Milhõescrianças vão passar fome no Brasil neste 12outubro:

Criança busca tomates comestíveismeio ao lixo no RioJaneiroagosto2021

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Criança busca tomates comestíveis no lixo no RioJaneiroagosto2021; pandemia piorou problema da fomefamílias brasileiras
Merendaescola paulista,foto2018

Crédito, Diogo Moreira/A2IMG - GovernoSP

Legenda da foto, Estima-se que mais9 milhõescrianças vivamextrema pobreza no país, portanto com provável dificuldadese alimentar bem; dado,2019, deve ter piorado na pandemia

E uma vez que as crianças estãouma fase crucialseu desenvolvimento, é nelas que a fome pode deixar mais impactoslongo prazo. Às vezes, para a vida toda.

Há ao menos 9,1 milhõescrianças0 a 14 anossituação domiciliarextrema pobreza (vivendo com renda per capita mensalno máximo R$ 275), calcula a Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança.

Na prática, isso provavelmente significa que elas estãosituaçãoinsegurança alimentar, porque a família não terá dinheiro o suficiente para garantir todas as refeições.

"É uma situaçãoque às vezes a família consegue fazer o almoço, mas não o jantar. E não sabe o que vai acontecer naquele mesmo dia", explica Cíntia da Cunha Otoni, líder da áreasaúde da Fundação Abrinq. "Já existia uma situação grandeinsegurança alimentar, mas se agravou muito na pandemia devido à queda na renda familiar."

Distribuiçãocestas básicas no município do Rio

Crédito, Jefferson Peixoto/Secom-Pms

Legenda da foto, Cálculos apontam que custoalimentos básicos para um adulto já corrói 55% do salário mínimo; acima, distribuiçãocestas básicas no Rio

O cálculo da Abrinq foi feito com basedados2019 do IBGE (da pesquisa Pnad Contínua) e levaconta inclusive o dinheiro recebido por essas famílias via programas governamentais, como Bolsa Família e BenefícioPrestação Continuada.

Como a pobreza aumentou desde então, esse númerocrianças na pobreza extrema e com fome muito provavelmente cresceu neste ano — sobretudo porque o custo dos alimentos tem um peso muito grande no orçamento das famílias mais pobres. Hoje, na média, uma família que ganha um salário mínimo já gasta 55% dessa renda comprando os alimentos básicos suficientes para apenas uma pessoa adulta, aponta o Dieese.

Outros dados reforçam essa percepção.

Enquanto 56% da população adulta brasileira viurenda cair desde o início da pandemia, essa porcentagem sobe para 64% no subgrupoadultos que moram com crianças e adolescentes, segundo pesquisa do Unicef (braço da ONU para a infância) realizadamaio2021.

"Embora a gente saiba que as crianças não foram mais afetadas pelo vírus (da covid-19)si, elas são as mais afetadas pelos impactos secundários que toda essa situação trouxe e pela interrupçãoserviços", disse a representante do Unicef no Brasil, Florence Bauer, durante simpósio realizado no dia 6outubro pelo Núcleo da Ciência Pela Infância (NCPI).

Comendo menos e comendo pior

Bauer destacou, também, como piorou a qualidade da comida ingerida: 29% das famílias brasileiras estão comendo mais alimentos industrializados, 22% estão consumindo mais bebidas açucaradas, e 18% estão ingerindo mais fast food, segundo a pesquisa do Unicef.

Esses alimentos são mais baratos e fartamente disponíveis. Mas costumam ser péssimos para a saúde, por não serem nutritivos e conterem excessosódio, açúcares e gordura.

Ou seja, alémeles não proverem as crianças com os nutrientes presentes nos alimentos in natura, eles favorecem a obesidade, diabetes e outros problemassaúdelongo prazo.

Nas casassituaçãoinsegurança alimentar (ou seja, com alimentosquantidade insuficiente), o consumocomida saudável caiu 85% na pandemia, aponta uma pesquisa do grupo Food For Justice lançadaabril.

Favela carioca,fotoarquivo
Legenda da foto, Piora nos indicadores sociais faz acentuar a desigualdade e colocarisco avanços conquistados nas últimas décadas

A carne vermelha, cujo preço subiu mais30%12 meses, segundo o IBGE, é uma das principais fontesferro, um nutriente particularmente importante para as crianças — e a deficiênciaferro (ou anemia) pode causar atrasos no desenvolvimento e deixá-las mais expostas a infecções.

A queda no consumocarne, por sinal, desperta preocupação por potencialmente agravar uma estatística já considerada "trágica": aque umacada três crianças brasileiras sofreanemia.

"Não ter uma alimentação adequada nessa fase do desenvolvimento (na infância) pode deixar impactos na saúde para o resto da vida, pelo riscodesenvolverem problemas mais para frente (na vida adulta)", agregou Bauer.

Ela lembrou, também, que quase a metade das crianças da rede públicaensino ficaram sem acesso à merenda escolar durante os mesesescolas fechadas. "E sabemos que, para muitas delas, essa era a principal refeição do dia."

A situação nutricional das crianças brasileiras já era preocupante. Uma ampla pesquisa nacional, feita entre 2019 e 2020 com 13 mil famílias com criançasaté cinco anos, apontou que quase a metade delas viviaalgum grauinsegurança alimentar.

Isso corresponde a 6 milhõesfamíliastodo o Brasil, com maior incidência nas regiões Norte e Nordeste, segundo os cálculos do Estudo NacionalAlimentação e Nutrição Infantil (Enani), coordenado por Gilberto Kac, professor titular do InstitutoNutrição da Universidade Federal do RioJaneiro (UFRJ).

"Como a coletadados foi realizada antes da pandemiacovid-19, avaliamos que a prevalênciainsegurança alimentar pode ser ainda mais elevada", afirmou Kac,comunicado.

Desigualdade aumentando nas próximas gerações

O risco é que o aumento da pobreza, junto às interrupçõesserviços básicossaúde e educação durante a pandemia, coloquerisco avanços conquistados a duras penas na redução das desigualdades brasileiras, diz à BBC News Brasil o economista Naercio Menezes Filho, pesquisador do CentroGestão e Políticas Públicas (CGPP) do Insper.

Merenda servidaescola do Distrito Federal,foto2014

Crédito, Sergio Amaral-MDS

Legenda da foto, Menos famílias pobres têm conseguido manter a alimentação in natura representada na foto: estão comendo menos e comendo pior

Nesse sentido, vale lembrar que a pioratodos os indicadores sociais apontados nesta reportagem incidiu mais fortementecrianças negras, pardas e indígenas, e também mais nas regiões Norte e Nordeste, que já vinhamuma situação mais vulnerável.

"A gente sabe que a pobreza tem impactos fortíssimos no desenvolvimento infantil e no futuro dessas crianças. Todos esses impactos (sentidos) hoje elas vão carregar ao longo da vida se nada for feito para atenuá-los. É uma geração inteira que pode ser afetada", apontou Menezes, também durante o simpósio do NCPI.

"Crianças que têm seu desenvolvimento dificultado vão ter problemaspermanecer na escola no ensino médio,entrar no ensino superior,encontrar um emprego legal com carteira assinada,empreender, e vão ter problemas ao longo do seu ciclovida."

O economista lembrou que, embora todos os grupos sociais tenham registrado perdaemprego durante a pandemia, a maior parte das demissões ocorreu entre as pessoas menos escolarizadas.

E, mesmo agora no início da retomada econômica, esse é o grupo que também está tendo mais dificuldadevoltar ao mercadotrabalho.

Isso reflete na capacidade desses paisproverem o básico para seus filhos — e tambémacreditarem que seus filhos terão condiçãosair da pobreza.

Dadosuma pesquisa global da Gallup consolidados pela FGV Social apontam que, entre os 40% mais pobres do Brasil, 11% deixaramacreditar que as crianças teriam a oportunidadeaprender e crescer na pandemia, índice quase dez vezes maior do que a média internacional nessa faixarenda. Essa perdaesperança tem um impacto importante, explica à BBC News Brasil o economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social.

Distribuiçãocestas básicas no Pará

Crédito, Bruno Cecim/Ag Pará

Legenda da foto, Regiões Norte e Nordeste estão entre as mais afetadas pela piora nos indicadores sociais; acima, distribuiçãocestas básicas no Pará

"Esses dados são subjetivos, mas refletem esse problematransmissão da desigualdade entre gerações. Ferir essa percepçãoque, mesmo quando se é pobre, se pode subir na vida tem o efeitofrustrar a ascensão social", explica. "Apesaros indicadores infantis eeducação do Brasil serem (historicamente) muito ruins, eles vinham melhorando nos últimos 30 anos. Agora, o vento que soprava a favor está soprando contra."

As saídas

Mudar esse cenário dependeum esforço articulado, sugere Naercio Menezes: desde um empenho muito granderecuperar a aprendizagem perdida pelas crianças mais vulneráveis durante os mesesescolas fechadas até um reforço nos programassaúde familiar, que identifiquem lacunas deixadas pela pandemia.

Mas um passo crucial e urgente, opina o economista, é corrigir lacunas no Bolsa Família, programa que o governoJair Bolsonaro pretende reformular sob o nomeAuxílio Brasil.

"O Bolsa Família já tinha (antes da pandemia) uma fila muito grande,forma que 35% das famílias pobres com crianças tinham direito a recebê-lo, mas não o recebiam. São problemas gravespobreza que estão se acentuando", argumentou perante o NCPI.

"Por isso eu ressalto a importânciatermos políticas públicas, agora que a vacinação está atingindo grande parte da população. Para o ano que vem, a gente precisa reconstruir toda essa redeproteção social dos últimos 30 anos para não termos esse riscoaumento da desigualdade no futuro. Nosso objetivo é gerar uma sociedade com mais igualdadeoportunidades,que as chancesrealizar seus sonhos na vida não dependam única e exclusivamente se você nasceu numa família mais pobre ou mais rica."

Línea

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