'Desmaieiaborto clandestino aos 17 anos e meu namorado sumiu':
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"Quando eu fiz, eu fiz num hotelpéssima qualidade. Porque é tudo escondido, ninguém podia saber."
O ex-namoradoMaria era o único presente no quartohotel, quando ela tomou os medicamentos. Mas, a jovem começou se sentir muito mal e desmaiou. Em vezlevá-la ao hospital, o rapaz desapareceu por medoser incriminado.
"Foi dito que, se eu desmaiasse, tinha que chamar o socorro. Eu desmaiei por alguns segundos e ele não fez nada", relatou.
"Quando acordei, eu fiquei muito chateada com isso porque era minha vidajogo. Mas ele era maioridade e eu era menor e ia pesar para ele isso, então ele foi embora e eu fiquei sozinha."
Maria passou a noite toda sangrando e sentindo fortes contrações. A única pessoa da família dela que sabia do aborto era a irmã, que também estava grávida.
"Quando a minha irmã me ligava eu não podia falar: 'Olha, está doendo demais e eu estou com muito medo'. Porque ela estava grávidasete meses. Era minha escolha, não era a dela. Eu não podia preocupar uma pessoa que não tinha nada a ver com isso."
Sem saber bem o que fazer, a jovem voltou para casa após a madrugadaaborto e demorou a procurar um hospital. Hoje ela tem consciênciaque poderia ter morrido eque perdeu muito sangue durante o procedimento.
Mas, para ela, a lembrança mais dolorosa é a da solidão que sentiu. "O pior sentimento acho que é oabandono. Porque eu queria contar para a minha mãe. É a pessoa que eu mais amo no mundo e mais confio, mas não para isso. Por causa do julgamento, da religião, da crença."
'Não quero deixar outras mulheres sozinhas'
Da experiência "de abandono", como ela descreve, veio a decisãointegrar um grupoWhatsApp secreto que comercializa pílulas abortivas e dá instruções sobre o procedimentointerrupção da gravidez, por vídeo, texto e áudio. Cerca300 abortos foram realizados pelo grupo desde que ele foi criado, há três anos.
"Eu faço por amor, porque eu sei que vou ajudar uma pessoa a se sentir segura. Eu me vejocada uma daquelas meninasuma forma diferente. Com uma saída mais fácil."
A BBC Brasil teve acesso às conversas do grupo por 5 meses. Quatro mulheresdiferentes Estados do país administram o serviço e atuam como "guias"- acompanham as grávidas do começo ao fim do procedimento, pelo smartphone. O app também funciona como uma espéciegrupoapoio, as mulheres trocam experiências e confortam umas às outras.
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Maria diz que participou50 abortos.
"Eu instruo a quantidademedicamento referente ao tempo gestacional, explico como usar. Dou apoio, falo do quanto é normal ela sangrar, quantas horas vai levar, mais ou menos, como agir referente a cada situação. É meio que um passo a passo até a finalização", relata.
Nem Maria nem as outras quatro jovens que administram o grupoWhatsApp têm formação médica. As instruções se baseiam na experiência edicasmédicos e enfermeiros que conheceram ao longo da vida.
A médica Alessandra Giavanini, diretora do NúcleoAborto Legal do Hospital Pérola Byington, alerta que o remédio abortivo pode provocar hemorragias (a mulher pode precisartransfusão) e restos do feto podem permanecer no útero, levando infecções e até à morte, se a grávida não procurar ajudaum hospital.
As administradoras do grupoWhatsApp recomendam que todas as mulheres que interrompem a gravidez procurem atendimento médico até uma semana depoistomar as pílulas, para verificar se há necessidadecuretagem.
Maria diz que, na realidade, queria que o aborto fosse legalizado, para que as mulheres tivessem acesso a um procedimento totalmente seguro.
Muitas mulheres no Brasil temem buscar atendimento nos hospitais, após interromper a gravidez, por medoserem denunciadas à polícia. Segundo a Defensoria PúblicaSão Paulo,cerca70% dos processos por autoaborto, a denúncia foi feita pelos profissionaissaúde.
Maria justifica a manutenção da "clínica virtualaborto" dizendo que os riscos poderiam ser ainda maiores se as grávidas fizessem o aborto sozinhas, como ela aos 17 anos, sem o apoioquem já passou por essa experiência.
"Não tem como garantir para elas que vai ser 100% seguro. A gente fala isso, não posso te garantir que vai acontecer nem que você estáplena segurança. Mas a gente faz o possível para isso: analisa o fluxo do sangramento, quanto absorvente está usandotal período, fraqueza, tontura", detalhouentrevista à BBC Brasil.
"Talvez, se eu não ajudar, essas mulheres vão tentaroutra forma. Tem moça que chega a mim dizendo que viu na internet um vídeo que se você enfiar uma agulha, você fura a bolsa, e pode furar outra coisa. Prefiro não deixar essas mulheres sozinhas."
De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto,pesquisadores da UniversidadeBrasília, 500 mil abortos clandestinos acontecem a cada ano no Brasil - metade terminainternações.
E dados do Ministério da Saúde apontam que quatro mulheres morrem por dia por complicaçõesum aborto.
O impacto da criminalização sobre o númeroabortos
Um estudo publicado na revista médica Lancet, conduzido pela pesquisadora Gilda Sedgh, do Instituto Guttmacher,Nova York, aponta que,países onde o aborto é crime, as taxasaborto são um pouco mais altas que asnações onde o procedimento é legalizado.
Conforme o levantamento, a taxa é37 abortos a cada mil mulherespaíses que vetam o abortoqualquer circunstância ou que só o permitemcasoriscovida para a mãe.
Em nações onde a interrupção da gravidez é permitida e oferecida mediante pedido da gestante, o númeroabortos é34 para cada mil mulheres.
Para esse estudo, foram requisitados dados oficiais184 países e analisadas informaçõesfontes internacionais (organismos e ONGs, por exemplo) epesquisas acadêmicas locais.
Já a pesquisadora Diana Greene Foster, da Universidade da Califórnia, que coordena um estudo sobre os efeitos psicológicosabortos e gestações indesejadas, diz que proibir a prática não impede que mulheres com recursos financeiros recorram a ela, mas pode obrigar as mais pobres a ter o bebê.
"Tornar o aborto ilegal encoraja as mulheres a buscarem meios ilegaisabortar. Então, a segurança do aborto cai. E pessoas com menos recursos financeiros acabam tendo os bebês", diz.
O Brasil é um dos países com regras mais restritivas ao aborto - se junta à maioria da América Latina e países da África e do Oriente Médio. A maioria dos países desenvolvidos permite a interrupção da gravidez pelo menos até o terceiro mêsgestação.
É o casoEstados Unidos, Canadá e dos integrantes da União Europeia. No Reino Unido, o aborto é oferecido no serviço públicosaúde, caso seja esse o desejo da mulher.