Hanseníase: a doença antiga que a ciência não consegue eliminar:
Mas a culpa pode não ser do tatu. Acredita-se que os seres humanos possam ter transmitido originalmente a doença para esses animais, quando os europeus a trouxeram para o Brasil, cerca500 anos atrás.
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Cientistas também encontraram recentemente a bactériaesquilos-vermelhos no Reino Unido. Mas, apesar das extensas pesquisas, nenhum outro portador animal foi encontrado até agora.
Houve até sugestõesque os esquilos-vermelhos poderiam ter sido responsáveis por espalhar a doença na Europa medieval. Mas podem existir outros abrigos naturais para a bactéria, que já foi descoberta sobrevivendo até no solo, segundo amostras analisadas no Reino Unido, Índia e Bangladesh.
A hanseníase é uma doença infecciosa crônica, que ataca a pele, os nervos e as membranas mucosas. Ela gera manchas brancas no corpo, dormência, fraqueza muscular e paralisia.
Mas, apesar das suas consequências devastadoras e do registrocasos possivelmente desde o ano 1400 a.C., essa doença antiga permanece até hoje,grande parte, um mistério.
Ninguém sabe com surgiu a hanseníase, nem por que algumas partes do mundo são mais afetadas do que outras. Os cientistas também não sabem ao certo como ela é transmitida - e ainda não existe uma forma fácildiagnosticar uma pessoa.
Por que a hanseníase é um problema tão difícilresolver? E o que podemos fazer a respeito?
Perdapacientes
"É uma doença muito complexa e,grande parte, a hanseníase segue sendo um quebra-cabeça intrigante, até hoje", afirma Gangadhar Sunkara, cientista especializadodesenvolvimentodrogas e chefe do programa global da companhia farmacêutica Novartis.
Apesar dos avanços significativos para conter a doença, até três milhõespessoastodo o mundo ainda vivem com hanseníase e,média, 200 mil novos casos são diagnosticados todos os anos, segundo as estatísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Mas,2020, esse número caiu para 128 mil casos, segundo Cairns Smith, professor eméritosaúde pública da UniversidadeAberdeen, no Reino Unido, e ex-diretor da organização Leprosy Mission.
Ao longodois anos, cerca140 mil casos deixaramser detectados, segundo os dados da OMS. Acredita-se que esta omissão tenha sido causada,grande parte, pelas dificuldades impostas pela pandemiacovid-19 aos sistemassaúdetodo o mundo.
"Eles não foram diagnosticados, nem tratados, e estãosério riscodesenvolver incapacidades", afirma Smith.
São particularmente preocupantes os númeroscrianças que não foram diagnosticadas devido às dificuldades impostas pela pandemia. Pelo menos 15 mil dos novos casos detectados anualmentetodo o mundo sãocrianças.
Ser infectado com a doença na infância significaria evitar incapacidades duradouras. "Mas esses números [de crianças que recebem diagnóstico] caíram para 8 mil a 9 mil casos", segundo Smith. "Isso significa que existem muitas crianças que estãoriscodesenvolver a doença."
"Alguns países estão mostrando recuperação, mas ainda existe baixa detecçãocasospaíses como Mianmar, Sri Lanka e Filipinas", prossegue ele. "Atualmente, estamos realmente enfrentando um desafio urgente."
O mundo fez grandes avanços no tratamento da hanseníase nas últimas quatro décadas, especialmente com a introdução da terapia com múltiplas drogas pela OMS, para tratar a hanseníase multibacilar1982. A hanseníase multibacilar é uma forma mais avançada da doença, frequentemente caracterizada por lesões da pele e incapacidade.
Um tratamento novo é a terapia com múltiplas drogas, uma combinaçãotrês comprimidos. Dois deles são administrados uma vez por mês e o outro, diariamente.
Este tratamento apresenta impactos enormestermossuspensão do avanço da doença. É o mais próximo que já conseguimos chegar da cura e evita o surgimentoincapacidades entre as pessoas afetadas.
Mas a terapia não conseguiu impedir o surgimentonovos casos, segundo explica Venkata Pemmaraju, líderequipeexercício do Programa Global sobre Hanseníase da OMS, que trabalha com questões relacionadas à hanseníase há quatro décadas.
Velhos desafios
O que faz com que essa doença antiga seja tão persistente? Segundo Sunkara, diversos fatores estão envolvidos.
Em primeiro lugar, o baciloHansen reproduz-se com extrema lentidão. Por isso, uma pessoa infectada pode levar dois a 20 anos para exibir qualquer sintoma da doença.
O tempo médioincubação da doença (ou seja, o período entre a exposição à bactéria e o surgimento dos primeiros sintomas) écinco anos e,casos raros, um paciente pode passar duas décadas sem apresentar sintomas.
"Esta bactéria tem um tempoincubação mais longo", afirma Sunkara. "Leva cerca14 dias para que uma bactéria se dividaduas no corpo,comparação com outras bactérias causadorasdoenças que podem dobrarquantidademinutos."
Comparativamente,condições ideais, a bactéria intestinal comum Escherichia coli, que tem algumas linhagens que podem causar envenenamento alimentar, pode dividir-se uma vez a cada 20 minutos.
O longo tempoincubação é problemático não só para o paciente, mas também para os que estão àvolta. Durante esse período, um paciente que não sabe que foi infectado pode transmitir a infecção para os demais, especialmente para seus contatos próximos, como membros da família.
Após o estabelecimento e o desenvolvimento da infecção na forma multibacilar, o tratamento da hanseníase pode levar até dois anos, mesmo com uma combinaçãoantibióticos.
A resistência aos antibióticos é outra questão importante. O tratamento original da hanseníase era o antibiótico dapsona, que se descobriu ser eficaz contra a bactéria nos anos 1940. Antes dele, a doença era incurável.
Mas, nos anos 1960, a droga já estava perdendo a eficácia. Atualmente, existem diversas opções mais eficientes, particularmente o antibiótico rifampicina.
A abordagem modernausodiversos antibióticosconjunto foi criada,parte, para evitar o novo desenvolvimentoresistência, mas esta preocupação permanece presente.
Com diagnóstico e tratamento precoce, a hanseníase é eliminada com muito mais facilidade. Mas, infelizmente, diagnosticar a hanseníase é extremamente difícil.
O método padrão atual é fazer uma biópsia. Nesta técnica, é feita uma incisão minúsculauma lesão da pele, através da qual o sangue é espremido. A polpa e o fluido do tecido são então coletados para exame no microscópio.
Mas este método é caro e trabalhoso, pois exige um laboratório e conhecimento técnico. Ele é particularmente difíciláreas rurais, onde nem sempre são disponíveis instalaçõeslaboratório, epaísesbaixa renda, onde a hanseníase é comum e os recursos são escassos.
"Como resultado, muitos pacientes são diagnosticados com curso adiantado da doença, quando já ocorreram lesões da pele e dos nervos", afirma Sunkara.
Esta questão é agravada pelo fatoque os cientistas ainda não sabem exatamente como a hanseníase é transmitida. É surpreendentemente difícil ser infectado e, muitas vezes, são necessários vários mesescontato próximo com uma pessoa infectada.
O consenso atual é que, provavelmente, ela é transmitida por gotículas no ar quando alguém tosse ou espirra, mas pode haver outros caminhos, como a pele.
Por isso,vezpassar pelo trabalhoso processodiagnóstico, uma opção é tratar imediatamente as pessoas que possam ter sido expostas.
"Para evitar a difusão da hanseníase,2018, a OMS introduziu uma intervenção significativa: os contatos próximos dos pacientes com hanseníase foram rastreados e receberam uma dose únicarifampicina", explica Pemmaraju.
Concluiu-se que a intervenção tem efeito protetorcerca55-60%. Mas a pandemia interrompeu o diagnóstico, levando à perda140 mil casostodo o mundo, o que traria consequências para a difusão da hanseníase.
"Considerando que cada paciente com hanseníase tenha 10 contatos, são mais1,5 milhãopessoas que estãoriscodesenvolver hanseníase porque não conseguiram tomar a dose únicarifampicina", afirma Smith.
O tratamento com rifampicina teve impacto significativopaíses como Gana, segundo Benedict Quao, chefe do Programa NacionalControle da HanseníaseGana, que é membro da Parceria Global para a Erradicação da Hanseníase.
"Pela primeira vez, os países receberam orientações médicas para poder forçar a liderança política a agir", afirma ele.
A pandemiacovid-19,grande parte, é responsável pela interrupção deste novo programa. Mas ela também introduziu uma ferramenta útil: o rastreamentocontatos.
Este método tem sido útil para identificar os contatos dos pacientes com hanseníasemuitas regiões, fazendo com que eles recebam uma dose do antibiótico preventivo. O problema é que alguns países talvez não consigam mobilizar recursos suficientes para o fornecimento regularrifampicina aos contatos dos pacientes com hanseníase, segundo Quao.
"Em Gana, nós tivemos essa experiênciaseis das nossas 16 regiões e queremos ampliá-la", afirma ele. "É uma boa época para termos essa intervenção, mas não é uma intervenção perfeita. Os países reconhecem isso."
Se fosse disponível um examediagnóstico rápido e eficaz, que não fosse invasivo, muitos desses casos perdidoshanseníase e os contatos próximos dos pacientes poderiam ser identificados, sem necessidadeprescriçõesrifampicina para indivíduos potencialmente saudáveis. A boa notícia é que esses examesdiagnóstico estão atualmente sendo desenvolvidos, embora possam não ser disponíveis por algum tempo.
Para estudar a doença,progressão e o desenvolvimentoexamesdiagnóstico, os cientistas frequentemente precisam injetar M. lepraetatus,uma técnica que foi tentada pela primeira vez1971.
"O fatonão podermos cultivar essa bactéria tão facilmenteambienteslaboratório é outro fator que dificulta o progresso do desenvolvimento desses exames", segundo Sunkara.
Novos horizontes
Em 2000, a Fundação Novartis firmou parceria com a OMS e vem fornecendo medicamentos gratuitos para a terapia com múltiplas drogastodo o mundo. E,fevereiro2022, eles firmaram parceria com a Fiocruz para realizar um estudo utilizando inteligência artificial (IA) para acelerar o diagnóstico da hanseníase.
"Chamo issoaplicar tecnologiaúltima geração a uma doença primitiva", define Sunkara.
Existem pelo menos outras 20-30 doenças da pele que se apresentam na formamanchas brancas, segundo ele. Usando o algoritmoIA para analisar as diferentes formasque a luz é refletida na superfíciecada doença da pele, é possível identificar os casoshanseníase e distingui-losoutras condições similares com muito mais precisão.
Seu estudo, publicado na revista Lancet Regional Health, definiu a previsão90%. Mas, com 1.229 imagenspele, o conjuntodados ainda é pequeno. Se o exame tiver sucessoescala maior, poderá um dia se tornar uma ferramenta útil para acelerar o diagnóstico e o tratamento da hanseníase.
Estigma persistente
Os avanços modernos no tratamento e diagnóstico da hanseníase mudaram a vidamuitos pacientes, mas existe um problema que ainda não desapareceu totalmente: a discriminação continua implacável.
"A hanseníase segue sendo uma questãodireitos humanos profundamente enraizada", segundo Alice Cruz, Relatora Especial das Nações Unidas sobre a eliminação da discriminação contra pessoas afetadas pela hanseníase, uma função que ela desempenha desde novembro2017.
Cruz afirma que existe maisuma centenaleis que discriminam as pessoas com hanseníasetodo o mundo, criando uma forte estigmatização que pode agir como barreira para o tratamento.
Em alguns países, a hanseníase pode ser motivodivórcio. A Índia era um deles, até alterar suas leis2019. Muitas pessoas afetadas pela doença ainda lutam para conseguir emprego e ter acesso à assistência médica e à educação.
"Os países deveriam fazer todo o possível para abolir as leis discriminatórias e substituí-las por políticas que possam garantir direitos sociais e econômicos às pessoas afetadas pela hanseníase", afirma Cruz.
"Indo mais adiante, deveríamos nos perguntar: nossos sistemassaúde estão trabalhando para oferecer total acessibilidade para as pessoas afetadas pela hanseníase?", questiona ela. "Isso porque a hanseníase é muito mais que uma doença. Ela se tornou um rótulo que desumaniza as pessoas atingidas por ela."
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future .