Por que cidade dos EUA pioneiraoferecer reparações a moradores negros virou alvoprocesso:

Homem caminhando na rua, passando por placaque se lê: Bem-vindo à cidadeEvanston2021

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Evanston foi a primeira cidade americana a oferecer reparações financeiras a moradores negros

Agora, porém, Evanston virou alvouma ação judicial que poderá ter impactoprogramasreparações no resto do país.

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No finalmaio, a Judicial Watch, organização sem fins lucrativos que se descreve como “uma fundação educacional conservadora e apartidária, que promove a transparência, a responsabilidade e a integridade no governo, na política e na lei”, anunciou que estava processando a cidade.

O processo contesta o uso da raça como requisitoelegibilidade para o programareparações e alega que esse critério representa discriminação racial contra moradores que não são negros e, portanto, viola a cláusulaigualdadeproteção da 14ª Emenda à Constituição americana.

A ação coletiva foi movidanomeseis moradores que não são negros e pede que o uso da raça no programaEvanston seja declarado inconstitucional e que a cidade seja proibidacontinuar a usar esse requisito. Os autores pedem ainda indenizaçãoUS$ 25 mil cada, mesmo valor destinado aos beneficiados pelo programa.

“O programareparaçõesEvanston nada mais é do que uma manobra para redistribuir o dinheiro dos impostos a indivíduos com base na (sua) raça”, diz o presidente da Judicial Watch, Tom Fitton.

“Este esquema discrimina inconstitucionalmente qualquer pessoa que não se identifique como negra ou afro-americana”, afirma.

A gerentecomunicações da cidadeEvanston, Cynthia Vargas, diz à BBC News Brasil que não pode comentar os detalhesprocessos pendentes.

“Mas vamos defender veementemente o programareparações da nossa cidadequalquer ação judicial”, ressalta Vargas.

Os detalhes do programa

Bandeira do movimento Black Lives Matter fincadafrente a uma casa na cidadeEvanston2021

Crédito, Scott Olson/Getty Images

Legenda da foto, Ação judicial contesta uso da raça como requisito para programa reparações— e alega discriminação contra residentes que não são negros
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Apenas cerca16% dos 75 mil habitantesEvanston são negros. Durante décadas, essa fatia da população foi alvomedidas discriminatórias que eram comunsvárias cidades americanas na primeira metade do século passado.

Escriturasmuitas cidades tinham “cláusulasrestrição racial”, barrando pessoas que não fossem brancasocupar certas propriedades. Outras vezes, proprietários simplesmente se recusavam a vender para compradores negros.

Essas e outras restrições acabavam empurrando os moradores negros para áreas menos valorizadas, afetandocapacidadeacumular riqueza por meioimóveis e, assim,repassar essa riqueza a seus descendentes. O impacto dessas medidas ainda persiste ao redor do país.

Conforme os dados mais recentes do censo, cerca44% das famílias negras nos Estados Unidos têm casa própria, bem abaixo da taxa72% entre famílias brancas. Propriedadesáreasmaioria branca continuam a ter maior valor do que nos bairrosmaioria negra.

Ao elaborar seu programareparações, Evanston encomendou um relatório detalhado sobre as políticas discriminatórias adotadas entre 1919 e 1969 e seu impacto sobre a população negra.

Segundo o documento, mesmo após 1969, quando entrouvigor uma lei proibindo discriminação no setormoradia da cidade, ainda persistiu por anos a prática na qual corretoresimóveis tentavam empurrar compradores e inquilinos negros para determinados bairros.

O programareparações está aberto a pessoas negras que moravamEvanston entre 1919 e 1969 ou cujos pais, avós ou bisavós viviam na cidade. Residentes negros que possam comprovar que foram discriminados após 1969 também podem se candidatar.

Inicialmente, os contemplados recebiam US$ 25 mil dólares na formasubsídios para ajudar na compra ou reformaimóvel. Posteriormente, foi incluída a possibilidadereceber o pagamentodinheiro, para ser usado como o beneficiado preferir.

Quando foi estabelecido,2019, o fundoreparações previa um totalUS$ 10 milhões(cercaR$ 53 milhões) ao longodez anos, financiados principalmente com impostos sobre a vendamaconha, que havia sido recentemente legalizada no Estado.

Outros US$ 10 milhões, provenientesimpostos sobre a vendaimóveis, foram adicionados mais tarde, elevando o total destinado ao programa a US$ 20 milhões (cercaR$ 106 milhões) ao longodez anos.

O início da distribuição dos recursos foi aprovado pela Câmara Municipal2021, e os primeiros beneficiados começaram a receber os subsídios2022. Em relatóriomaio deste ano, a cidade informou que 193 pessoas receberam pagamentos até agora, e outras 390 já foram aprovadas.

Os detalhes do processo

O processo contra Evanston alega que, ao contemplar apenas pessoas negras, o programa estaria discriminando indivíduosoutras raças. Um dos pontos destacados é oque os candidatos ao programa precisam declarar se eles e seus ancestrais se identificam como negros ou afro-americanos.

A ação coletiva diz que os seis moradores representados “satisfazem todos os requisitoselegibilidade como descendentes diretos (de pessoas que viveramEvanston1919 a 1969), exceto o requisito racial”.

Os autores criticam o fatoque, contanto que sejam negros e tenham vivido na cidade entre 1919 e 1969 ou sejam descendentesmoradores desse período, os candidatos ao programa não precisam comprovar que sofreram discriminação. Essa exigência vale apenas para os que dizem ter sido discriminados após 1969.

“O uso da raça (pelo programa) como indicadorter sofrido discriminação entre 1919 e 1969 não limita a elegibilidade a pessoas que realmente sofreram discriminação durante esse período e, portanto, é excessivamente inclusivo”, diz o texto do processo.

Os autores da ação argumentam que o programa deveria ser limitado a pessoas que possam provar que foram discriminadas pelas políticas adotadas pela cidade.

“(A cidade) não considerou alternativas racialmente neutras, como exigir que os possíveis beneficiários demonstrassem que eles ou seus pais, avós ou bisavós realmente sofreram discriminação habitacional durante o período relevante”, diz o processo.

A Judicial Watch tem um amplo históricoações judiciais contestando o que considera “discriminação inconstitucional”diversas cidades e Estados americanos, envolvendo programas que beneficiam pessoas com baseraça ou gênero, entre outros pontos.

Desde que a Suprema Corte, mais alta instância da Justiça dos Estados Unidos, proibiu o uso da raça dos candidatos como critério para admissãouniversidades, no ano passado, várias organizações ao redor do país vêm contestando ações afirmativasdiferentes setores.

“A decisão da Suprema Corte deu confiança a esses grupos”, diz à BBC News Brasil o professordireito Justin Hansford, da Universidade Howard,Washington.

“Mas é preciso deixar claro que há uma enorme diferença entre ações afirmativas e reparações, especialmente no âmbito da lei”, ressalta Hansford, que é especialistareparações e foi nomeado pelos Estados Unidos para servir como membro fundador do Fórum PermanentePessoas Afrodescendentes da ONU.

Hansford salienta que, enquanto a decisão da Suprema Corte teve como alvo as ações afirmativas, concebidas para ampliar a diversidade, no casoreparações o objetivo é reparar danos passados.

“No casoreparações, você precisa ter uma discussão aberta sobre os danos que aconteceram no passado”, salienta Hansford. “Você não pode simplesmente dizer ‘vamos focar no futuro’.”

“A ação (contra Evanston) tenta fazer parecer que qualquer tema envolvendo justiça racial é abrangido pela decisão da Suprema Corte. Mas isso não é verdade”, afirma.

Impactooutras iniciativas

Imagem aéreaEvanston

Crédito, City of Evanston

Legenda da foto, O programareparaçõesEvanston tem como foco políticas habitacionais que discriminavam a população negra

Um ponto importante na ação contra Evanston é o argumentoque o programareparações viola a 14ª Emenda à Constituição americana. A mesma interpretação foi usada quando a Suprema Corte proibiu ações afirmativasuniversidades.

A 14ª Emenda foi adotada1868, após o fim da Guerra Civil. Com a abolição da escravidão, o objetivo era garantir igualdadedireitos aos americanos negros.

Mas o argumento contra programas que beneficiem minorias raciais é oque, assim como a 14ª Emenda proíbe negar a alguém igualdadeproteção perante a lei por contasua raça, o governo também não pode recompensar alguém com base emraça.

“(Essa interpretação) significa tentar agir como se você não pudesse falar sobre raça quando estiver usando a 14ª Emenda. Isso vai contra a intenção da 14ª Emenda e a forma como ela existe há mais100 anos”, opina Hansford.

O processo contra Evanston recém foi anunciado, e ainda não há previsãocronograma para uma decisão. Mas o resultado pode ter impacto sobre propostasreparações ao redor dos Estados Unidos.

O debate sobre reparações voltou a ganhar força na esteira dos protestos contra injustiça racial que se espalharam pelo país2020. Atualmente, há iniciativas ou estudos sobre reparações,diferentes estágios e formatos,dezenascidades eEstados como Califórnia e Nova York.

Mas apesar das várias propostas recentes, o tema ainda gera polêmica. Segundo o institutopesquisas Pew Research Center, somente 30% dos americanos dizem que descendentespessoas escravizadas no país devem receber algum tipopagamento.

“As opiniões sobre reparações pela escravidão variam amplamenteacordo com raça e etnia”, diz o instituto, ao ressaltar que 80% dos brancos, 65% dos asiáticos e 58% dos hispânicos rejeitam a ideia. Entre os entrevistados negros, 17% são contra.

Os apoiadores das reparações costumam ressaltar que os impactos cumulativos da escravidão, segregação e discriminação são visíveis ainda hoje nas desigualdades raciaisrenda e riqueza que persistem nos Estados Unidos.

Mas críticos questionam a viabilidadecompensar os descendentes dos escravizadosmaneira justa. Além disso, consideram injusto exigir que o pagamento seja arcado por contribuintes atuais, que não têm ligação com o período da escravidão ou com as antigas leissegregação.

Mesmo entre os apoiadores, há divergências sobre como definir quem teria direito e qual a melhor formacompensação. Alguns propõem pagamentos diretosdinheiro, outros reparações por meioprogramasáreas com grandes disparidades, como saúde, educação, emprego e habitação.

“Muitas campanhas (por reparações) estão preocupadas com a ação (contra Evanston)”, diz Hansford. “É parteuma guerra mais ampla contra reparações no país.”