A mãecriançacinco anos presa há 100 dias por furtoágua:
"É um absurdo uma mãe ficar cem dias presa por furtoágua, um crime não violento. Ela me disse que queria pagar a conta, mas não tinha dinheiro. É uma família muito pobre, usava a água para cozinhar para o filho, para beber, tomar banho... eles viviamfavor,uma casa minúscula. Será que a prisão era a melhor solução para esse caso?", diz a defensora.
Já o TribunalJustiçaMinas Gerais e o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1),Brasília, consideraram que Maria deve ser mantida presa por ser reincidente, por supostamente ter desacatado o policial no momento da prisão pelo furtoágua, "cuspindoseu rosto", e porque não conseguiu provar ser a mãe da criança que carregava durante o episódio (leia mais abaixo).
"Os fatos já apurados e as circunstâncias dos crimes demonstram tanto a inaplicabilidade das medidas cautelares diversas da prisão, quanto o risco concreto à ordem pública, caso a autuada sejapronto colocadaliberdade", escreveu o desembargador Olindo Menezes, do TRF-1.
'Reação à prisão'
Segundo o BoletimOcorrência, por um mês a família usou a água disponibilizada pela CompanhiaSaneamentoMinas Gerais (Copasa) sem pagar pelo consumo. Questionada pela BBC News Brasil, a Copasa não informou o total do prejuízo sofrido pela empresa nem qual seria o valor da conta que a família teriapagar pelo mês que utilizou o serviço. O BoletimOcorrência também não informa esses dados.
Fotos da residência e da "gambiarra", incluídas no processo, mostram que a água era retiradaum cano e redistribuída pela casa. Segundo o IBGE,média, cada membrouma família brasileira consome 116 litroságua por dia.
Em junho, dois agentes da Copasa visitaram a casa e constataram que a família tinha violado o hidrômetro da residência. Os funcionários lacraram a instalação novamente, interrompendo o fornecimentoágua. Um mês depois, os fiscais retornaram e, segundo eles, o lacre havia sido rompidonovo. Eles contam que chamaram a Polícia Militar depoisterem sido xingados por João (nome fictício), serventepedreiro e companheiroMaria.
Em depoimento, Maria disse que voltava com o filho para casa quando encontrou uma viatura no local. Ela tentou fugir com a criança no colo quando soube que seria levada à delegacia por furtoágua.
No BO, o funcionário da Copasa relatou a reação da diarista: "Exaltou-se, esboçou agressividade, proferiu palavrasbaixo calão: 'seus policiaismerda, seus vagabundos, vão procurar bandido'". Ela teria tentado agredir e cuspirum policial — acabou algemada e "colocada no xadrez" (compartimento traseiro da viatura). O filho assistiu à cena, ao lado.
Depois, na delegacia, Maria negou ter cuspido no policial ou tentado agredi-lo. Também afirmou que foi seu companheiro, João, quem rompeu o lacre no canoágua, porque a família não tinha como pagar a conta no momento. "Usava a água para cozinhar para meu filho", disse.
"Foi uma reação espontânea e justificáveluma mãe muito pobre, que ficou desesperada ao ser presa por furtoágua. Presa na frente do filho", diz a defensora Alessa Veiga.
A diarista contou ter paradoestudar na quarta série do ensino fundamental. Ela diz ganhar entre R$ 50 e R$ 70 quando faz uma faxina.
O BO relata a versão dela: "Esclarece que só agiu assim pois o proprietário da casa, que tinha (anteriormente) deixado eles ficarem no imóvel, mandou cortar a água com eles no local. Além disso, esclarece que não poderiam ficar sem água, visto que têm uma criançacinco anos".
O serventepedreiro João também foi presoflagrante.
Em nota, a Copasa afirmou que a prisão do casal "não ocorreu por furtoágua, mas sim devido ao comportamento agressivo dos moradores contra os empregados da companhia."
"A companhia repudia qualquer atoviolência e orienta seus empregados que acionem a PM se ocorrer algum tipoagressão, verbal ou física, durante realizaçãoseus serviços", diz a Copasa.
Princípio da insignificância
O Ministério PúblicoMinas Gerais pediu o relaxamento da prisãoJoão, alegando que o crime não era violento. Ele foi solto logo depois.
Já para a diarista o MP solicitou "prisão preventiva", citando como agravantes o suposto desacato aos policiais, a "resistência à prisão" e reincidência.
A defensora pública entrou com um pedidohabeas corpus no TribunalJustiçaMinas Gerais. Um dos argumentos é que o caso se encaixa no princípioinsignificância. A Justiça, porém, negou a soltura da diarista.
Desde 2004 existe um entendimento do STF que orienta juízes a desconsiderar processosque o valor do furto é tão pequeno que não causa prejuízo à vítima do crime. Comida, água, sucata, produtoshigiene pessoal e ínfimas quantiasdinheiro, por exemplo, são considerados insignificantes. No entanto, o entendimento não é obrigatório e nem sempre é seguido pelos juízes.
Defensores ouvidos pela BBC News Brasil dizem que, nos últimos meses, tem aumentado o númerocasosfurto famélico equantias ínfimas que chegam às instâncias superiores, como STJ e STF. O volume seria um reflexo do aumento da fome no país e do desemprego.
Em 2020, cerca19 milhõespessoas passavam fome no Brasil, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19. Em 2018, eram 10,3 milhões. Ou seja, dois anos houve uma alta84,4% (ou quase 9 milhõespessoas a mais).
Em junho, o ministro Sebastião Reis Júnior, do STJ, reclamou publicamente que instâncias inferiores não estão seguindo entendimentos jurídicos já pacificados pelo STF e pelo STJ, aumentando exponencialmente o volumeprocessos que chegam aos tribunais superiores.
A crítica foi feita durante o julgamento do habeas corpusum homem acusadofurtar dois steaksfrango que valiam R$ 4.
"É um absurdo nós termosjulgar a insignificânciaum furtoR$ 4. Não são só o Ministério Público e a advocacia que insistemteses superadas, mas também os tribunais, que se recusam a aplicar nossos entendimentos. Não tem lógica isso. É uma brincadeira dizer que a política que estamos adotando no país e o comportamentotodos nós, os chamados atores do processo, estão diminuindo a criminalidade", disse.
Em casosinsignificância, o juiz pode simplesmente arquivar o processo e não determinar nenhuma medidapunição. Ou ele pode impor medidas mais brandas a serem cumpridasliberdade, como serviços comunitários, reeducação profissional ou tratamento e acompanhamento no SUS, caso a pessoa tenha problemas com drogas.
O ministro mostrou um levantamento com o númeroações criminais distribuídas ao STJ nos últimos anos.
Segundo ele,2017 foram 84.256 processos e, no ano passado, 124.276 — alta47%. Para este ano, ele projeta que serão 131.997 casos. O STJ tem duas turmascinco ministros para a área criminal — ou seja, cada um deles recebeu 12,4 mil ações só2020,média.
Certidãonascimento
No casoMaria, o pedidohabeas corpus também mencionava o fato da diarista ter um filhocinco anos. Em 2018, o STF decidiu que juízes podem substituir a prisão preventiva por domiciliarprocessos envolvendo mãescriançasaté 12 anos.
Porém, tanto o TribunalJustiçaMinas Gerais quanto o TRF-1 consideraram que não ficou provado que Maria é mãeuma criança, pois a certidãonascimento do filho não estava anexada ao processo. "Não há nos autos comprovação idôneaque a acusada é mãeuma criança menorcinco anos, a não ser a palavra desta proferida", escreveu o desembargador Orlindo Menezes, do TRF-1, ao negar o habeas corpus.
"Eles não consideraram que no próprio BO há o nome e os dados da criança, e os relatos das testemunhas e dos policiais citam que ela estava com o filho. Interessante notar que a Justiça só considerou o depoimento dos policiais quando eles disseram que ela os desacatou, mas não agiu da mesma forma quando eles mencionam o filhocinco anos", diz Alessa.
No novo pedidohabeas corpus, dessa vez ao STF, a defensora incluiu a certidãonascimento da criança, documento ao qual ela só conseguiu ter acesso neste mês.
Reincidência
Outro argumento da Justiça para manter a prisão foi o fatoMaria ser reincidente. "E ase frisar, ainda, a periculosidade concreta da flagranteada [...] Tal reiteração ilícita é mais do que suficiente para evidenciar o risco à ordem pública. Logo, a prisão preventiva na espécie tem a essencial funçãoresguardar a ordem pública e a conveniência da regular instrução processual", escreveu o desembargador Orlindo Menezes, do TRF-1.
Maria já foi condenada por roubo dez anos atrás, e cumpriu integralmentepenacinco anosprisão. Ou seja, embora não seja primária, não devia mais nada à Justiça.
Segundo defensores, a reincidência do réu é o principal argumento usado pelos magistrados para não aplicar o princípio da insignificância. Ou seja, para parte do Judiciário que acreditaendurecimento das penas como solução para o problema da criminalidade, a reincidência agrava a condição do réu e, por isso, a custódia normalmente é mantida.
No entanto, defensores públicos e alguns ministros do STJ e do STF, como Rosa Weber e Gilmar Mendes, costumam defender que a reincidência do réu não muda o fatoque o valor do furto é insignificante. Nos últimos meses, eles e também outros ministros têm usado esse argumento para soltar acusadosfurtoscomida, alémpedir o arquivamento dos processos.
O pedidohabeas corpusMaria será analisado pelo ministro AlexandreMoraes. Ainda não há data para que isso aconteça.
*Os nomes das pessoas envolvidas nesta reportagem, além da localização dos acontecimentos, foram trocados a pedido da diarista.
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