'Fiz uma descoberta importante sobre o vírus que matou meu pai':

Marcella Cardoso e Luiz Carlos Cardoso

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, A cientista Marcella Cardoso (à direita) resolveu investigar o coronavírus após a morte do pai, Luiz Carlos (à esquerda)

A perda precoce motivou uma verdadeira viradachave na carreira da pesquisadora — que foi diretamente influenciada por uma sérieeventos globais, profissionais e pessoais.

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Mas, para entender como a cientista chegou até aqui, é preciso dar alguns passos para trás e entenderonde ela veio.

A educação liberta

Nascida e criada no interior paulista, Cardoso precisou lidar com exigências e altas expectativas desde a infância.

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A mãe dela, Regina Cardoso, era professora da rede pública e privada — e, com seis anos, a menina foi matriculada numa escola particular, onde tinha uma bolsaestudos oferecida aos filhosfuncionários da instituição.

"Essa bolsa sempre esteve atrelada ao meu desempenho escolar, então eu precisava tirar boas notas e aprendi cedo a ser muito aplicada nos estudos", diz.

Ela se lembra da disparidade econômica entre a família dela e dos colegasclasse. "Para minha mãe conseguir sustento, ela trabalhava três turnos, manhã, tarde e noite. Nossa casa era extremamente simples."

Cardoso lembrauma frase que a mãe disse à época. "Ela me falou: 'Marcela, o estudo é a maneiravocê mudar a realidade e ter um futuro". Essa ideia me acompanha até hoje."

Na adolescência, após alguns vestibulares frustrados, ela finalmente foi aprovada no cursoCiências Biológicas da Universidade FederalSão Carlos (UFSCar), também no interiorSão Paulo.

"Nos últimos anosfaculdade,meados2011, fiz uma iniciação científica e realmente me apaixonei pela áreapesquisa", destaca ela.

A iniciação científica mencionada pela especialista é um projeto feito por alunos do Ensino Médio ou da graduação universitária, com a orientaçãoprofessores. O objetivo aqui é estimular a produção do conhecimento nas primeiras etapas da formação intelectual e acadêmica.

Com o diplomamãos, Cardoso foi direto para o mestrado na FaculdadeCiências Médicas da Universidade EstadualCampinas (Unicamp), onde se especializousaúde materna.

Com mais essa etapa concluída, ela seguiu para o doutorado na mesma Unicamp, onde mergulhou no campo da oncologia ginecológica e mamária.

"O doutorado foi um divisoráguas. Tive a primeira oportunidadefazer um estágio fora do paísBarcelona, na Espanha", conta ela.

Em 2019, quando estava prestes a completar o doutorado, Cardoso ficou sabendouma oportunidade pela qual ansiava há tempos: a CoordenaçãoAperfeiçoamentoPessoalNível Superior (Capes), órgão vinculado ao Governo Federal, havia aberto um editalmobilidade internacional, para alunos que desejavam estudar fora.

"Eu tinha que jogar para ganhar. Então, antes mesmofazer a inscrição no edital, eu entreicontato com um grupopesquisa da EscolaMedicinaHarvard, fiz uma sérieentrevistas e fui selecionada para uma vaga."

"Com isso, me candidatei à bolsa da Capes com essa carta na manga e acabei aprovada."

Cardoso chegou aos Estados Unidos no finalzinhojaneiro2020 e viveu quase um mêsnormalidade — até que março chegou e trouxe junto a pandemiacovid-19.

"Eu trabalheicasa por algum tempo, mas minhas pesquisas eram realizadas no Massachusetts General Hospital, que está entre os maiores centros médicos dos EUA. Então logo voltamos ao presencial", diz ela.

Em fevereiro2021, passado quase um ano desde que o coronavírus se espalhou pelo mundo, a cientista recebeu uma notícia decisiva. "Meu pai me ligou para dizer que tinha testado positivo para covid."

MarcellaHarvard

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Marcella concluiu o doutorado na Universidade Harvard, nos EUA

Saltofé 1

Após a fatídica ligação, Cardoso começou a bolar um plano. "Eu já tinha tomado a primeira dose da vacina e recebi o treinamento sobre como lidar com pacientes com covid-19", resume.

Ela pensou que, ao tomar a segunda dose, poderia retornar ao Brasil para ficar perto do pai, o corretorimóveis Luiz Carlos Cardoso.

Mas a decisãovoltar ao país significava uma encruzilhada para a cientista. "O Brasil vivia uma das piores ondas da pandemia e o consulado dos Estados Unidos estava completamente fechado", diz.

"Se eu fosse ao Brasil, não existia qualquer garantiaque conseguiria voltar para os EUA e terminar o meu doutorado aqui."

Para ela, tomar uma decisão desse tamanho foi algo muito cruel. "Tive que dar esse saltofé. Eu precisava ver meu pai… Na verdade, algo já dizia dentromim que seria uma despedida e eu precisava ao menos dar um enterro digno a ele."

Enquanto planejava o retorno, Cardoso tentava acompanhar a saúde do pai à distância.

Nesse meio tempo, Luiz Carlos teve uma piora do quadro e precisou ser internado numa UnidadeTerapia Intensiva (UTI)um hospital público localizadoCampinas.

"É torturante lidar com o silêncio. Fiquei sem notícias do meu pai durante quase 48 horas."

A cientista descobriu o telefone da UTI do hospital e, após diversas tentativas frustradasligação, alguém atendeu do outro lado. "Eu me lembro da adrenalina que senti. Pedi informação e a pessoa me respondeu que não estava autorizada a falar."

"Eu estavajoelhos e implorei para que ela apenas me dissesse se meu pai estava vivo."

De volta ao Brasil, a única coisa que Cardoso conseguiu fazer foi uma reunião com a médica responsável pela UTI onde o pai estava. Mesmo vacinada e com treinamento, ela não foi autorizada a visitá-lo.

"Eu queria muito ver meu pai, para poder me despedir dele."

No dia 14março2021, Luiz Carlos morreucovid.

"Ele faleceu por volta do meio dia, mas só recebemos a ligação para irmos ao hospital no final da noite. Quando me informaram da morte, pediram que eu reconhecesse o corpo dele."

"Quer dizer, eu não podia me despedir do meu pai pelo risco do contato com alguém infectado, mas agora que ele morreu tudo bem eu ir lá?"

"Isso mostra como a situação estava dramática no Brasil. Não culpo a equipe do hospital, porque sei que eles estavam fazendo o melhor possível diante das condições."

Cardoso diz que a penúria se prolongou por dias. "Após a morte, tive que ligar para as pessoas e pedir para que elas não fossem no velório."

"Minha mãe mesmo ficoucasa. Imagina, você perder a pessoa que mais ama e não poder nem se consolar com amigos e familiares…Eu mesma não pude abraçar minha mãe naquele momento."

"Foi tudo muito dramático. Meu pai morreu sem ter ao menos a oportunidadetomar a vacina", complementa ela.

Luiz Carlos e Marcella

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, A cientista voltou ao Brasil para se despedir do pai, mas não foi autorizada a entrar na UTI

Saltofé 2

"Meu pai faleceumarço2021. Mas, como o mundo não para, precisei recolher os pedaços do meu coração, porque no mês seguinte eu tinha que fazer o examequalificação para o doutorado", continua Cardoso.

O tal examequalificação é uma das etapas mais importantes da formação. Ela ocorre anteso aluno fazer a defesa da tese,que reúne todas as informações daquilo que pesquisou até aquele momento e, caso seja aprovado, ganha o títulodoutor.

E, para fechar essa etapa da carreira acadêmica, a cientista precisava voltar a Harvard.

"Mas as embaixadas e os consulados americanos estavam fechados. Descobri que, naquele momento, só existiam três exceçõesque se permitia a alguém entrar nos EUA: se você estivesse fazendo um tratamento médico, se tivesse um filho no país ou se era pesquisador e estivesse trabalhandotemas relacionados à saúde, ou mais especificamente à covid."

Como se encaixava no terceiro grupo, a brasileira pediu que os colegas da universidade fizessem uma carta para solicitar o retorno dela às terras americanas.

Quatro meses depois,meadosjulho2021, ela tinha toda a papeladamãos e obteve a autorização para regressar.

De volta à bancada do laboratório, Cardoso enfrentou novas dificuldades. "A bolsa que eu ganhava da Capes acabou e tive que dar um novo saltofé. Precisei morarfavor durante alguns meses, porque Boston é uma cidade muito cara."

Nesse período, ela também sofreu um acidente grave. "Eu estava vestida com uma camisa larga,material sintético, que por acaso me lembrava muito o meu pai."

"Me aproximeium balcão, onde havia acendido uma vela aromática."

"Em questãosegundos, a camisa estavachamas. Tive queimadurassegundo e terceiro grau", diz ela.

Cardoso diz que sentiu muita dor, mas não conseguia chorar. "Não sou uma pessoa que tem aquela positividade tóxica. Mas, naquele momento, lembroter pensado: 'Marcela, você acabouenterrar o seu pai. Nada pode ser pior do que isso'."

Recuperada do acidente, Cardoso finalmente defendeu o doutoradosetembro2021 — e já havia engatilhado um pós-doutorado na sequência.

Em outubro, ela começou a nova etapa da carreira acadêmica no Instituto Ragon, um centroreferênciaimunologia, mantido por Harvard, Massachusetts Institute of Technology (MIT) e Massachusetts General Hospital.

"A priori, fui contratada para fazer estudos sobre imunoterapia e câncermama."

"Mas estávamos no meio da pandemia e, com uma certa audácia, perguntei se eles deixariam que eu liderasse uma linhapesquisas sobre a covid-19. E eles disseram que sim."

MarcelaHarvard

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, No pós-doutorado no Instituto Ragon, a cientista liderou uma linhapesquisas sobre a covid grave

'Minha pesquisa composta por sangue latino'

O trabalho encabeçado por Cardoso tinha como objetivo principal responder uma questão: por que algumas pessoas, mesmo jovens e saudáveis, sem nenhuma comorbidade, desenvolvem a forma grave da covid-19 e precisam ser internadas e intubadas?

"O que acontece que o sistema imunológico desses indivíduos não consegue contra-atacar a infecção?", questiona ela.

A curiosidade, aliás, tem a ver com a história do próprio pai dela que, apesarestar com 67 anos, não possuía nenhuma condiçãosaúde mais preocupante.

"Quando meu pai morreu, eu criei um compromisso comigo mesmo de, a partir da minha bagagem acadêmica, usar minha inteligência, criatividade e senso crítico para fazer algo significativo sobre a covid", relata.

Outro cuidadoCardoso foi trazer o Brasil para a pesquisa. Ela estabeleceu uma parceria com especialistas do HospitalClínicas da Unicamp, que enviaram amostrassangue colhidaspacientes que desenvolveram a covid grave.

Esse material foi usado para observardetalhes como as células se comportam dianteum ataque viral.

"Geralmente, as pesquisas relacionadas ao Brasil carregam o estigma da escassez e das doenças típicas do terceiro mundo. Mas gostaria que nosso país pudesse ser olhado sob outro prisma."

"Eu queria que a minha pesquisa fosse composta por sangue latino", brinca ela.

Como Cardoso tinha acesso a um laboratório com altíssimo nívelbiossegurança, ela podia trabalhar diretamente com o coronavíruscarne e osso (ou proteínas e ácidos nucleicos, para ser mais exato). "Nós nos vestimos com roupas especiais, parecíamos astronautas", caracteriza a cientista.

O trabalho consistia basicamentetestar uma a uma as dezenasproteínas do coronavírus, para ver se alguma estava relacionada à gravidade da infecção.

Foi aí que a pesquisadora brasileira encontrou a ORF6, uma proteína produzida pelo genoma do Sars-CoV-2 (o patógeno causador da covid).

E aqui vale uma breve aulabiologia. Quando uma célula do nosso corpo está doente — foi infectada por um vírus, por exemplo — ela "ganha" receptores na superfície chamados MIC-A e MIC-B.

Esses tais receptores servem como uma pista para que células do sistema imunológico conhecidas como NK (siglainglês para natural killers, algo como ‘assassinos naturais’) entremação.

Como o próprio nome sugere, as NK matam as células doentes para evitar que o problema cresça, se agrave ou se espalhe.

"É como se as células NK fossem os guardiões do nosso corpo, patrulhando constantemente para detectar e destruir qualquer célula que tenha sido comprometida por um vírus", explica Cardoso.

Mas o coronavírus encontrou uma maneira"driblar" essa camadaproteção do nosso corpo. Aquela proteína ORF6 fabricada pelo patógeno inibe os receptores MIC-A e MIC-B que deveriam aparecer nas células doentes.

Sem esse sinal, as células NK não detectam o perigo — e o coronavírus fica quietinho dentro da célula, usando todo o maquinário biológico para criar novas cópiassi mesmo, que vão repetir esse processooutras partes do organismo.

E esse fenômeno, conhecido no meio científico como evasão imune, aconteceforma mais pronunciada justamente nos pacientes com covid grave.

"Foi um trabalho muito exaustivo", admite a cientista.

"Tivemos que comprovar esse mecanismodiferentes maneiras, para ter certeza que elefato está envolvido com a gravidade da infecção."

Mas a pesquisa feita por Cardoso foi além: o timeespecialistas decidiu avaliar se um remédio experimental chamado 7C6, da classe dos anticorpos monoclonais, poderia servirproteção para esses indivíduos.

"Esse anticorpo se liga ao MIC-A e MIC-B da célula e serve como uma espécieescudo. Com isso, a proteína ORF6 do coronavírus não consegue varrer esses receptores", explica ela.

Daí, com os tais receptores ativados, as células NK podem fazer o trabalhoeliminar as unidades doentes antes que o agente infeccioso cause um estrago muito grande.

Células NKação

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, As células NK (em cinza na ilustração) patrulham o organismo e matam as células doentes

Cartaamor

Na prática, esses resultados obtidos no experimento abrem a possibilidadenovos tratamentos contra a covid e contra outras doenças infecciosas no futuro.

"Atualmente, estamos fazendo testes pré-clínicos, com camundongos geneticamente modificados, que são um modelo mais próximo do ser humano", conta ela.

Segundo Cardoso, pesquisas como a dela constroem uma espéciealicerce para entender melhor outras infecções virais no futuro.

"Imagina tudo o que tivemos que construir e aprender a ferro e fogo durante a pandemiacovid-19", reflete.

"Quando vier a próxima pandemia, e é só uma questãotempo para termos outra, conhecer a ORF6 pode ser determinante para termos um prognóstico diferente."

A brasileira também se incomoda com o fatoolharmos a covid-19 como algo que ficou no passado.

"A doença ainda afeta pessoas hoje e precisamos continuar a dar a importância devida a ela."

Os resultados da pesquisa, que detalha o papel da ORF6 e o potencial terapêutico da molécula 7C6, foram publicadas no finalabril na Cell, uma publicação acadêmica que está entre as mais prestigiadas no ramo das ciências biológicas, ao ladoScience e Nature.

O artigo contou com a supervisão dos pesquisadores Wilfredo F. Garcia-Beltran e Julie Boucau e teve a contribuição do alunomestrado Jordan Hartmann, que divide a autoria da publicação com Cardoso.

"Para você ter ideia do rigor desse processo, nós submetemos o artigo para publicação25julho2023 e ele foi oficialmente aceito apenasmarço2024", informa a cientista.

A coincidênciadatas, aliás, não passou despercebida por ela.

"O aceite da publicação do estudo veio exatamente três anos depois que meu pai morreu."

Mais do que apenas uma descoberta técnica e científica, Cardoso classifica o trabalho como uma espéciehomenagem.

"Esse artigo é uma cartaamor que escrevi para meu pai", conclui ela.