Os 100 anos do Manifesto Pau-Brasil, que 'virou a página' da poesia brasileira:

capa do livro Pau-Brasil

Crédito, Domínio Público

Legenda da foto, Reprodução da capa do livro Pau-Brasil, lançado na esteira do manifesto

“A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica.// A contribuição milionáriatodos os erros.// Como falamos. como somos”, diz o texto.

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Homens sentadosescada

Crédito, Domínio Público

Legenda da foto, Alguns dos principais nomes do modernismo,fotoautor desconhecido. No meio modernista, o manifesto repercutiu fortemente, influenciando a produção.

O manifesto foi escrito todotom festivo eprosa poética. Espelhando e parodiando um estilo própriovanguardas da época, Oswald lançou mãouma linguagem telegráfica, muito representativa do futurismo e do cubismo.

Em essência, o autor pretendia mostrar que era horao Brasil se tornasse um país exportadorcultura, da mesma forma como havia sido, no século 16, o exportadorpau-brasil, a árvore. O manifesto deixa claro que havia um entendimento modernista que a poesia brasileira estava no mesmo patamar da europeia — e poderia vir a influenciá-la, invertendo a tendência dos tempos anteriores. “Acertar o relógio império da literatura nacional”, pontua o texto.

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ProfessoraLiteratura Brasileira na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e tradutora, a pesquisadora Sandra Mara Stroparo define à BBC News Brasil o Manifesto Pau-Brasil como uma “viradapágina”, com “a real modernização da poesia brasileira”.

“Tem a ver com questões temáticas eforma. Mas, principalmente, tem a ver com uma espéciepágina virada, porque ainda havia um restinhoranço, algumas questõesinfluência e tradição europeias [mesmo após a Semana22]”, comenta ela.

“O manifesto […] deve ser compreendido no processomodernização que vinha sendo desenvolvido por um grupointelectuais, escritores, artistas, jornalistas, por meiodebates na imprensa, artigosrevistas e, principalmente, pela produçãoobras literárias e artísticas”, contextualiza à BBC News Brasil a especialista Maria Lúcia Outeiro Fernandes, livre docenteliteratura, professora na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autora dos livros ‘Novíssima: estética e ideologia na décadavinte’ e ‘Rupturas e desdobramentos: reverberações críticas da SemanaArte Moderna’.

Ele sintetizatries os principais propósitos do manifesto. “Em primeiro lugar, romper com a arte que se fazia no Brasil, a qual denominavammodo geral como passadismo, termo com que se buscava desqualificar a arte que seguia modelos tradicionais importados da Europa via Portugal”, pontua.

“Em segundo lugar, buscar as características culturais do país, que deveriam nortear a criaçãouma literatura eminentemente brasileira, que iria libertar o país do colonialismo culturalrelação à ex-metrópole”, acrescenta ela. “Finalmente, outro tópico essencial no debate e nas experiências promovidas pelos modernistas, era a necessidadeencontrar novas formas e novas linguagens, ou seja, novos procedimentoscriação, mais afinados tanto com as experiências das vanguardas, que estavam alvoroçando o campo das artes na Europa, quanto com o modoser brasileiro,cultura, seus costumes,língua já tão distante do idioma faladoPortugal.”

Depois que essas ideias foram absorvidas pela intelligentsia, a literatura brasileira mudoufato, com, segundo Stroparo, “a consciênciaque a poesia que eles vão produzir já não é uma poesia que nem precisa, nem lamenta e nem espera o olhar do europeu”. “É uma poesia essencialmente brasileira”, afirma.

"OswaldAndrade, com o Manifesto Pau-Brasil, manda uma espécierecado para todos os escritores da incipiente república na década20: chegaeruditismo", afirma à BBC News Brasil o professor VicentePaula da Silva Martins, da. Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA).

"Para ele, a poesia deveria ficar longe do estilo pomposo que caracterizou tanto os simbolistas e os parnasianos no século 19, devendo ser agora 'ágil e cândida', tão leve e sábia como 'como uma criança'. O manifesto destaca que o espaço do labor poético deve ter a cor local", complementa.

Publicação e repercussão

OswaldAndrade,foto sem data

Crédito, Arquivo Nacional

Legenda da foto, OswaldAndrade,foto sem data

Mas não é possível entender o impacto do manifesto imaginando que foi como um textãoFacebook ou um reelsInstagram que viralizou no WhatsApp da galera. “Em um mundo sem TV e com pouco rádio, quase nenhum, apenas com jornais, podemos imaginar que a repercussão era limitada”, avalia Stroparo.

“E a primeira repercussão foi no RioJaneiro [de onde era o jornal], que já havia feito ouvidos moucos para a SemanaArte Moderna. E vai fazer também para os manifestosOswaldAndrade”, completa a professora. “

Autora de, entre outros livros, ‘Semana22: Entre Vaias e Aplausos’, a jornalista e escritora Marcia Camargos diz à BBC News Brasil que a recepção do manifesto foi “da mesma forma que se deu a recepção da Semana22”, ou seja, “o grande público não tomou muito conhecimento na ocasião”.

Era natural que o buzz ficasse apenas entre os envolvidos na questão, afinal. E o real significado daquela publicação só fosse entendido décadas mais tarde, com estudos acadêmicos e análise das produções culturais subsequentes.

“Na cultura tudo vai se amalgamando aos poucos. Não dá para medir o impactoum evento cultural ou artístico apenas pelo momento que ele ocorre. Eles podem ecoar durante muito tempo ou serem resgatados a qualquer momento. As narrativas estão sempremovimento”, explica à BBC News Brasil o educador Francione Oliveira Carvalho, professor na Universidade FederalJuizFora (UFJF) e na UniversidadeSão Paulo (USP).

Ele salienta que o manifesto “interferiu no pensamento e na produção artística” que veio a seguir e seu impacto na poesia e na arte brasileiras foi, “aos poucos, se revelando e materializando-se”.

“Aquilo não teve nenhum impacto maior na sociedade. Na rodamodernistas e entre os vanguardistas, é claro que causou furor e foi bastante discutido”, acrescenta Camargos. “O manifesto veioalguma forma responder aos anseios do [escritor] MarioAndrade [(1893-1945)], que estava muito preocupado com os colegas22, os modernos que vinham beber nas fontesParis.”

“Ele se preocupava com o afastamento das raízes brasileiras e o Manifesto Pau-Brasilalguma forma veio devolver o Brasil para aqueles brasileiros”, afirma a jornalista e escritora.

Professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o pesquisador André Gomes lembra à BBC News Brasil que “a despeito da realização da SemanaArte Moderna1933, o gosto artístico brasileiro continuava,certo modo, vinculado a manifestações parnasianas e simbolistas que ainda estavam presentes naquele momento, sobretudoum reduto oficial, a Academia BrasileiraLetras”.

Por isso, ele avalia que o manifesto “foi recebido com escândalo pela elite paulistana”. “A publicação [do texto] foi importante porque marcava uma tomadaposiçãouma ala dos modernistas, os que se caracterizaram pela oposição a certa visão ufanista do Brasil que se desenhava na emergência do chamado verde-amarelismo e que tinha como representantes figuras como Plínio Salgado, Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia, etc.”, explica.

Sanches Neto diz que inicialmente o manifesto foi tachadopolêmico. “São polêmicasduas naturezas: as pelas ideias contidas nele, com a defesa do nacional, da miscigenação, dos indígenas contra os colonizadores, e há também a polêmica causada pela própria linguagem extremamente direta, agressiva”, ressalta. “Não era própriauma literatura até pouco tempo vigente no Brasil.”

“Então ele revoluciona pelas ideias, essa defesa do local e do primitivooposição ao europeu. E escandaliza pela linguagem direta, aforística, desabusada e irônica, que tem também um caráter polêmico”, analisa o escritor.

O críticoarte Marcos Rizolli, pesquisador e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), diz à BBC News Brasil que o manifesto “foi recebidoforma pendular”. “De um lado, as forçastradição, muito presentes na sociedadecultura paulistana que compreendia o gosto pela arte acadêmica;outro, os modernistas, que representavam as forçasinovação, propondo uma radical ruptura com os valores estéticos ainda circulantes”, compara ele.

“Curioso que os tradicionalistas exerceram uma crítica um tanto ideológica,nome da ‘arte do passado’, enquanto os modernistas,tão encantados com seus anseiosarte, não conseguiram reconhecer que o acontecia por aqui desde 1922 já era,algum modo, passado recente na Europa”, critica.

Teatro municipalSao Paulo

Crédito, Arquivo Nacional

Legenda da foto, Teatro MunicipalSP,imagem dos anos 1920: local foi palco da SemanaArte Moderna1922, marco do movimento modernista

Depois do Pau-Brasil

“O Manifesto Pau-Brasil revisa a história cultural do Brasil e a necessidaderever o que fazia do Brasil ser o Brasil. Ou seja, atualiza os imaginários sobre o que é ser brasileiro. Um desejouma cultura menos intelectualista e mais terrena, que brotasse literalmente do chão eseus paradoxos”, pontua o educador Carvalho. “Não é à toa a escolha do Pau-Brasil para nomear o manifesto.”

Ao analisar o que significou o Manifesto Pau-Brasil, a professora Stroparo entende queimportância está “no momento histórico” e na “escolha das questões” nele contidas e, principalmente, “no impacto radical que só um manifesto pode impôr”.

Gomes ressalta que o manifesto,“caráter iconoclasta” acabou reverberando “por muitos anos na produção artística do Brasil”. “Bons exemplos estão presentes, por exemplo, no Tropicalismo, a convivência sempre tensa entre o moderno e rudimentar nas artes brasileiras, o que já estava indiciado nesse movimento”, comenta o professor.

O poeta e tradutor André Capilé, professorLiteratura Brasileira na Universidade Estadual do RioJaneiro (UERJ), diz à BBC News Brasil que também entende esse manifestando tomando “maior corpo” nas consequências “da poesia brasileiramodo geral”. “Em particular com os concretos e, posteriormente, com a Tropicália”, afirma.

Rizolli concorda: o legado foi “transversal, entre as diferentes modalidades artísticas”. Significou “a adoçãonovas formasinterpretar e apresentar a vida”. “Saemcena os grandes temas e entram na pauta expressiva as linguagens do cotidiano”, contextualiza.

Para Capilé, o Pau-Brasil, “alémdefinir novos princípios para a produção da poesia, também realiza uma espécierevisão cultural do país, criando a valorização do elemento primitivo”. “E tem o aspecto da escrita, uma espécieprosa poética, com frases curtasefeito”, destaca o poeta.

O polemista e genial Oswald

A publicação do documento,qualquer forma, consagrou OswaldAndrade como grande intelectual daquele grupomodernistas. “O manifesto é o protagonismoOswald como espéciepensador estético da cultura brasileira”, define Sanches Neto.

“Ele virou um ícone da festiva mudança professada pela SemanaArte Moderna, mas que não se consolidara”, diz à BBC News Brasil o professor Francisco Vicente Júnior, da Universidade Estadual Vale do Aracaú (UVA).

“Apeculiar ironia, bom sintomauma inteligência crítica privilegiada, fez dele o grande porta-voz do movimento modernista”, completa Rizolli. “Sua notória lábia seduzia seus pares artistas, músicos e poetas. Seu poder argumentativo, trazia para o centro das ambições modernistas as figuras empresariais mais eminentes, que iriam irrigar com recursos e influências as mais amplas esferas da sociedade da época.”

O crítico e professor ainda acrescenta que Oswald “soube dialogar muito bem com os meioscomunicação”.

“É inegável que Oswald tenha se tornado uma das figuras centrais do modernismo brasileiro, mas na outra ponta a gente tem o Mario [de Andrade]. Eles dividem o protagonismo”, lembra Capilé. Para o professor, Oswald acabou fazendo o papelpolemista, comleituramundo einteligência fina na leitura do país. “Nesse aspecto, ele propôs um fazer poético e também um modoconstruir ideias sobre o Brasil. E, assim, apresentou as suas características mais interessantes, sempre colocandoxeque o próprio cenário da cultura brasileira.”

“A reação contra todas as indigestõessabedoria.// O melhornossa tradição lírica. O melhornossa demonstração moderna// Apenas brasileirosnossa época. O necessárioquímica,mecânica,economia ebalística.// Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparaçõesapoio. Sem pesquisa etimológica. Sem antologia.// Bárbaros crédulos, pitorescos e meigos. Leitoresjornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil”, dizem as últimas frases do Manifesto Pau-Brasil.