Guerra do Paraguai, 160 anos: as descobertas que contradizem o que a escola ensinou sobre o conflito sangrento:casa mais cassino

Crédito, Domínio Público

Legenda da foto, Francisco Solano López (1827-1870) foi o autor da declaraçãocasa mais cassinoguerra que tornaria o conflito entre os países sul-americanos inevitável

"Onde está qualquer documento que prove que foi a Inglaterra? Não existe um documento oficial, não existe nada que mostre que o governo inglês tinha interessecasa mais cassinofazer uma guerra na região", diz o historiador Francisco Doratioto, professor aposentado da Universidadecasa mais cassinoBrasília (UnB). O especialista concedeu entrevista à BBC News Brasil na manhãcasa mais cassinoterça-feira (10/12).

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A visão contemporânea que se tem do conflito, deflagrado oficialmente com a declaraçãocasa mais cassinoguerra do Paraguai ao Brasilcasa mais cassino13casa mais cassinodezembrocasa mais cassino1864, véspera da invasão das forças do país vizinho à então província do Mato Grosso, é aquela que foi construída por historiadores como Doratioto depoiscasa mais cassinominuciosa pesquisacasa mais cassinodocumentos históricos paraguaios, brasileiros, argentinos, uruguaios e ingleses.

Em 2002, o historiador lançou seu mais conhecido livro: Maldita Guerra: Nova História da Guerra do Paraguai, consolidando-se como autoridade no tema. Outros estudiosos que foram reconhecidos pela reescrita da história dessa guerra foram os historiadores Ricardo Salles (1950-2021) e,casa mais cassinoforma pioneira, Moniz Bandeira (1935-2017).

A Guerra do Paraguai duroucasa mais cassinodezembrocasa mais cassino1864 a marçocasa mais cassino1870. De um lado estava a pequena República do Paraguai, com cercacasa mais cassino400 mil habitantes. De outro, a Tríplice Aliança formada por Brasil, Argentina e Uruguai — juntos, somavam pouco maiscasa mais cassino11 milhõescasa mais cassinohabitantes.

O resultado foi arrasador. Calcula-se que a população paraguaia tenha se reduzido para menoscasa mais cassino190 mil pessoas. "90% dos homens morreram", afirma Doratioto. "Do sexo masculino, sobraram apenas idosos e crianças."

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Versão da história atribuiu ao Duquecasa mais cassinoCaxias, comandante das tropas brasileiras, atrocidades na guerra com o Paraguai

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Doratioto explica que a versão outrora ensinada no Brasil acabou se tornando a mais conhecida e difundida no país, sobretudo por conta da ditadura militar. E seu registro mais popular foi o livro Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai, publicadocasa mais cassino1979,casa mais cassinoautoria do jornalista Júlio José Chiavenato.

"Ele não é historiador e comete erroscasa mais cassinometodologia que qualquer alunocasa mais cassinograduação [se o fizesse] não seria aprovado na matéria", aponta Doratioto. "Mas tem o grande méritocasa mais cassinoreviver o tema que estava abandonado pelos historiadores e por militares que vinham com uma visão ufanista e oficial da guerra."

Nessa obra, nota-se que o autor tenta passarcasa mais cassinoindignação pelas crueldades cometidas pela guerra. "Ele vai pelos corações e ganha pela emoção", analisa Doratioto. "Na época, ao ler aquilo, eu achei correto."

Tanto que o historiador foi um dentre a imensa maioriacasa mais cassinosua geração que contava essa versão nas salascasa mais cassinoaula, quando professorcasa mais cassinocolégioscasa mais cassinoSão Paulo.

"Eu ensinei isso", admite. "Lembro-me que tinha um aluno brilhante que, no finalcasa mais cassinouma aula, me perguntou: mas, professor, se a Inglaterra queria acesso ao mercado paraguaio e fez a guerra para ter esse acesso, qual era a lógicacasa mais cassinodestruir esse mercado?"

O revisionismo que trouxe à tona essa narrativa, na época, tinha um foco: desmoralizar os militares que autoritariamente chefiavam o país. E,casa mais cassinoquebra, criticar a influência imperialistacasa mais cassinoforças estrangeiras.

"No momento históricocasa mais cassinoque aquilo foi escrito,casa mais cassinopleno regime militar, os setores democráticos da sociedade tinham perdido o espaço", contextualiza.

"De repente apareceu um livro que dizia que o Caxias, que é o patrono do Exército brasileiro, tinha feito praticamente crimescasa mais cassinoguerra, mandando jogar cadáveres coléricos no rio Paraguai para contaminar tropas paraguaias", comenta Doratioto. "O livro desmoralizava os ícones do regime militar. Dava à guerra ideológica uma vantagem contra o regime militar."

Nesse exemplo trazido pelo historiador, a narrativa écasa mais cassinoque o marechal Luís Alvescasa mais cassinoLima e Silva (1803-1880), o Duquecasa mais cassinoCaxias, que comandava as tropas brasileiras no Paraguai, teria determinado que os corpos daqueles que haviam morrido por uma epidemiacasa mais cassinocólera que matou 4 milcasa mais cassinoseus soldados fossem jogados no rio Paraguai, nos arredorescasa mais cassinoHumaitá, para que contaminassem os soldados paraguaios entrincheirados a quilômetros alicasa mais cassinouma guerra biológica.

Mas Doratioto aponta contradições: a primeira,casa mais cassinocunho geográfico. O sentidocasa mais cassinoque corre o rio é contrário ao que faria sentido nessa narrativa. "Os cadáveres nadaram contra a corrente? Isto é absurdo", provoca o historiador.

O outro é o fatocasa mais cassinoque os militares tinham o costumecasa mais cassinoqueimar ou enterrar os que morriam durante as campanhas. "Como era uma região pantanosa, a água do rio acabou contaminada. E isso provocou a epidemia que matou ainda mais soldados brasileiros", explica ele.

Em carta destinada à mulher, Caxias lamentou que havia perdido "um exército" antes mesmocasa mais cassinoentrarcasa mais cassinocombate, já que quase 4 mil soldados brasileiros morreramcasa mais cassinocólera no episódio.

Outro problema da narrativa difundida por Chiavenato foi pintar o Paraguai como um paíscasa mais cassinooutro patamarcasa mais cassinodesenvolvimento, com industrialização avançada, ferrovias e uma sociedade baseada na justiça social.

Crédito, Domínio Público

Legenda da foto, Ilustração mostra um acampamentocasa mais cassinomilitares brasileiros durante a Guerra do Paraguai

"Indústria pesada no Paraguaicasa mais cassino1864? Praticamente não existia. Tinha uma fundição. Protossocialismo? Como protossocialismo? Era uma estruturacasa mais cassinoexploração do camponês que colhia erva-mate e mesmo pela lógica marxista havia uma, entre aspas, mais-valia apropriada pelo Estado paraguaio do camponês", exemplifica.

Para Doratioto, a ideiacasa mais cassinomirar no imperialismo inglês e vilanizá-lo pelas crueldades da guerra também encontra justificativa no cenário da ditadura. A esquerda ideológica brasileira tinha como inimigo o imperialismo norte-americano, pois os Estados Unidos apoiaram o golpecasa mais cassino1964 e os governos militares da região. Assim, mudava-se o protagonista, mas havia uma mesma semântica para configurar o "inimigo".

Se essa versão revisionista da história se tornou popular no Brasil por conta da esquerda, o curioso é que na Argentina ela se consolidou pela direita.

"[No país vizinho, essa narrativa] É basicamente o pensamento autoritário da direita xenófoba que vem desde as décadacasa mais cassino1920 e 1930, um pensamento que se constrói contra os ingleses, contra o imperialismo inglês", afirma. "E no Brasil ele é reciclado frente a um sentimento anti-Estados Unidos."

Por que a guerra?

Desde acasa mais cassinoindependência,casa mais cassino1811, o Paraguai vivia uma situação atípica. Encurralado e sem acesso ao mar, tinha dificuldade para escoar internacionalmente seus produtos — erva-mate e madeira, basicamente.

No centro do continente e sem oferecer as riquezas que eram importantes no mundo colonial, ou seja, metais preciosos, o Paraguai já havia experimentado um certo isolamento durante o domínio espanhol. Isso impactou na formaçãocasa mais cassinosua sociedade.

"Era e ainda é a única sociedade na América do Sul bilíngue, com a cultura guarani entranhada na cultura do colonizador", exemplifica Doratioto.

Além disso, a população feminina era maior do que a masculina. Isso se dava justamente porque, com a faltacasa mais cassinoouro e prata, o território acabou se tornando pontocasa mais cassinopassagem para o contrabando — as mulheres se fixavam, mas os homens iam e vinham.

Com a independência das antigas colônias hispânicas, a elitecasa mais cassinoBuenos Aires "tentou se tornar um centrocasa mais cassinopoder", explica o historiador. "Eles buscavam manter subordinadas a ela todas as províncias do antigo Vice-reino do Rio da Prata, ou seja, Uruguai, Bolívia e Paraguai", diz ele.

O Paraguai se recusou e acabou sozinho.

No comando do país estava o ditador Gasparcasa mais cassinoFrancia (1766-1840). "Ele estabeleceu uma ditadura impressionante, quase surrealista", analisa Doratioto. "Para se ter uma ideia, ele rompeu com Roma e estabeleceu uma Igreja Católica própria. E proibiu casamento interculturais, prendeu parte da elite…"

Crédito, Domínio Público

Legenda da foto, Foto antiga mostra o Exército brasileiro na Guerra do Paraguai

O isolamento sul-americano só fortaleceu seu regime, pois acabava justificando a necessidadecasa mais cassinoseu poder autoritário e centralizado.

Seu sucessor foi Carlos Antonio López (1790-1862) que, segundo Doratioto, "tinha uma visão muito clara da situação" complicada que enfrentava o país. "Ele tenta abrir o Paraguai, controladamente", comenta.

Nesse processo, ganhou o apoio do Império Brasileiro. Que também tinha seus interesses: não queria que a Argentina fosse tão poderosa, no xadrez geopolítico que se desenhava na América do Sul.

López decidiu criar uma elite preparadacasa mais cassinoseu país. Financiou o enviocasa mais cassinoduas dezenascasa mais cassinojovens para estudar na Europa, contratou uma empresa inglesa para representar os interesses paraguaios junto às grandes potências e começava a investircasa mais cassinomaterial bélico. Ele também contratou técnicos ingleses para fazer obras pontuaiscasa mais cassinoinfraestruturacasa mais cassinoseu território.

"Mas o Paraguai era um país agrícola, não tinha escolascasa mais cassinonível superior, tinha apenas uma fundiçãocasa mais cassinoferro e uma pequena ferrovia que ligava Assunção a um acampamento militar e que foi a terceira da América Latina", aponta.

A modernização experimentada pelo Paraguai, segundo o historiador, tinha finalidades apenas militares,casa mais cassinodefesa. Não visava a uma sociedade igualitária ou à justiça social.

Comcasa mais cassinomorte, a presidência foi assumida pelo filho, Francisco Solano López (1827-1870). Que, menos pragmático do que o pai, acabou sendo o autor da declaraçãocasa mais cassinoguerra que tornaria o conflito entre os países sul-americanos inevitável.

De acordo com o historiador Moniz Bandeira, a motivação do conflito foicasa mais cassinonatureza econômica. Naquela décadacasa mais cassino1860, o isolado Paraguai estava sem caixa para continuar o tímido porém calculado projetocasa mais cassinomodernização empreendido por López pai.

"Para aumentar as exportações, o Paraguai precisava achar uma saída para o mar", resume Doratioto. O historiador, contudo, comenta que mesmo se esse acesso fosse possível o país teria dificuldades. "Era um pequeno paíscasa mais cassinoagriculturacasa mais cassinotécnicas medievais. E nenhum agricultor [paraguaio] tinha interessecasa mais cassinoproduzir mais para a exportação. Eram agricultorescasa mais cassinosubsistência,casa mais cassinoum nível muito baixo."

O investimento inglês

Um dos achadoscasa mais cassinoDoratioto que indicam que a Grã-Bretanha não queria uma guerra na América do Sul é uma carta do diplomata Edward Thornton, então o embaixador britânico na Argentina e no Paraguai — baseadocasa mais cassinoBuenos Aires, já que Assunção não contava com este posto.

Dirigindo-se ao chanceler paraguaio José Berges, o inglês escreveu que "a Inglaterra também estácasa mais cassinoatritos com o Brasil" e que "particularmente sim, se puder servir, no mínimo que seja, para contribuir para a reconciliação dos dois países [Paraguai e Brasil], espero que Vossa Excelência não hesitecasa mais cassinome utilizar".

A carta é datadacasa mais cassino7casa mais cassinodezembrocasa mais cassino1864, cinco dias antes da declaraçãocasa mais cassinoguerra emitida pelo governo paraguaio.

Um dos principais pontos da historiografia revisionista é dizer que a prova do interesse e do envolvimento inglês seria o fatocasa mais cassinoque houve financiamento da potência europeia nas campanhas brasileira e argentina que acabariam dizimando metade do Paraguai.

De fato, esses empréstimos ocorreram. Mas Doratioto tem argumentos para contextualizar esse fato. "A lógica do capital não tem nacionalidade nem patriotismo. O capital estácasa mais cassinobuscacasa mais cassinoremuneração e garantia", pontua. "Banqueiros ingleses emprestaram para o Brasil e para a Argentina, claro. Vão emprestar para o Paraguai, um país isolado no interior do continente, sem acesso ao mercado externo, sem ouro e fazendo guerra contra três países por iniciativa própria?"

Ele ainda lembra que esse financiamento inglês nem foi tão representativo como se imagina para o lado brasileiro da guerra. Segundo o historiador, cercacasa mais cassino12% das despesascasa mais cassinoguerra do Brasil foram bancadas com empréstimos estrangeiros, apenas.

Violência militar

Crédito, Domínio Público

Legenda da foto, Brasil cometeu atrocidades na Guerra do Paraguai, mas elas também foram usadas para manchar a imagem do patrono do Exército, diz o historiador

Sobre as atrocidades da guerra cometidas por Duquecasa mais cassinoCaxias e suas tropas, Doratioto concorda que elas foram ressaltadas para manchar a imagem do patrono do Exército no contexto da ditadura. Mas ele as confirma.

Em seu livro, por exemplo, o historiador conta que os combatentes brasileiros chegaram a matar crianças que se passavam por soldados nas trincheiras paraguaias.

"Guerra é sempre uma selvageria. As acusações contra o Caxias fazem partecasa mais cassinouma dialética da guerras: todos os chefes militarescasa mais cassinocombate deram ordem para matar, até a Segunda Guerra vencia uma guerra quem matava mais", argumenta.

Doratioto avalia que a figura histórica do Duquecasa mais cassinoCaxias "até hoje não foi suficientemente explorada pelos historiadores". E entende que "desmoralizá-lo", na época da ditadura, "era desmoralizar o regime militar".