'Não há meritocracia sem direitos iguais': o desabafo do jovem que ficou famoso ao passarMedicina estudando sem luz elétrica:
Ele diz que é bom poder servirexemplo para outros que estudamcondições adversas e que não se acham capazeschegar à faculdade.
Mas não quer verhistóriavida e seu esforço usados para exaltar a meritocracia e por quem critica um suposto "vitimismo negro" — ou seja, a ideiaque negros poderiam competir por oportunidadescondiçõesigualdade que brancos e aqueles que reclamam das injustiças causadas pelo preconceito estariam se colocando na posição"vítimas" sem motivos para isso.
"Isso está me incomodando demais. Esse discurso é balela", diz Matheus à BBC News Brasil.
"Poxa, o que eu sofri eu não desejo para nenhum estudante. Se tivesse tido um bom local para estudar, se não tivesse tido que trabalhar, teria facilitado bastante."
Uma das manifestações públicas que o incomodaram veio do presidente da Fundação Cultural Palmares, Sergio Camargo. O órgão, ligado ao governo federal, é dedicado à promoção da cultura afro-brasileira.
"Enquanto pretos vitimistas jogam suas vidas fora na militância ressentida, bailes funk, vício da maconha, bandidagem e manifestaçõesesquerda, esse rapaz dedicou-se ao estudo com muita disciplina e esforço, associado à féDeus. Matheus venceumeio a grandes dificuldades (sem luz nem internet). Ele é a provaque negros não precisam ser vítimas. Terá um futuro brilhante. Parabéns!", escreveu Camargo no Twitter.
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"Não é bem assim, 'quem quer consegue'", responde Matheus.
"Meritocracia é quando as pessoas têm os mesmos direitos. (...) Para a gente que éperiferia,interior,favela, as políticas públicas não chegam. Sempre trabalhei num turno e estudei no outro, o que é bastante complicado, porque nossos pais não têm condiçãopagar cursos, materiais. Você chega cansado, e isso atrapalha bastante."
"Às vezes precisa (escolher entre) trabalhar para ter dinheiro e botar comidacasa, ou estudar. Não acho bonito ter que fazer essa escolha complicada", prossegue.
Matheus lamenta que muitos estudantes, como ele próprio, não disponhamambientes adequados para estudar dentrocasa e tenham ficado sem opções durante a pandemia, quando escolas e espaços públicos foram fechados.
"Então, romantizar a pobreza não é algo legal, é triste. Eu ter tido que estudar sem energia elétrica e o pessoal achar 'que bonito, que belo' não é nem um pouco legal."
Trajetória
Matheus começou a prestar o Enem2015. Fez as provas todos os anos desde então. Chegou a ser aprovadoEnfermagem e fez curso durante dois anos, mas desistiu para se concentrar no sonhofazer Medicina.
Neste último ano, sem ter espaço para estudarcasa e com a biblioteca local fechada, Matheus passou a estudar na casauma amiga — onde não havia energia elétrica ou internet.
Para contornar os desafios, Matheus contratou um planodados no celular e passou a dedicar-se ao estudo com "disciplinaatleta".
Ele conta que lia constantemente,livros a gibis e reportagens, para estimularcapacidadeinterpretaçãotexto e aumentar seu repertório — habilidades úteis nas provaslinguagem e redação.
Também usou materiais gratuitos online e provas antigas para se preparar.
Adaptou-se ao chamado "método pomodoro"estudos, que preconiza que o estudante dedique-se a uma tarefa por 25 minutos eseguida faça uma pausa5 minutos, e depois repita o mesmo procedimento com a segunda tarefa, e assim por diante.
Esse tipométodo, segundo neurocientistas, ajuda a descansar o cérebro e a tirar o máximo proveito da capacidadeatenção.
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Para simular as condições exatas que enfrentaria no dia do Enem, Matheus passou a estudar à tarde e usando máscara, com o objetivo"acostumar minha respiração".
"Estudar não é só sentar na cadeira e riscar papel. Tem que ter método, estratégia", argumenta.
"Fiquei tantos anos fazendo tanta prova que pensei, 'puxa, o que posso fazer para facilitar meu processoaprendizado?' (Decidi que) ia me preparar como atleta; ter disciplina, foco".
E essa rotinaestudos tinhaser conciliada com o trabalho. Matheus já trabalhou como carregador, vendedorfrutas e entregadorpizza, até começar a dar aulasreforço.
A dedicação, porém, foi recompensada. Na redação do Enem mais recente, Matheus obteve 980 pontos, perto da nota máximamil, e foi aprovado na UFRB.
Agora, ele está cursando Medicina à distância (temporariamente, por conta da pandemia), até chegar a horamudar-se para a universidade, na cidadeSanto AntônioJesus,novembro. Seu objetivo, por enquanto, é especializar-seMedicina da Família ou Neurologia.
O jovem fez uma vaquinha para conseguir dinheiro para comprar um computador e para custear suas despesas universitárias e obteve ajudafamosos, como a ex-BBB CamillaLucas.
"Mas a maioria das pessoas que me ajudaram são pessoas como eu, simples — donascasa, pedreiros, que sentiram uma certa identificação. Alguns mandaram mensagens dizendo 'não desista, você representa muito para mim', e ajudaram com R$ 1 ou R$ 5. Agora não sou mais eu — sou eu e mais um montegente", comemora.
"Eu não tive cursinho, não tive dinheiro pra isso. Não consegui bolsa. então fui estudar por conta própria, o que foi bastante complicado. Aí tem os amigos (que perguntam) 'Matheus, como conseguiu fazer isso, velho, num períodopandemia, sem energia, sem cursinho, sem recursos? Tu conseguiu algo bem grande'. É, mas tudo o que eu criei foi um molde, uma estratégia, para poder facilitar na hora da prova."
'Redação com Matheus'
Seu perfil no Instagram, Redação com Matheus, hoje tem 18,4 mil seguidores. Matheus compartilha seu métodoestudos e dá dicas — sobretudo para a temida provaredação — para outros estudantes "sonhadores" como ele.
"Agora, eu tenho uma certa representatividade, e acho bom que (os jovens) tenham alguémquem se espelhar. Hojedia, tudo é instantâneo, então, você olhar para alguém e sentir identificação é legal", afirma.
"Todos os dias chegam centenasmensagensjovens como eu, do interior,zonas periféricas, dizendo 'você me inspirou, vou estudar também, sei que vai ser complicado'", conta ele.
"Os meninos aqui no bairro quando eu passo dizem 'olha ali o menino que passouMedicina'. Tem os que chegammim e falam 'o tio, vou estudar para ser igual ao senhor, para ser grande'. Vejo que poxa, tem um certo impacto. Quando você vê alguém igual você vencendo, isso te motiva - 'pronto, dá para mim também'. É algo bastante interessante e gratificante."
Mas defende que jovens como ele precisampolíticas específicas, alémfontesinspiração. "Não era para ter sido tão difícil assim para mim", diz.
"Eu conseguir pular o sistema (e ser aprovado no vestibular) virou uma notícia tão grande porque não é comum, não é padrão, mas era para ser padrão", afirma.
"Falta explicar os caminhos possíveis para quem concluir o ensino médio, mostrar os cursos técnicos para quem não quiser fazer faculdade, dizer 'se capacite, não fique só com o ensino médio'. Tem que dar caminhos para abrir os horizontes (dos jovens)."
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