Brasil vive 'mistura tóxicaódio pessoal e polarização política', diz americano especialistademocracia na América Latina:
O americano é autordezenaslivros sobre a política da América Latina, entre eles: Decay and Collapse (Sistemas Partidários na América Latina: Institucionalização, Decadência e Colapso), Democracies and Dictatorships in Latin America: Emergence, Survival and Fall (Democracias e Ditaduras na América Latina: Surgimento, Sobrevivência e Queda), e Party Systems in Latin America: Institutionalization (Sistemas partidários na América Latina: Institucionalização).
É com essa experiência que ele analisa, com preocupação, a escaladaviolência às vésperas das eleições deste ano no Brasil.
Em entrevista à BBC News Brasil, Mainwaring diz que a morteMarcelo Arruda é resultado da "relação tóxica" entre a violência e poder político presente no país.
Segundo ele, o Brasil, assim como os Estados Unidos, vive um ambiente"ódio pessoal e polarização política".
Para o professor, a polarização no Brasil não vai desaparecer e os principais pré-candidatos à Presidência da República, Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), precisam condenar atosviolência.
"Você não pode reduzir a zero a possibilidadeum cara desequilibrado atacar a outra pessoa. Mas a mensagem das lideranças é muito importante", disse o professor.
Confira os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil - Nas últimas semanas, ocorreram alguns incidentes violentos no Brasil relacionados à campanha política. O último foi o assassinatoum membro do Partido dos Trabalhadores (PT) praticado por um apoiador do presidente Jair Bolsonaro. E isso lança algum tipoalerta sobre o que está ocorrendo no Brasil?
Scott Mainwaring - Certamente. Não pode ter espaço para esse tipoviolência política. É um atocriminalidade comum e, além disso, é um tipoato que atinge a democracia.
BBC News Brasil - Que sinal a mortealguém nessas circunstâncias manda para a comunidade internacional?
Mainwaring - Para mim, é mais um indicadoruma relação tóxica entre violência e poder político. Como fato isolado, não acho preocupante. O que é preocupante é quando você combina isso com outros incidentesviolência.
BBC News Brasil - O que o Sr. quer dizer com isso?
Mainwaring - Me refiro a outros incidentesviolência. Estou pensando na relação da política com as milícias, com o crime organizado, nos assassinatoscandidatos a prefeitos, vereador. Quando você combina tudo isso, aí, sim, é preocupante.
BBC News Brasil - Considerando o histórico político do Brasil, quão grave é a morteum militante político por um oposicionista?
Mainwaring - É um fato grave. Não lembroacontecimentos parecidos no Brasil. Isso lembra, por exemplo, os brownshirts (camisas marrons) da Alemanha nos anos 1920 e começo dos 1930. Atingeforma profunda a democracia.
[Nota: "camisas marrons" era o nome pelo qual ficaram conhecidos os primeiros integrantesuma organização paramilitar nazista fundada por Adolf Hitler1921]
BBC News Brasil - O senhor mencionou os camisas marrons. Naavaliação, esse episódio lembra a Alemanha pré-nazismo ou a Alemanha nazista?
Mainwaring - Não quero exagerar. Na Alemanha pré-nazista isso era comum. Tanto os nazistas como os comunistas tinham milícias muito grandes, inclusive maiores que o Exército alemão naquela época. Mas vai nesse sentido. Vai nessa direção.
BBC News Brasil - Quais foram os fatores que levaram o Brasil a esse nívelanimosidade que resultou, por exemplo, na morte desse membro do Partido dos Trabalhadores?
Mainwaring - Desde 2014, o Brasil sofre um processo muito gravepolarização política. E isso se acentua pela presença das mídias sociais, que exacerba a polarização política e cria uma animosidade. Elas levam essa polarização para um processoanimosidade,ódio. É possível ter um processopolarização que não se baseiaódios pessoais. Mas no Brasilhoje, como também nos Estados Unidos, você tem essa mistura tóxicaódio pessoal e polarização política.
BBC News Brasil - Considerando essa escaladaviolência, o Sr. acredita que o Brasil poderia ser palcoalgo semelhante à invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, caso um candidato não aceite o resultado das eleições?
Mainwaring - É um risco.
BBC News Brasil - É um risco alto, médio, baixo? Como o senhor classificaria?
Mainwaring - Não acho que seja grande, mas eu diria que é médio. O fatoBolsonaro denunciar os mecanismos eleitorais brasileiros e dar sinaisque pode não aceitar o resultado caso ele perca as eleições, é aí que reside o maior risco. Isso, para a democracia, é muito grave.
BBC News Brasil - O Brasil tem sido descrito por especialistas como um dos países da terceira ondademocratização onde os fundamentos e funcionamento da democracia iam relativamente bem. Esses episódios violentos mais recentes indicam uma deterioração da democracia brasileira?
Mainwaring - Sem dúvida. A democracia brasileira entre 1985 e 2012 ou 2014, realmente, tinha muitos aspectos altamente positivos. Acho que a degradação da democracia brasileira nos últimos cinco ou seis anos é real.
A eleiçãoum presidente com perfil tão autoritário como o Bolsonaro é um sinalsi mesmo.
Quando você elege um presidente iliberal, com traços muito autoritários, isso já representa um perigo para a democracia.
Os problemas antecediam a eleiçãoBolsonaro, como a corrupção, os problemas econômicos, o aumento da violência e a perdacredibilidade, por um lado, do PT, e por outro do establishment ao centro e à direita.
BBC News Brasil - Considerando a quantidadearmas circulando no Brasil, o Sr. teme que o país vá na direçãouma realidadeque atosviolência política sejam mais comuns? Há ambiente para uma deterioração ainda maior?
Mainwaring - Isso é possível e acho que não devíamos subestimar o quanto isso já aconteceu. O exemplo mais famoso é o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL). Mas também já aumentou o númeroassassinatoscandidatos a prefeito e vereador. Isso é grave e poderia se acentuar, mas não vejo como algo inevitável.
BBC News Brasil - O nívelpolarização tende a piorar ou melhorar até as eleições?
Mainwaring - Acho que vai piorar, porque a campanha política vai ser, certamente, entre Lula e Bolsonaro. E 40% do país tem ódio do Lula e outros 40% têm ódio do Bolsonaro. A tendência provávelLula não vai ser polarizar. Ele vai polarizar contra o Bolsonaro, mas não vai assumir posições radicais. Mas Bolsonaro sempre polariza e certamente ele vai pintar Lula como um diabo. Eu acho quase inevitável que a polarização se exacerbe nos próximos meses. Agora, depois da eleição é um momentopossível diminuição da polarização. Os dois candidatos vão ter que costurar alianças para governar o país.
BBC News Brasil - Qual é a responsabilidadeLula nesse cenáriopolarização?
Mainwaring - Acredito que o Lula poderia polarizar contra Bolsonaro, mas buscar o eleitor médio. Lula, provavelmente, vai se posicionar para ganhar o centro do Brasil. A probabilidadeele ganhar aumenta se ele pode capturar o centro do país. Para mim, a estratégia mais óbvia do Lula seria lógico denunciar o Bolsonaro, polarizar contra ele, mas se posicionar como uma alternativa sensata, uma alternativa viável ou uma alternativa que no governo não vai ser radical, não vai polarizar.
BBC News Brasil - O presidente Bolsonaro tem sido acusado por alguns críticosincentivar os seus apoiadores contra esquerdistas. Por outro lado, alguns dias atrás, o presidente Lula agradeceu a um membro do Partido dos Trabalhadores que atacou um manifestante antilula. Naavaliação, é justo dizer que Lula e Bolsonaro são igualmente responsáveis por esse ambientetensão que a gente vê no Brasil?
Mainwaring - Teria que estar no Brasil para fazer uma avaliação mais equilibrada sobre essa pergunta.
BBC News Brasil - O presidente Bolsonaro tem questionado, ainda que sem apresentar provas, a legitimidade do sistema eleitoral brasileiro. Os militares, que são muito próximos do presidente, têm colocado a integridade do sistemadúvida. O senhor acredita que as Forças Armadas brasileiras vão aceitar o resultado das eleições se Bolsonaro perder?
Mainwaring - Se Lula ganha por uma vantagem razoável, acho que a tendência dos militares, neste caso, é aceitar o resultado. E se a eleição for muito apertada? Aí, digamos, teria mais espaço para os militares não aceitarem. Acho,qualquer maneira, pouco provável que os militares não aceitem [o resultado]. Mas essa possibilidade aumenta se a eleição for extremamente apertada.
BBC News Brasil - O senhor é um dos principais especialistasdemocracia, ditaduras e ditaduras militares na América Latina. Naavaliação, existe algum espaço para uma ruptura democrática no Brasil hoje?
Mainwaring - Para a ruptura clássica via golpe militar, acho que não há espaço. Desde o fim da Guerra Fria, a maneira mais frequentea democracia se romper é pela via do que chamamos"executive takeover". Seria, digamos, quando o presidente, ao longo do tempo, degrada a democracia a tal ponto que ela deixaser um regime democrático. Um exemplo clássico é a Venezuela pós-Hugo Chávez. Outro exemplo claro é a Nicarágua e o regimeDaniel Ortega. Mas poderíamos pegar um caso como a HungriaViktor Orbán. Esse risco eu acho que é real, especialmente se Bolsonaro ganharnovo. O riscoele procurar concentrar mais o poder... os ataques dele ao STF são um indicador nefasto. Agora, Bolsonaro não deverá ter uma maioria no Congresso e isso dificulta as coisas para ele.
BBC News Brasil - Nos últimos anos, houve um relaxamento das normas no Brasilrelação à compraarmas e alguns especialistas dizem hoje que o Brasil tem mais armas circulando hoje do que no passado. Considerando todo esse ambientetensão das nossas eleições, quão preocupante é termos uma eleição neste ambiente?
Mainwaring - Não sei quão preocupante isso é para a eleição. Acho que (assassinatos como oMarcelo) são um episódio raro e que não se repetem muito. O que é mais preocupantetermos do aumentonúmeroarmas é a prática quotidiana da democracia nas áreas pobres do Brasil como as favelas do RioJaneiro. É o controle que as milícias e as organizações criminosas exercem nessas áreas e na região amazônica. Eu diria que aí a democracia brasileira sofre muito e isso não é uma novidade.
BBC News Brasil - O senhor sente que há uma preocupação maior neste ano, fora do Brasil,relação às eleições deste ano na comparação com outros anos?
Mainwaring - Certamente. A preocupação não é porque o sistema eleitoral seja frágil, mas é que um dos candidatos, Bolsonaro, poderia não aceitar o resultado.
BBC News Brasil - Existe, naavaliação, algum sinalque essa tensão que existe hoje possa se dissipar depois das eleições? Ou esse nívelpolarização é algo que veio para ficar e que vai demorar um tempo para desaparecer, se é que vai desaparecer?
Mainwaring - Se Lula ganhar, vai dependercomo ele governará. A polarização não vai se dissipar. Não há nenhuma forma para que isso passe, mas poderia diminuir. Equê maneira? Se o governoLula for exitoso, a tendência é diminuir a polarização. Por outro lado, se ele toma posições mais moderadas, isso ajudaria a diminuir a polarização. Por outro lado, se se repetem os casoscorrupção, se a economia não retomar um caminho mais positivo, se a violência não diminuir, aí a polarização provavelmente não vai diminuir.
BBC News Brasil - O Sr. mencionou que a morteMarcelo Arruda é mais um indicadoruma relação tóxica entre violência e poder político. O que é exatamente os atores políticos podem ou deveriam fazer para que episódios como esses não acontecessem?
Mainwaring - Para os candidatos Bolsonaro e Lula, sobretudo porque são os únicos que têm uma chance viável, eles têm que denunciar essa violência. Isso é muito importante. Você não pode reduzir a zero a possibilidadeum cara desequilibrado atacar a outra pessoa. Mas a mensagem das lideranças é muito importante. Você tem que renunciar o uso da violência.
BBC News Brasil - Numa declaração, o presidente Bolsonaro disse o seguinte: "Vocês viram o que aconteceu ontem? Uma briga entre duas pessoas láFoz do Iguaçu? Bolsonaro isso não sei o que ela. Agora ninguém fala que o Adélio", que é a pessoa que o esfaqueou2018 e que foi filiado ao PSOL. Nas suas redes sociais, ele não chegou a lamentar a morte do Marcelo e acusou a esquerdaviolenta. Esse tipodeclaração ajuda a acalmar os ânimos?
Mainwaring - Evidente que não. Agora, eu não sabia do incidente no qual o Lula aplaudiu a agressãoum petista contra um Bolsonaro. E isso também, no meu ver, é lamentável. Os dois têm que se pronunciar contra o uso da violência.
- Este texto foi originalmente publicadohttp://vesser.net/brasil-62144553
Sabia que a BBC está também no Telegram? Inscreva-se no canal .
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube ? Inscreva-se no nosso canal!
Este item inclui conteúdo extraído do Google YouTube. Pedimosautorização antes que algo seja carregado, pois eles podem estar utilizando cookies e outras tecnologias. Você pode consultar a políticausocookies e os termosprivacidade do Google YouTube antesconcordar. Para acessar o conteúdo clique"aceitar e continuar".
FinalYouTube post, 1
Este item inclui conteúdo extraído do Google YouTube. Pedimosautorização antes que algo seja carregado, pois eles podem estar utilizando cookies e outras tecnologias. Você pode consultar a políticausocookies e os termosprivacidade do Google YouTube antesconcordar. Para acessar o conteúdo clique"aceitar e continuar".
FinalYouTube post, 2
Este item inclui conteúdo extraído do Google YouTube. Pedimosautorização antes que algo seja carregado, pois eles podem estar utilizando cookies e outras tecnologias. Você pode consultar a políticausocookies e os termosprivacidade do Google YouTube antesconcordar. Para acessar o conteúdo clique"aceitar e continuar".
FinalYouTube post, 3