Epidemiafake news ameaça vacinaçãoterras indígenas:
Para o comunicador e empreendedor indígena Anápuàka Tupinambá, as ferramentascomunicação instantânea permitiram "um salto"ações conjuntasindígenas na área da política e da educação.
"Mas viraram também uma facadois gumes. Vi parentes indígenas falarem que viram que mais900 indígenas no Xingu teriam morrido por conta da vacina. Uma senhora com mais90 anos me disse que não iria se vacinar por causa disso", afirma. "Nenhuma região do país está a salvo (das notícias falsas), nem áreas isoladas como Amazônia e Pará."
A ideia da "facadois gumes" serve também para o efeito da inclusão gratuita do usodados por aplicativos como Facebook, Instagram e WhatsAppplanoscelular no Brasil. Acessar a internet, para muitos brasileiros, acaba se limitando a esses aplicativos.
Um simples clique "fora do pacote" para verificaçãouma informação vista no WhatsApp, por exemplo, tem um custo adicional.
"O que nós temos hoje é uma falsa internet. Quando tem as fake news, você não tem como checar", diz Anápuàka. "Então dá aquela sensação'estou na internet', mas na verdade não, estou dentroum sistema, quase uma 'intranet'uma grande empresa."
As limitações do WhatsApp como fonteinformação edesinformação para muitos indígenas se soma à atuaçãodois grupos com influência crescente: políticos e religiosos.
"A aldeia se pergunta: 'se o presidente não tomou, como é que a gente vai tomar?', diz a enfermeira Indianara Ramires Machado,30 anos, vice-presidente da associaçãojovens indígenas da ReservaDourados, no Mato Grosso do Sul, e mestrandafisiopatologia experimental pela faculdadeMedicina da USP.
Declarações do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, ao longo da pandemia que já matou quase 300 mil pessoas no Brasil ecoam nas comunidades indígenas.
"Ninguém pode me obrigar a tomar a vacina", afirmousetembro2020. No mês seguinte, disse que "o povo brasileiro não será cobaianinguém". Depois, que não tomaria a vacina "e ponto final".
A fala que mais repercutiu nos grupos indígenas, no entanto, foi esta: "Se você virar um jacaré, é problemavocê (…) Se você virar o super-homem, se nascer barbaalguma mulher ou um homem começar a falar fino, eles não têm nada a ver com isso".
Vítimasvídeos falsos pelo WhatsApp
Perder os pais era o maior medoJoel Paumari, coordenador pedagógicoum poloeducação indígena do rio Ituxi, que banha o municípioLábrea, no sul do Amazonas. Epreocupação crescia com o númeromortes. Segundo a contagem oficial da Secretaria EspecialSaúde Indígena, a Sesai, morreram até agora 615 indígenas que viviamaldeias. A populaçãoterras indígenas é517 mil, segundo o último dado disponível, o censo do IBGE2010.
Os paisJoel vivem na aldeia Ilha da Onça, que fica a um diaviagembarcoLábrea.
"Na minha aldeia tem internet. Meus pais não têm celular, mas meus irmãos, minhas irmãs e meus sobrinhos têm. Como estãogruposWhatsApp e recebem esses vídeos, eles mostram para os meus pais", conta.
Joel encaminhou à reportagem da BBC News Brasil exemplosvídeos que circulam nos gruposindígenasseu WhatsApp. Um traz o pastor Silas Malafaia criticando a "vacina chinesa" e defendendo o usoivermectina, remédio sem eficácia comprovada no tratamento da covid-19. Outros dois trazem conteúdo falso. Em um deles, um homem narra como a vacina "acabou com a vida"uma família, modificando seu DNA e tirando dela seu "Deus".
Em outro, um suposto médico diz que a vacina altera o código genético"cobaias".
Foram três diasexplicações e conversas - tudo por áudioWhatsApp - para convencer os pais a tomarem a vacina. "Meu pai foi muito resistente", diz.
Uma irmã e um irmão decidiram não tomar.
Áudios, textos escritos e vídeos mentirosos vêm sendo espalhados por grupos no WhatsApp há anos no Brasil. Durante as eleições2018, o aplicativo foi inundado por uma campanhadesinformação.
De lá para cá, o aplicativo limitou a cinco vezes o compartilhamentomensagens e inseriu uma marcação que mostra quando uma mensagem foi encaminhada várias vezes. Para estas, o limiteencaminhamento é um contato por vez.
Procurado pela BBC News Brasil, o WhatsApp, que pertence ao Facebook, disse que não tem acesso ao conteúdo das mensagens e não faz mediaçãoconteúdo, mas que tem agido para combater a desinformação no aplicativo. Em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS), lançou um serviço gratuito com informaçõesportuguês sobre a covid-19 acessado pelo próprio aplicativo (leia mais no fim da reportagem).
Um porta-voz do Facebook disse que a empresa está trabalhando com ONGsformasampliar campanhas sobre vacinação para atingir populações altamente vulneráveis, como comunidades indígenas.
Rejeição a vacinas e 'fake news' via barco
Uma das perguntas cruciais quando se analisa o fenômeno da desinformação é qual é o impacto concreto do conteúdo falso oubaixa qualidadequem recebe a desinformação. E um dos riscos clarosmeio à pandemia é o aumento da rejeição à vacinação. São preocupantes os casos identificados pela BBC News Brasil e os índicesvacinação até agora. Segundo dados da Secretaria EspecialSaúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai), durante quase três mesesvacinação, receberam a primeira dose apenas 68% dos 410 mil indígenas que vivemaldeias e são maiores18 anos.
Para comparar o resultado com ocampanhas anteriores, a BBC News Brasil obteve, via via LeiAcesso à Informação, dados da imunizaçãoindígenas no Brasil desde 2011. De lá para cá, a cobertura vacinal da população indígena vinha aumentando. A vacina contra a gripe, que é aplicadaadultos, por exemplo, saltou75%2011 a 90%2019. Além disso, nos últimos anos, a adesão a vacinas como a tríplice bacteriana, BCG (contra tuberculose), tetravalente, tetra viral, tríplice viral e varicela tem sido superior a 90%.
O risco é que esse possível retrocesso se consolide. "Sempre houve adesão. A vacinagripe é dada duas vezes ao ano e aceitam numa boa, sem problema algum", diz a antropóloga médica MariaLourdes BeldiAlcântara, professora da USP (UniversidadeSão Paulo) que trabalhacampo, na Reserva IndígenaDourados, Mato Grosso do Sul, onde vivem mais15 mil indígenas.
Os maiores gargalos estão na região amazônica, onde, além da rejeição, há dificuldade para se chegar a determinadas regiões. Nas regiões do Alto Rio Juruá, no Acre, do Kaiapó e do Rio Tapajós, no Pará, menosum quarto dos indígenas recebeu a primeira dose da vacina.
Uma agentesaúde da região amazônica que não quis ser identificada diz à BBC News Brasil que a situação é tão grave que está criando uma instabilidade na frágil e preciosa relação entre os trabalhadoressaúde e os indígenas. "Tinha aldeiasque a relação com a equipe era muito boa e agora está estremecida justamente por causa da insistência na vacinação, da equipe ir, orientar, conversar, tentar uma, duas, três vezes. Eles se sentem afrontados porque já disseram que não querem, já explicaram suas razões e a gente continua insistindo. É um trabalhoformiguinha", diz ela.
A rejeição "gerou trabalho duplicado para a Sesai", diz o educador indígena Eliel Benites, professor da Universidade Federal da Grande Dourados, que viu conhecidos rejeitarem a vacina na Reserva IndígenaDourados. As equipessaúde tiveramir e voltar duas vezes para tentar vacinar a população. "Estão cansados."
À BBC News Brasil, a Sesai informou que continua com uma campanhaaproximadamente seis mil aldeias envolvendo 14 mil profissionaissaúde indígena. "Mesmo as equipes enfrentando dificuldadesacesso às aldeias, que é feito por meiotransportes aéreo, fluvial e rodoviário, e depende tambémcondições climáticas favoráveis para voos e deslocamentos, a vacinação indígena continuaritmo favorável", disse,nota. "Os profissionaissaúde reforçam a importânciaque todos sejam imunizados, ressaltam a não obrigatoriedade da vacinação, e reafirmam que as vacinas são seguras e possuem autorização da Anvisa", acrescentou.
Beto Marubo,44 anos, faz parte do movimento indígena do Vale do Javari, região com a maior concentraçãopovos isolados do Brasil. Marubo diz que o discurso antivacinaum governo negacionista estásintonia com a pregação antivacinaum ramo da igreja evangélica emissionários.
"As aldeias que não querem receber vacina têm um grande vínculo com as igrejas. Fake news no Vale do Javari anda por barco e terra, não por celular. São os próprios indígenas vinculados às agremiações religiosas que levam", disse.
Marubo relata que precisou enviar um vídeo a seus contatos no WhatsApp rebatendo a informaçãoque vários indígenas haviam morrido após tomar a vacina. "Temos que conter essa ondainformação falsa, que o Nawa ("o Nada" ou o não indígena) chamafake news. Enquanto Marubo, tenho que dizer pra vocês que nenhum Marubo morreu após a vacinação. Lembrando sempre que se essa vacina fosse ruim, os o Nawa não iam aplicar neles mesmos, nos avós deles", diz o indígena no vídeo.
O papel dos missionários estrangeirosterras isoladas
Em 1963, o casalmissionários norte-americano Robert e Barbara Campbell chegou à terra indígena Jarawara/Jamamadi/Kanamati, no sul do Amazonas e começou um trabalhotradução da Bíblia para a língua jamamadi. Foi ali onde o episódio do helicóptero que abre este texto aconteceu no mês passado.
Um dos filhos do casal, Steve Campbell, foi criado na terra indígena, fala a língua e conhece a cultura do povo. Ele seria, segundo testemunhas, o pivô da recusa à vacinação por parte dos Jamamadi.
"Nesses anos todos, a assistência à saúde jamamadi se firmou como a principal estratégia dos pastores norte-americanos: o Deus cristão, através da mão benéfica dos Campbell, garantiria aos Jamamadi a proteção das doenças dos brancos", escreveu o antropólogo Miguel Aparicio, pesquisador do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados eRecente Contatoum texto sobre o tema.
Isso explicariaparte a confiança que muitos depositam no missionário.
Mas desde março2020, uma portaria da Funai estabeleceu que está proibida a entradapessoas não essenciaisterras indígenas para evitar a propagação do coronavírus. Além disso, o Ministério Público Federal investiga se Steve Campbell usou os Jamamadi para entrar ilegalmenteuma terraindígenas isolados, os Hi-Merimã.
O missionário, portanto, não acompanhou a equipevacinação, que tevese retirar, como registrado no início desta reportagem. "Essa operaçãohelicópteroaldeias é muito solene, ela chama a atenção. É feitamissõesvacinação ouacidente grave. Tem que ter uma atitude muito marcadarejeição para rejeitar um helicóptero da FAB e membros da Funai", diz o antropólogo Miguel Aparicio.
"Em quase 30 anos na região, nunca vi a rejeiçãoum helicóptero. Ela está atrelada a essa polêmica recente, ligada à política desse governo e à presença do missionário", avalia.
Segundo ele, o povo Banawá, que é vizinho ao povo Jamamadi e próximo àcultura e história, foi totalmente vacinado. A diferença? "A presença missionária, ali, não é forte", diz o antropólogo.
A BBC News Brasil apurou que alguns dias depois, um cacique da aldeia São Francisco, a maior aldeia dos Jamamadi, fez contato com a Sesai dizendo que queria tomar a vacina. A equipe voltou e vacinou alguns indígenas.
A Funai e a Sesai continuam tentando resolver o problema das outras aldeias.
Procurada, a Funai disse somente que não autorizou o ingressoCampbell na Terra Indígena Jamamadi. Em buscaum contato com Campbell, a BBC News Brasil pediu um posicionamento, por e-mail, à Greene Baptist Church, no Maine, e à Faith Baptist Church, no Texas, que o apresentamseus sites como umseus missionários apoiados pelo mundo, mas não obteve resposta das igrejas americanas.
'Pastor fala que vacina tem o chip da besta'
O caso dos Jamamadi é apenas um exemplo do impacto da multiplicaçãomissionários e igrejas evangélicas - principalmente pentecostais e neopentecostais -territórios indígenas no Brasil.
A pressão que muitas vezes exercem é tão forte que,fevereiro2020, um ex-missionário evangélico que trabalhou na Amazônia por uma década foi nomeado chefe do órgão da Funai responsável justamente pela proteção a indígenas isolados. Ricardo Lopes Dias, exonerado do cargo nove meses depois, atuou entre 1997 e 2007 na Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), organização com origem nos EUA que promove a evangelizaçãoindígenas brasileiros desde os anos 1950.
Indianara Ramires Machado, da associaçãojovens indígenas da ReservaDourados, diz que muitos dos vídeos que circularam nos gruposWhatsAppindígenas erampastores indígenas fazendo cultos.
"Vão na igreja, o pastor fala para não tomar a vacina, que ela tem o chip da besta, eles gravam e compartilham nos gruposWhatsApp", diz ela.
Segundo o último Censo do IBGE, o percentualindígenas evangélicos cresceu14% a 26% entre 1991 e 2010. O Conselho NacionalPastores e Líderes Evangélicos Indígenas (Conplei) disse à BBC News Brasil haver 4 mil lideranças que atuamcomunidades indígenas no Brasil hoje "com a visãover Deus glorificado entre as tribos do Brasil". Um slogan do grupo é: "Em cada povo uma igreja genuinamente indígena".
O pastor Henrique Terena, presidente da Conplei, admite que no Mato Grosso do Sul há "um segmento neopentecostal que afirma que as vacinas não são boas, são do Diabo, e colocaram seus membros dizendo que não pode vacinar".
Em entrevista por vídeo à BBC News Brasil, Terena diz que nem é a igreja evangélica, nem são pastores indígenas que estão professando palavras contra a vacina. São pessoas "que se dizem evangélicas, que são pastores", mas que não são. "São pessoas individualistas, tipo aventureiros, que vêm aí e começam a disseminar situações que não são verdades. São pastoresfora que vêm disseminar dentro da comunidade. E aí o indígena escuta tudo e acaba disseminando isso."
Reação com campanhas indígenas
Diante da crescente rejeição, membros da própria comunidade criaram diversas campanhas pró-vacina. Na ReservaDourados, a associaçãojovens colheu relatos e produziu "cards" para serem distribuídos por WhatsApp.
"Perdi um tio amado por causa dessa terrível doença. Protejavida esua família! Jau'ke vacina" ("Vamos tomar a vacina"), diz um com a fotouma jovem indígena.
O educador indígena Eliel Benites, da ReservaDourados, está fazendo um livro com financiamento da Fiocruz explicando a pandemia do pontovista da cosmologia indígena do seu povo guarani. "Os indígenas acreditam muito que cada doença tem seus donos", diz. A partir dessa lógica, ele explica como o vírus "tem donosoutros lugares" e, por isso, são necessários remédios, como a vacina,outros lugares.
A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) lançoujaneiro a campanha "Vacina, parente!" e há iniciativas pipocando pelo Brasil, como programasrádio transmitidos justamente via áudiosWhatsApp.
Mas as iniciativas são "limitadas" e falta apoio do governo, segundo Eliel. "Há uma ausênciacomunicação adequada do governo à população indígena", critica. Para Indianara, a enfermeira indígenaDourados, "é preciso haver um 'choque'educaçãosaúde para combater as fake news".
"Tem que fazer, tentar sensibilizar, uma hora alguém vai ouvir", diz ela. "Com esse governo e infelizmente com a igrejas, a gente tem que se desdobrar. Se não tivesse o negacionismo do governo e a frente radical das igrejas pentecostais, estaríamosuma melhor situaçãovacinação."
Para checar informações sobre a covid-19 no WhatsApp, o aplicativo oferece um serviço automatizado que podem ser acessado pelos números +1 727 291-2606, +55 21 98217-2344, +55 21 99193-3751, +55 21 99956-5882 e +55 11 97683-7490.
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