Exclusivo: Por dentrouma 'clínica secreta'aborto no WhatsApp:

Ilustração mulher grávida

Crédito, Kako Abraham/BBC

Legenda da foto, BBC acompanhou por cinco meses um grupo secretoWhatsApp que vende medicamento abortivo e funciona como espaçoapoio a mulheres que desejam interromper a gravidez

"Acho que eu nunca senti tanta dor na minha vida!", relata a jovem, chorando,áudio enviado ao grupo. Outras mulheres que também interromperam a gravidez com medicamentos tentam tranquilizá-la. "Amiga, calma. Eu senti essa dor ontem. Tem alguém com você?"

"Não tem ninguém comigo. Tem só o meu irmão. Só que ele é pequeno, ele é criança. Não sei mais o que eu faço!", responde Ana. Várias mulheres começam a se manifestar, tentando ajudá-la. "Esquenta uma bolsaágua quente e coloca na barriga. Logo vai passar a dor."

Elas passam toda a madrugada trocando mensagens. O desesperoAna, que dá detalhes das cólicas e do sangramento, continua. Às 7h, a jovem chega a cogitar chamar uma ambulância. "A dor está tão forte quanto antes. Será que eu já posso chamar uma ambulância? É muita dor, dor, dor!"

Legenda do vídeo, Grupo secretoWhatsApp funciona como uma espécie'clínica virtual'aborto

Fazer isso seria se autoincriminar por práticaaborto. E abrir caminho para que as mulheres que venderam o medicamento fossem denunciadas também. No Brasil, aborto é crime. Só é permitido interromper a gravidezcasoestupro, risco para a vida da mãe e feto com anencefalia.

"Espera, essa dor vai passar", diz uma das integrantes do grupo.

A voz adolescente chama a atenção das outras mulheres. "Quantos anos você tem?", pergunta uma delas. "Tenho 16", responde a garota. Ela conta que a família não sabe da gravidez. "Minha mãe deve chegar daqui a pouco. A casa está imprestável, principalmente os lençóis. Vou ter que contar para ela."

Doze horas depoiscomeçar a abortar, a jovem diz que a mãe chegoucasa. "Contei para ela. Ela falou que vai me levar ao médico. Vou apagar essas conversas." Logo depois, a menina deixa o grupoWhatsApp.

Presentational white space

A BBC Brasil teve acesso às conversas do grupo por cinco meses para uma reportagemportuguês einglês. Uma das administradoras vende os remédios, que são encaminhados pelo correio. As outras se comportam como "guias" do aborto, responsáveis por acompanhar e "instruir" virtualmente – por mensagens, vídeos e áudios – as mulheres durante o procedimento. Elas não têm formação médica. Apostam na experiência e na dicaenfermeiros e médicos que conhecem.

As pílulas, as mesmas usadas como um dos métodosaborto legal nos hospitais, custam entre R$ 900 e R$ 1,5 mil, dependendo da dose para cada estágio da gravidez. Funcionam induzindo contrações do útero para que o feto seja expelido.

Uma "guia" é designada a cada grávida, e elas trocam mensagens diretamente durante o procedimento. As administradoras do grupo orientam que todas procurem um hospital após o aborto para verificar se é preciso fazer curetagem (limpeza do útero) e dão instruções sobre o que elas devem dizer para convencer os profissionaissaúdeque perderam naturalmente o bebê e, assim, evitar serem denunciadas à polícia.

No grupoWhatsApp, as grávidas recém-chegadas compartilham medos e tiram dúvidas com outras mulheres que já abortaram. Também são comuns conversas sobre o papel do homem na gestação e criação dos filhos e as leis restritivas ao aborto no Brasil.

Entre os casos que chamaram atenção da reportagem da BBC está ouma meninaapenas 13 anos grávida do primo e ouma jovem que diz ter sido vítimaum estupro e que optou pelo aborto clandestino por temer ser humilhada e forçada a dar detalhes da violência que sofreu.

Remédio
Legenda da foto, Doses custam entre R$ 900 e R$ 1,5 mil, dependendo do estágio da gravidez

"Eu tô com muito medo (de o aborto não dar certo), muito mesmo, até porque a minha gravidez veioum estupro, então eu não posso ter esse bebê. Eu tenho medo e vergonha", relata ela, que é confortadaseguida pelas outras mulheres.

"Meu anjo, se você foi estuprada você está protegida pela lei. Se você for ao hospital e contar o que aconteceu, eles farão o procedimento legal egraça", aconselha uma das mulheres. "Mas eu tenho muito medo. Medo e vergonha", responde a jovem.

Os nomes das mulheres que participam do grupo foram trocados nesta reportagem. Várias podem ser menoresidade e algumas foram vítimasviolência ou estãosituaçãovulnerabilidade.

A médica Alessandra Giovanini, coordenadora do núcleoAborto Legal do Hospital Pérola Byington,São Paulo, alerta para os riscosse fazer aborto sem acompanhamento médico.

"Acho que elas (administradoras do grupoWhatsApp) têm até a intençãoajudar. Mas essas pacientes correm o riscoter uma hemorragia muito grande, correm o riscoficar com restos ovulares e ter uma infecção que pode até levar à morte."

Presentational white space

Abortivos pelo correio

‬‬‬Para verificar a veracidade das promessasvenda do abortivo, a repórter da BBC News Brasil pagou R$ 930 via depósito bancário (R$ 900 pelo medicamento e R$ 30 do frete) após ser aceita no grupo identificando-se como uma jovem grávidaquatro semanas.

Dois dias úteis depois, o remédio chegou ao endereço indicado à vendedora. Seis pílulas vieram dentrouma caixaCD, envoltasuma pequena embalagempapel.

O volumeadesões eabortos feitos por meio desse grupoWhatsApp impressiona. Cerca20 grávidas entram nele a cada mês, pelas contas feitas pela BBC Brasil. Segundo uma das duas administradoras do grupo, cerca300 abortos foram realizadostrês anos.

Muitas mulheres saem do grupo depoisinterromper a gestação. A maioria relata sentir náuseas, fraquezas e dores durante o procedimento, mas destaca o apoio e a atenção recebida das mulheres que administram o grupo. Abortos são realizados diariamente sob a orientação das "guias". Só no dia 28dezembro, pelo menos três gestantes abortaram, conforme as trocasmensagens observadas pela reportagem.

Para entrar no grupo secretoWhatsApp, é preciso ser convidada por uma das administradoras. As novatas são recepcionadas por esta mensagem:

Imagemtutorialvídeo sobre como fazer o procedimentoaborto
Legenda da foto, Coordenadoras do grupoWhatsApp encaminham tutorialvídeo sobre como fazer o procedimentoaborto com medicamento

"Olá, seja bem-vinda! Esse é um grupo feminista destinado à vendamedicamentos. Nosso grupo é um espaçoacolhimento e auxílio, então, por motivossegurança, pedimos que apaguem o histórico do grupo no mínimo uma vez por semana, podendo haver verificaçãocumprimento dessa solicitação."

E todas as participantes precisam seguir regras, como não "fazer julgamentocunho machista" e não compartilhar as conversas com pessoasfora do grupo.

Elas recebem um PDF com instruções detalhadas sobre o procedimento, os contatos para a compra do medicamento e até o telefoneuma clínica clandestina na Grande São Paulo, caso prefiram fazer o aborto com um médico. Também é enviado um tutorialvídeo.

O procedimento na clínica, conforme repassado pelas administradoras no grupo, custaR$ 4,5 mil a R$ 7,5 mil, a depender do estágio da gravidez. Só a primeira consulta custa R$ 400, segundo uma gestante que procurou o serviço.

É uma possibilidade distante para a maior parte das mulheres que optam pela clínica virtual. Em várias ocasiões, mulheres relataram dificuldade até mesmojuntar dinheiro para comprar o medicamentoR$ 900.

"Estou anunciando várias coisas pessoais para vender e fazendo doces, mas parece impossível levantar tanta grana sem que me faça falta dentrocasa", comentou Carolina*. "Me encontrouma situação financeira terrível e sozinha com dois filhos, umaapenas dez meses."

As mulheres que vendem o remédio justificam o custo alto dizendo que correm riscos ao comercializar o produto. O medicamento vendido por elas é proibidoser comercializado no Brasil desde 2005, justamente por causa do efeito abortivo. O uso é restrito a hospitais.

"Nosso estoque está limitado e não podemos dar desconto. Salvo casos raríssimos. Não existe isso, gente. Isso é um produto ilegal e MUITO difícilconseguir. O que mais tem por aí é falsificação. Respeitem o nosso trabalho. A gente cumpre com a nossa parte direitinho e sempre", disse uma das coordenadoras do grupo.

ComprimidosMisprostol
Legenda da foto, Os medicamentos são vendidos a, no mínimo, R$ 900. Para quem estáestágio mais avançado da gestação, o preço pode chegar a R$ 1.500, pela necessidademais comprimidos

A legislação brasileira prevê penaum a quatro anosprisão para quem provoca aborto com o consentimento da gestante.

Segundo o advogado criminalista Conrado Almeida Gontijo, as jovens que administram o grupo também correm o riscoserem denunciadas pelo comércioum remédio que não tem autorização da Anvisa (Agência NacionalVigilância Sanitária) para ser vendido – a pena para esse crime varia10 a 15 anosprisão.

Origem do grupo

A BBC Brasil entrevistou a coordenadora do grupoWhatsApp. A jovem contou que decidiu abrir a "clínica virtualaborto" depoisengravidar aos 19 anosdecorrênciaum estupro.

"Eu não consegui interromper a gravidez legalmente porque o pai era uma pessoa influente. Eu amo meu filho. Mas a maternidade não era algo que eu escolhi para mim. Eu sentia que tinha a vida inteira pela frente e roubaram issomim", afirmou.

"Eu decidi criar o grupo porque eu não acho justo que as mulheres sejam obrigadas a ter um filho se elas não quiserem."

Questionada sobre ter medoser presa, ela responde que sim. "Não vou dizer que não penseiparar. Às vezes, ainda penso. Mas quando vejo que uma mulher tem as oportunidades que eu não tive, me sinto melhor. Gostover as mulheres seguindofrente."

Coordenadora do grupoWhatsApp
Legenda da foto, A mulher que criou o grupoWhatsApp tem só 24 anos. Ela diz que parte da receita com a venda dos medicamentos são usados para doar pílulas abortivas a mulheres pobres que não querem seguir adiante com a gravidez

Segundo a jovem, os remédios são vendidos com uma pequena margemlucro, e a receita é compartilhada com aquelas que atuam como "guias" das grávidas durante o procedimento. Uma outra parte do dinheiro, segundo ela, vai para a doação das pílulas abortivas a mulheres que não podem pagar pelo remédio.

Durante os cinco mesesque a BBC News Brasil acompanhou as conversas do grupo, as administradoras não pressionaram para que as gestantes abortassem. Uma delas chegou a enviar a foto do bebêuma mulher que desistiuinterromper a gravidez.

"Bárbara* faz parte do grupo e decidiu ter. Esse é o bebê dela. Ela desistiu do procedimento", escreveu a jovem que criou o grupo.

"Que lindeza!", reagiu outra integrante. ‬‬‬"Não é? Que fique claro que a gente apoia qualquer decisão. A que ela escolheu só é mais aceita pela sociedade. A alternativa a gente oferece, e fico felizvê-las felizes, independentecomo decidam seguir a vida", concluiu a coordenadora.

O perfilquem procura o 'aborto por WhatsApp'

A grande maioria das mulheres que integram o grupo, incluindo as coordenadoras, é jovem – têm entre 18 e 25 anos.

Muitas moram com os pais e estudam – estão nos primeiros semestres da faculdade – e dizem nas conversasWhatsApp que optaram pelo aborto porque não querem deixar os estudos e não têm independência financeira.

"Gente, eu tenho uma última pergunta. Eu procurei a médica pelo meu planosaúde, mas meus pais não sabemnada que aconteceu. Vocês sabem se esses procedimentos da transvaginal e do examesangue costumam aparecer na folhapagamento do plano?", perguntou uma jovem do RioJaneiro, preocupada com a possibilidadeos pais descobrirem o aborto.

Outra jovem,18 anos, contou que ela própria nasceuuma gravidez indesejada e não tem uma boa relação com os pais. "Eu fui feitaum 'acidente'.‬‬ Tenho 18 anos, e há dois anos estou sem contato com os meus pais. Virei um fardo para os meus avós."

"Eu tenho 23 anos e, se não fosse minha mãe, estava ferrada. Ela não vive até hoje por minha causa e do meu irmão", compartilhou outra mulher.

No dia 8março, Lidiana*,Goiás, entrou no grupo com a intençãocomprar o abortivo para a irmã13 anos, que havia engravidado do primoprimeiro grau. "Ela quer tirar e eu também aconselho, mas tenho medoo procedimento ser muito intenso para ela por causa da idade", contou.

"Por diversos motivos a gravidez não é desejada. Ela é muito nova, a criança é frutoum relacionamento com o primoprimeiro grau, entre outros." Até a publicação desta reportagem, Lidiana ainda não havia decidido se compraria o remédio.

Outras mulheres que integram o grupo já têm filhos, e comentam entre si sobre o impacto das dificuldades da maternidade na decisãointerromper a segunda ou terceira gestação.

"Mando meu filho para a escola doente, porque não posso ficar com ele. Ele fica dez horas na escola todo dia. Confesso que me corta o coração", confidenciou uma mulherMinas Gerais.

"Eu passo uns bocados com meu filho. Se eu tivesse tido mais coragem na época eu teria tirado, mas eu era muito ingênua, achava que era mais simples."

'Eu vou morrer?'

A primeira preocupação das mulheres que entram no grupo é saber se o remédio funciona e se "não vão morrer"tanto sangrar.

Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto,pesquisadores da UniversidadeBrasília (UnB), 500 mil interrupçõesgravidez são feitas anualmenteforma clandestina no Brasil. Cercametade terminainternações. Dados do Ministério da Saúde apontam que pelo menos quatro mulheres morrem por dia por causacomplicações decorrentesabortos.

"Será que preciso pegar folga no dia que eu for fazer?‬‬ Sangra, tipo, muito? Aiiiii quantas perguntas"‬‬, escreveu Lara*, no dia 12dezembro, 15 dias antestomar os remédios. "Tenho muitas dúvidas ainda. Queria saber das meninas que fizeram. Tô ansiosa."

"Tem chanceseu morrer?", perguntou outra gestante.

Várias mulheres passam a compartilhar suas experiências e tirar dúvidas, como Mariana*,São Paulo, que havia abortado 11 dias antes.

"Quando eu fiz, demorou bastante pra sangrar. Fiquei morrendomedo, comecei a fazer o procedimento à 1h30 da madruga. Às 10h da manhã, senti cólicas absurdasfortes, o líquido amniótico desceu, epoucos minutos o feto saiu inteiro na privada."

Ela contou que foi ao hospital fazer curetagem.

mulher com celular na mão
Legenda da foto, Normalmente, a primeira preocupação das mulheres que entram no grupo é saber se o remédio funciona e se "não vão morrer"tanto sangrar

"Sangrei horrores, e saiu bastante pedaço. Continuei sangrando e com cólicas, e dois dias depois saiu um pedaço grande da placenta. Porém, continuava com muitas cólicas insuportáveis. Em uma semana fui ao hospital, fiz exames e deu abortamento incompleto (quando sobram restos do feto ou placenta). Fiz a curetagem, que teve seus péssimos momentos, mas graças a Deus me livreitudo."

Bárbara*,Pernambuco, contou que quase desmaiou durante o procedimento. "Tem uns momentos que dá muita fraqueza. Eu não tive diarreia, mas vomitei bastante. E fiquei fraca, quase desmaiando e com calafrios. Mas foram umas três horas sofrendo e, depois, alívio."

A BBC Brasil entrevistou uma jovem28 anos que interrompeu a gravidez com auxílio do grupo.

"Eu fiz o uso dos comprimidos e, depoisalgum tempo, quando começaram os efeitosdor,cólica, eu me mantive calma, e conversei com algumas meninas. As meninas se ajudam e se apoiam ao nívelnão dormirem se alguém faz o procedimento na madrugada", relatou.

"O aborto não tem que ser utilizado como contraceptivo, não deve ser usadoforma banal. Mas, como mulher, eu tenho direito à autonomia do meu corpo."

Os riscos

A BBC Brasil consultou a ginecologista Renata Peixoto, que realiza procedimentos legaisinterrupçãogravidezum hospital públicoBrasília e atende lá mulheres que tiveram complicações por abortos clandestinos.

Ela disse que as doses recomendadas pelas administradoras do grupoWhatsApp são altas. O objetivo seria garantir eficácia, já que essas mulheres têm a possibilidadefazer o procedimentohospitais.

A BBC Brasil questionou as administradoras do grupo sobre as doses prescritas. As jovens disseram que a dosagem foi recomendada por médicos que conhecem. Elas afirmam que nenhuma grávida que integrou o grupo morreu, mas reconhecem que há riscos.

"Não é 100% seguro. Mas se eu não acompanhar essas mulheres, elas vão acabar fazendooutra forma, talvez mais insegura. Não quero deixá-las sozinhas", disse uma das administradoras.

Quando uma grávida faz aborto supervisionado na rede pública, ela toma um comprimidocada vez e é observada para verificar se o procedimento foi concluído e se o sangramento está dentro do esperado. O objetivo é justamente evitar que tomem o medicamentodose maior que o necessário. Em alguns casos, a interrupção da gravidez é feita por sucção, mediante anestesia, por ser um procedimento rápido e sem dor.

Mulher sendo atendida por médico

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Quando aborto é realizado na rede pública, a mulher toma o medicamento sob monitoramento dos médicos e nem sempre precisamaisdois comprimidos. Objetivo do acompanhamento é controlar a hemorragia e intervircasocomplicação

Nos Estados Unidos, no entanto, o aborto com medicamento é, muitas vezes, realizado legalmentecasa, por orientação médica. As gestantes podem entrarcontato com a clínica durante o procedimento e são orientadas a retornarcasohemorragia.

A médica Renata Peixoto diz que atende todos os dias mulheres com "abortamento incompleto" e que, pelo menos três vezes por semana, recebe pacientes que tiveram claramente complicações decorrentesprocedimentos clandestinos.

Segundo a especialista, os riscosfazer o procedimento sem supervisão médica vãohemorragia – que pode levar à necessidadetransfusão ou morte, se a mulher não procurar ajuda – à ruptura e infecção do útero, especialmente se realizado por mulheres submetidas anteriormente a cesárea ou que estejamgestação avançada, ou seja,mais11 semanas.

"Atendi uma vez uma menina19 anos que estava com infecção tão avançada no útero que tivemos que retirar o útero dela, porque o tratamento com antibiótico não daria conta. Infelizmente, é uma menina nova que não poderá mais ter filhos", disse.

"O que a gente vê é que a proibição do aborto não impede que ele aconteça. As mulheres que realmente não querem ter acabam abortandoqualquer jeito, mas correm riscos."

As administradoras do grupoWhatsApp recomendam às mulheres irem ao hospitaldois dias a uma semana depoistomarem os abortivos. O objetivo é verificar se há resquícios do feto e evitar infecções.

Paula* não seguiu as orientações, o útero dela infeccionou e ela precisou ser internada. ‪"Eu saí do hospital (agora). Era pra começar a tomar antibióticos hoje, mas só consigo amanhã", disse ela às demais integrantes do grupo no dia 15dezembro.

"Não vou morrer, né?", perguntou. Uma das administradoras tentou acalmá-la. "Vai não. Pode ficar tranquila. Mas, por favor, tome direitinho (os antibióticos) a partiramanhã."

No dia seguinte, Paula voltou a dar notícias. "Eu enrolei para ir ao hospital achando que a dor ia parar, e ainda tinha restomaterial que infeccionou meu útero. Agora estou tomando antibióticos. Se você sentir dor demais, é muito importante ir ao hospital", aconselhou às outras gestantes.

fachadahospital
Legenda da foto, As coordenadoras do grupoWhatsApp recomendam que todas as mulheres procurem o hospital dois dias após o aborto. Mas muitas temem ser denunciadas à polícia pelos médicos e enfermeiros

Além dos riscos à saúde, as mulheres que abortam clandestinamente vivem o medoserem denunciadas ao procurarem atendimento no hospitalcasocomplicação ou para fazer curetagem (retirar eventuais resquícios do feto do útero).

O Código Penal brasileiro prevê penaprisãoum a três anos a mulheres que fizerem um aborto.

A BBC Brasil entrevistou uma jovemSão Paulo que foi denunciada por interromper a gravidez justamente pela médicaplantão que a atendeu. Ela tomou pílulas sozinhacasa e se desesperou com as dores. Acabou indo a um hospital público, e a médica chamou a polícia.

A mulher,24 anos, contou que os policiais foram até o hospital e a interrogaram enquanto ainda sangrava .

"Assim que acabeiabortar o feto, eu tive uma convulsão. Eles entraram na sala falando que era para eu confessar, senão eu ficaria algemada, que eu iria para um presídio. Foi autuado crimeflagrante", disse. Ela teve que pagar fiança para ser liberada e hoje enfrenta um processo penal.

No grupoWhatsApp a que a BBC Brasil teve acesso, várias conversas giramtorno do medoser denunciada ao procurar atendimento.

"Oi, meninas. O que vocês falaram no hospital? Tenho muito medo da curetagem. Foramhospital normal, emergência?", perguntou uma das mulheres.

"Eu fui ao hospital normal. Disse que tinha acordado com sangramento e cólicas. E que estava grávidaseis semanas‬‬‬‬‬", relatou outra jovem,Campinas (SP).

Um dos receios delas é que o remédio abortivo seja detectado. "Eu tô sem unha para roertão ansiosa para poder dormir sem ter pesadelo com isso. Li que se o sangramento encher quatro absorventes noturnosmenosduas horas, é para procurar o hospital", comentou uma estudanteveterinária23 anos que havia acabadoreceber os remédios abortivos.

As administradoras do grupo dão uma sérieorientações às gestantes para evitar que sejam descobertas ao procurar ajuda. Elas dão dicascomo fingir um aborto espontâneo e evitar suspeitas. "Atue", resumem elas.‬

celular
Legenda da foto, A maioria das mulheres que integram o grupo é jovem. Muitas ainda moram com os pais e estão na faculdade ou terminando o ensino médio

‬‬Problemas com métodos contraceptivos

A professora Diana Greene, da Universidade da Califórnia, que faz pesquisa demográfica sobre abortotodo o mundo, disse que a maior causagravidez indesejada é a dificuldade das mulheresencontrar métodos contraceptivos adequados para o organismo delas.

"É importante lembrar que ninguém engravida sozinha. Os homens fazem parte deste processo. E o grande problema é que muitas mulheres não encontram métodos contraceptivos adequados às necessidades delas", disse à BBC Brasil.

"Algumas sofrem com efeitos colaterais dos métodos com hormônio, os homens não aceitam usar camisinha ou o governo dificulta o fornecimento gratuitooutros métodos", exemplifica.

Esse é um dos principais assuntos discutidos pelas mulheres que integram o grupoWhatsApp. Muitas dizem que pararamtomar anticoncepcional porque tinham efeitos colaterais. Outras relatam que enfrentaram burocracias ao pedir, na rede pública ou ao planosaúde, para implantar o DIU (Dispositivo Intra-Uterino).

"E o DIU que meu plano não deixa, porque eu não tenho filho? Só depoister o primeiro! Absurdo. E meu direitonão querer ser mãe? Não sou materna", se queixou uma mulherSão Paulo na vésperaNatal.

"Eu queria muito algo sem ser hormônio. Expliquei ao médico que não queria, porque fumo e que vou passar por um procedimento cirúrgico para emagrecer‬‬‬‬‬. Mas ele não passou nada. Só anticoncepcional", comentou uma jovemMinas Gerais.

Outra mulher, do RioJaneiro, disse que o médico dela recomendou não fazer sexo como método contraceptivo. "Meu médico disse que se não quero engravidar é só eu não dar. Só porque não tenho parceiro fixo há três anos." ‬‬‬‬‬‬‬‬‬‬

Também há discussões sobre a resistência dos homensusar camisinha. "Sempre arrumam um jeitoculpar a mulher. E depois querem que ela se lasque parindo uma criança que não quer", reclamou uma participante.

Elas também questionam o fatonão haver anticoncepcionais masculinos no mercado. "Está muito confortável para eles. Desistem das pesquisas, porque o anticoncepcional masculino causaria os mesmos efeitos que os femininos. Mas os homens são muito egoístas para assumir essa responsabilidade."

pílulas

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Diana Greene Foster, da Universidade da Califórnia, diz que as mulheres têm dificuldade para achar métodos contraceptivo que se adequem às necessidades dela. Alguns homens se recursam a usar camisinha e algumas mulheres tem reações adversas a hormônios

Outro tema recorrente é a criminalização do aborto no país.

"Meninas, deixa eu falar uma coisa para as moças que ainda não fizeram por medoalgo. ‬Eu curso engenharia, e na minha faculdade só tem filharico. Aborto entre elas é normal. Elas debatem numa boa, e a maioria já fez, só que fora do país", comentou uma jovem do RioJaneiro. "Aborto só é pecado para pobre", criticou.

Outra mulher, do Espírito Santo, disse que foi "obrigada" a ter o filho e que tentou se matar durante a gestação. "Eu tive um filho obrigada... O pai furou o preservativo‬‬‬‬‬‬. Botaram um cãoguarda atrásmim 24h para eu não abortar‬‬‬. Me senti um lixo‬‬‬. Tentei me matar duas vezes", relatou. ‬‬‬"Até hoje não me sinto feliz com meu filho... É um trauma olhar pra ele e lembrar daquele inferno‬‬‬. Amo ele, mas o trauma não some‬‬‬."

"Engravidei com 18 anos e, como eu era superingênua e não tinha contato com dinheiro, não pude abortar. Minha mãe até fez uns remédios caseiros para ver se funcionava, mas claro que não funcionou. Hoje tenho 26 anos, faço faculdade e trabalho, mal consigo ter tempo para meu filho exatamente para tentar garantir um futuro para ele. E poucas pessoas entendem isso", compartilhou outra jovem do Espírito Santo.

O aborto é permitido na maior parte dos países desenvolvidos, como Estados Unidos, Canadá e os integrantes da União Europeia. Na América Latina, Cuba e Uruguai permitem a prática. Na Colômbia, o aborto passou a ser permitido para resguardar a saúde mental da mulher o que, na prática, contempla a gravidez indesejada.

Apesaro Brasil ter uma das legislações mais restritivas do mundorelação ao aborto, segundo a OMS, uma proposta, no Congresso Nacional, pode tornar a lei ainda mais rígida.

Uma comissão da Câmara aprovou no ano passado uma emenda à Constituição que estabelece a proteção da vida desde a concepção. Na prática, a proposta pode criminalizar até abortoscasoestupro e feto com anencefalia. O texto seguetramitação.

Por outro lado, o Supremo vai decidir se o aborto até o terceiro mês deve deixarser crime.

Os debates nas duas casas já começaram e podem determinar o futuroum tema polêmico que envolve a saúdemilharesmulheres.

"Fazer um aborto não é uma decisão fácil. Ninguém quer passar por isso. Quando eu fiz, eu tinha 17 anos. Eu fiz o aborto sozinha num quartohotel. O pior sentimento é oabandono", descreveu uma jovem24 anos no grupoWhatsApp.

*Os nomes foram trocados para proteger a identidade das mulheres.‬‬‬‬‬‬‬