novamente e anunciou Alexandre Silva Saraiva, hoje chefe da PF no Amazonas, para a vaga.
"Agora há uma onda terrível sobre superintendência. Onze foram trocados e ninguém falou nada. Sugiro o caraum Estado para ir para lá, 'está interferindo'. Espera aí. Se eu não posso trocar o superintendente, eu vou trocar o diretor-geral", disse Bolsonaro no dia 22agosto.
"O que causa muita estranheza é esse nívelinterferência, einsistência (da parte do governo)", diz um delegado da PF, sob condiçãoanonimato. "É normal e esperado que um novo ministro da Justiça troque o diretor-geral da PF, que é o chefe administrativo do órgão. Mas não é normal interferir num cargoquarto escalão como osuperintendente."
Segundo o mesmo delegado, ao se opor à propostagarantir autonomia à PF, Bolsonaro estaria permitindo "que se veja a PF como uma instituiçãogoverno, e nãoEstado".
"Imagine que amanhã aparece uma operação contra adversários políticos dele no Rio. Ou que investigações sobre aliados dele fiquem paradas. Isso colocadúvida a credibilidade da PF", diz esse delegado.
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