Enem: o que explica menor númeroinscritos na provamaisuma década:

Enem digital 2020

Crédito, Marcello Casal Jr/ Ag Brasil

Legenda da foto, Enem teve índiceinscrições mais baixo desde 2005; observadores veem isso como reflexodesconexão dos jovens com o ensino

Maia usa como motivadorprópria históriavida,estudante da zona rural baiana que passou na faculdade e ascendeu por meio da educação. "Sempre digo a eles que sou resultadoter acreditadoestudar, algo que me situaqualquer lugar que eu for", conta.

Os alunos do grupoestudosMaia passaram a escrever uma redação por semana, que ela corrigiadetalhes, para ensinar-lhes a estrutura do texto exigida pelo Enem.

No ano passado, com a pandemia, o esforço precisou ser redobrado para manter o grupo engajado, mesmo sem as sessões presenciais.

"O volumeatenção caiu, os alunos ficaram mais dispersos", relata Maia. "Fizemos aulões, livesredação, mas 2020 foi um ano assustador. Tivemos uma abstenção histórica, porque o aluno sabia o quanto estava desconectadotudo."

Maia celebra os estudantes que persistiram, prestaram o Enem e conseguiram vagasuniversidades. Mas lamenta o "abismo que aumentouquilômetrosprofundidade" entre os jovens que cursam o ensino privado e os que cursam o ensino público no Brasil.

Jovem tendo temperatura medida antesprestar Enem 2020

Crédito, Marcello Casal Jr/Ag Brasil

"Para o aluno que já vivencia a exclusão, que não tem dinheiro para pagar cursinho e se vê solto nesse período (de fechamento das escolas), o que acontece?"

Queda no númeroinscritos no Enem

O relatoMárcia Maia coincide com oestudantes, professores, ativistas e especialistaseducação ouvidos pela BBC News Brasil a respeitouma perigosa desconexão dos jovens com a escola e com o Enem — e uma aparente descrença, entre uma parcela crescente dos estudantes, no poder dos estudos como formaascensão social.

Um exemplo disso é o númeroinscritos (3,1 milhões) no Enem 2021, índice mais baixo dos últimos 16 anos. O exame chegou a ter 8,7 milhõesinscritos2014.

O desalento nessa faixa etária se refleteoutros dados.

Segundo relatório do Unicef (braço da ONU para a infância),novembro do ano passado, havia cerca1,5 milhãojovens15 a 17 anos sem qualquer tipoacesso à educação no Brasil.

Em maio deste ano, pesquisa do Datafolha para fundações educacionais apontou que 46% dos pais1,5 mil alunos dos ensinos fundamental e médio entrevistados diziam não ver motivação nos seus filhos com os estudos.

Ao mesmo tempo, a proporçãojovens nem-nem (que nem trabalham, nem estudam) na faixa etária15 a 19 anos atingiu seu maior patamar — 25,5% no último trimestre2020 — nos oito anosque o segmento é analisado pela pesquisa Pnad Contínua, segundo levantamento da consultoria iDados cedido ao jornal Valor Econômico.

"Sem trabalhar e sem estudar, esses indivíduos não estão acumulando capital humano, o que pode levar a perdasrendimentos significativas e persistentes que comprometem suas trajetórias laborais ao longo da vida", diz estudo recém-lançado pelo Ipea (InstitutoPesquisa Econômica Aplicada) sobre esse tema. "Para os jovens, o legado da crise sanitária pode durar décadas."

"Muitos jovens aqui da região tiveram que parar os estudos durante a pandemia, e aumentou o númerojovens nas favelas que viraram chefesfamília" porque seus pais perderam o emprego, diz à BBC News Brasil a arquiteta Ester Carro, ativista social na comunidadeJardim Colombo, zona SulSão Paulo.

Vista da favelaGuararapes,fotoarquivo
Legenda da foto, Nas comunidades e periferias do Brasil, 'ninguém te fala que você pode ser médico, advogado', dizem ativistas

"Percebo cada vez mais jovens16 ou 17 anos que tiveram que começar a trabalhar. Muitos também estão cada vez mais expostos ao tráficodrogas nas ruas", complementa seu colega Erik Luan Santos, também morador do bairro. "E na épocase inscrever nas universidades eu perguntava a eles 'e aí, vai prestar?' a resposta era 'ah, não, tô trabalhando, preciso ganhar dinheiro agora'."

O problema, porém, vemantes da pandemia, dizem ambos os ativistas — que, por sinal, desafiaram prognósticos e entraram na USP (Ester Carro já concluiu seu mestradoArquitetura; Erik está concluindo a graduaçãoSaúde Pública).

"A questão é que nem se fala muito no Enem por aqui", diz Ester Carro sobre o Jardim Colombo.

"Não se discutem os sonhos dos moradores e o quefato eles podem fazer para alcançá-los. A maioria dos pais não fala 'precisa ir pra faculdade'; fala 'precisa trabalhar'. É diferente do incentivo que os jovensclasse mais alta têm. Não há essa clarezamostrar que eles (jovensbaixa renda) são capazes, emostrar o quanto vão crescer no longo prazo e o que podem conquistar com uma faculdade."

'Ninguém fala que você pode ser médico, advogado'

Na verdade, o que Carro ouviu quando decidiu que queria estudar Arquitetura foi o contrário. "Me diziam que eu não seria arquiteta. Que não era para uma mulher negraperiferia (como eu). Ninguém fala que você pode ser médico, advogado. Falam só dos trabalhos medianos."

É uma experiência parecida à vivida por MatheusAraújo Moreira Silva, 26, moradorFeiraSantana (BA), que começou a cursar Medicina na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia tendo estudado por conta própria,condições adversas (conheçadetalhes a históriaMatheus aqui: 'Não há meritocracia sem direitos iguais': o desabafo do jovem que ficou famoso ao passarMedicina estudando sem luz elétrica).

"Os meninos aqui, quando terminam (o ensino médio), vão trabalhar no comércio. Não conseguem imaginar que podem ser algo grande, como médico, empresário — não é 'para eles'. É complicado sonhar grande na situaçãoque você vive. Eu fui exceção. (...) Quando eu falava que queria ser médico, o pessoal zombava. Quando você sai desse eixo, vê que a escola pública é fomentada para esse ciclo mesmo: terminar o colégio e trabalhar", relata.

Enem 2018

Crédito, André Nery/MEC

Legenda da foto, Projetos tentam manter os jovens não apenas informados sobre o Enem, mas preparados para o estiloprova e conscientesque 'não é só nerd que consegue passar'

E, novamente, o cenário piorou com a pandemia e com o fechamento das escolas.

"O que era difícil se tornou quase impossível na mente deles (estudantes)", prossegue Matheus. "O convívio com os colegas é legal, aquele ambienteestudos te incentiva a estudar. E quando você vai pra tela do celular (estudar à distância), sem contato físico, te desmotiva demais."

Mas existem iniciativas —cursinhos populares a projetosmotivação nas escolas - que tentam fazer com que histórias como aMatheus, Erik ou Ester deixemser exceção.

Em Ribeirão Preto, interiorSão Paulo, ViníciusAndrade criou2017 o projeto Salvaguarda, com o objetivoaproximar os jovens da rede pública do ambiente do ensino superior — desde ajudá-los no processo decisórioqual curso buscar até mantê-los motivados para as provas e desmistificar a percepçãoque "só quem tem o perfil nerd passa"vestibulares, explica Andrade.

O projeto, que começou atendendo jovens da regiãoRibeirão, hoje conta com mais 15 mil alunos do Brasil inteiro, acompanhados por 1,3 mil voluntários (estudantes universitários que oferecem mentoria aos adolescentes).

Uma das propostas é transformar a ideia abstrata"estudar é importante"passos concretos, como aprender o estilo das provas e da redação do Enem, monitorar os vestibulares que tenham os cursos que cada jovem deseja e oferecer conteúdo preparatório para deixá-los afiados para as provas.

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Na pandemia, Andrade viu crescer o medo, a sobrecarga e a sensação"não dar conta" entre os estudantes.

Para alguns, "o desalento está maior do que a esperança'e se der certo e eu passar no Enem?'. Daí eles não acham que vale a pena a energia gasta nisso", lamenta Andrade.

Em julho, na reta final das inscrições para o Enem 2021, celebridades e movimentos sociais se mobilizaram para pagar as inscriçõesR$ 85 para jovensbaixa renda, como um empurrão final para quem queria prestar a prova mas não havia conseguido isenção na taxa. (Embora estudantesbaixa renda,escolas públicas e bolsistasescolas particulares tenham direito à isenção na taxa, muitos dos que estavam inscritos na edição passada do Enem e faltaram na prova por medo da covid-19 - a edição 2020 teve abstençãomais55% no segundo diaprova - perderam o direito à isenção na edição 2021. Para efeitos comparativos, o Enem 2020 teve 4,8 milhõesinscritos isentos, contra 1,7 milhões na edição atual).

O Movimento Amplia Enem, por exemplo, relata ter conseguido mobilizar 1,4 mil pessoas para para pagar a inscrição835 estudantes, sendo 80% deles negros.

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De volta a Ilhéus, a professora Márcia Maia conta que, ao longo dos anos, já pagou (ou criou vaquinhas para pagar) aos seus alunos inscrições, almoços, passagensônibus, "tudonome da permanência deles na escola", conta.

Foi uma ação dessas que fez diferença emprópria trajetória, quando Maia ainda era estudantecursinho e estava sem dinheiro para prestar o vestibularLetras.

"Me inscrevi porque um amigo me emprestou um dinheiro - se não fosse ele, eu ia deixar o vestibular passar. E acabei passandoprimeiro lugar", conta. "Como é legal alguém acreditar, dizer 'você vai conseguir, sim'."

Agora, com seu grupoestudosredação para o Enem, Maia também dedica energia a cuidar "do emocional dos alunos, dizendo 'você pode, sim. Você é capaz'".

"Mostramos que é possível, sim, que eles se saiam bem na redação do Enem", diz Maia. "Os alunos que conseguem manter o ritmo no grupoestudos saem do nível mediano e vão para os 80% (de excelência). Alguns chegaram a fazer 960 pontos na redação (perto do máximomil)."

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Motivação: 'jovem quer ser acolhido'

Em um momentoque as redes públicas se preparam para a volta às aulas — algumas ainda no ensino remoto ou híbrido; outras, já no presencial —, os problemas a serem enfrentados são grandes:segurança sanitária e ventilação adequada nas escolas até os atrasosaprendizagem que se acumularam na pandemia.

Um estudo divulgado23julho pela RedePesquisa Solidária aponta que, embora as redes públicasensino tenham conseguido estruturar melhor seus planos no primeiro semestre2021, a nota média dos pesquisadores para o ensino à distância do país foi5,1 (de um máximo10), levando-seconta os meiostransmissão, a capacidadeacesso dos estudantes, a cobertura das aulas e a existência ou nãosupervisão dos adultos sobre o processoaprendizado.

Além disso, há problemas financeiros graves:um momentodescoordenação por parte do Ministério da Educação, as despesas dos Estados com educação caiu 9,1% no ano passadocomparação com 2019.

Tudo isso vai se traduzirdificuldades persistentes ao longo2021 e além.

Masmeio a tudo isso é preciso prestar atenção também à motivação e à individualidadecada aluno que vai voltar (ou não) à escola, diz à BBC News Brasil Tatiana Filgueiras, vice-presidenteeducação, inovação e estratégia do Instituto Ayrton Senna.

"O que a gente vê nas pesquisas é que os jovens estão pedindo acolhimento", afirma. "Não é apenas um cérebro 'aprendedor', é uma pessoa, e ele quer ser tratado assim para voltar à escola."

Testagemcovid-19escolas estaduais paulistas,fotooutubro2020

Crédito, Governo do EstadoSP

Legenda da foto, Testagemcovid-19escolas estaduais paulistas,fotooutubro2020; retomada das aulas deve levarconta a opinião e o estado emocional dos alunos, diz especialista

A pesquisa ConVid Adolescentes, lançada pela Fiocruz no final2020, apontava que quase a metade dos jovens entrevistados dizia sentir-se preocupado, nervoso ou mal-humorado, na maioria das vezes ou sempre. Esses sentimentos eram mais fortes justamente na faixa etária16 a 17 anos.

Filgueiras diz que a motivação dos estudantes passa por resgatar o espíritocuriosidade e criatividade, que,modo geral, costuma decair à medida que os anos escolares avançam. De certa forma, é como se a própria escola fosse "matando as competências que são a base para o aprendizado todo" - competências essas que, por sinal, serão cada vez mais importantes para os trabalhos do futuro.

Em contrapartida, já existem muitas iniciativas para engajar os alunos no aprendizado e ajudá-los a planejar seu futuro na educação — incluindo algumas das iniciativas descritas nesta reportagem. O importante, agora, é fazer isso ganhar escala e se tornar parte formal do funcionamento das escolas, prossegue Filgueiras.

"Tem muita coisa (voltada à motivação)curso, só que sendo feitaforma desarticulada e sem intencionalidade (ou seja, informalmente)", opina.

"E o truque, agora, é dar voz aos estudantes. A geração Z não quer as mesmas coisas que queria a geração que está neste momento planejando a escola. Precisamos trazer os jovens para a discussão. E garantir que todos tenham voz - não apenas os mais extrovertidos. (...) A escola vai precisar ser cada vez mais personalizada para que os alunos não a abandonem."

Línea

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