Coluna Prestes, 100 anos: o que foi o movimento militar que queria 'corrigir' a política brasileira:
“A Coluna Prestes se constituiu como uma parte importante, com certeza a maior expressão, do descontentamento e aversãorelação ao organismo político vigente da República Velha”, define o historiador Rafael PolicenoSouza, pesquisador na Universidade Federal do Paraná,artigo publicado na Revista Historiador.
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Os integrantes do movimento tinham entre suas bandeiras a insatisfação com o governo federalArtur Bernardes (1875-1955) e com o modelo que ficou conhecido como “café com leite”,que o comando da nação era revezado ora por um oligarca paulista, ora por um mineiro.
Eles também pediam a instituição do voto secreto e defendiam o ensino público para todos.
Também aglutinavam pautas difusas, como o clamor pelo fim da miséria e da injustiça social no Brasil.
“Queriam corrigir a política brasileira”, define à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Corrigir a partir da ordem e da disciplina férrea, do pensamento positivista e da doutrina militar, ambasum autoritarismo sem igual.”
“Esperavam assentar a políticavalores republicanos que seus líderes e adeptos consideravam esquecidos, rejeitados e abandonados, ao longotrinta anos do regime instalado1889 e definido na Constituição1891”, acrescenta ele.
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O sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação EscolaSociologiaSão Paulo (FESPSP) e da Escola SuperiorPropaganda e Marketing (ESPM), acrescenta à reportagem que o movimento tinha,suas raízes, uma “grande crítica às péssimas condiçõesvida dos militares”.
“Com o tempo, o movimento foi adquirindo outras proporções, com a exigência do ensino básico obrigatório, a solução da fome, o voto secreto, e até mesmo a ideiaque era preciso moralizar a política brasileira, vista como excessivamente corrupta”, diz Ramirez.
“A insatisfação nos quartéis e a autoproclamação dos militares como redentores e regeneradores da República no Brasil foram as notas dominantes. Quiseram encarnar, falar e agirnometoda a ‘nação brasileira’”, enfatiza o professor Martinez.
Ele acrescenta que “a este imaginário político místico e míticouma sociedadeperigo e ameaçada” acabou se somando o “fantasma do comunismo”.
“Foram abertos caminhos para discursos e a ressureiçãosímbolos, personagens e atitudesnovos messias, ‘salvadores da pátria’, quase sempre fardados. Estes fantasmas rondam a política brasileira ainda no século 21”, compara.
Pesquisador na Unesp e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, o historiador Victor Missiato ressalta à BBC News Brasil que as bandeiras carregadas pelos revoltosos “eram diferentes entre si”, mas “no caso dos tenentistas, evidentemente que havia a intençãouma modernização radical do Estado, no que diz respeito à educação e à formação política”.
25 mil quilômetros
Ao longodois anos, a coluna percorreu cerca25 mil quilômetros pelo país.
Chegou a reunir 1,5 mil militantes — dentre eles, cerca50 mulheres.
Embora não tenham conseguido derrubar o governoBernardes, pesquisadores apontam que o papel dos revoltosos foi crucial para o enfraquecimento da política do café com leite, abrindo caminho para a Revolução1930 — o golpeEstado que permitiu a ascensão do gaúcho Getúlio Vargas (1882-1954) ao poder.
AlémPrestes, o outro principal líder do movimento foi o também militar Miguel Costa (1885-1959). Este trazia na bagagem a experiênciater participado da Revolta Paulista ocorridajulho1924.
PolicenoSouza contextualiza essa junção entre os movimentos paulista e gaúcho, lembrando que “desde o levante” ocorridoSão Paulo “os quartéis conspiravam”.
“Em 28outubro1924, na região missioneira do Rio Grande do Sul se levantou, com objetivoabrir outro focoluta,consideração aos revoltosos paulistas, mais um levante. Este liderado por Prestes, até então não reconhecido como grande comandante”, escreve o historiador.
“Com o desenrolar da luta e a necessária ‘guerramovimento’, Prestes liderou os revolucionários até o oeste parananese, objetivando encontrar os remanescentes das lutas do sudeste.”
Esse encontro ocorreuFoz do Iguaçu. Segundo Souza, a partir daí “se passou a dar voz ao maior ícone desta empreitada”: Prestes.
Isto porque naquele momento parte dos militantes defendia o exílio para a Argentina. O líder, contudo, advogava pela continuidade da luta. “Prestes ganhou o debate e conseguiu […] motivar os rebeldes a marchar para o interior inóspito do território brasileiro, levando consigo toda a inconformidade e crença na derrubadaArtur Bernardes, o grande objetivo inicial da coluna”, narra o historiador.
Souza conta que a marcha pelos confins brasileiros não estava no plano inicial dos revoltosos. Isto ocorreu meio por acaso. Por conta dessa interiorização da marcha, no entanto, “os revolucionários passaram a se organizar para, a partir dos contatos com as populações rurais, passarem a estabelecer simpatia e adesõesnovos combatentes”.
Ele relata que há registrosações dos militantesfavor dos mais pobres, como destruição e queimada“processos que os coronéis moviam contra os pequenos agricultores”, solturapresos e doações“medicamentos aos mais necessitados”.
Tais gestos eram vistos não só como solidariedade diante das mazelas encontradas pelos militares, mas também como uma tentativadiluir a propaganda governista, que buscava retratá-los como inimigos. “Fazia-se um ‘filmehorrores’ da coluna”, diz o pesquisador.
Fim da coluna
O movimento chegou ao fim pelo desgasteseus integrantes.
“A coluna percorreu muitos dos Estados brasileiros até encontrarderrocada. Eles queriam a deposição,um primeiro momento, do governoArtur Bernardes. Jáfinalmandato [encerradonovembro1926], não fazia mais sentido a manutenção da coluna”, avalia Ramirez.
Em seu artigo, Souza diz que “é preciso reconhecer que não havia na coluna um projetoagitação para que o povo aderisse”. “Estavam todos ainda imaturostermosorganizaçãouma política pragmática”, analisa ele.
“[Eles] não conseguiram”, crava o historiador Martinez. “O êxito político foi terem colocadoevidência as fragilidades e a instrumentalização dos meios jurídicos e políticos, das instituições públicas e do eleitorado, no favorecimento dos interesses do grande capital agrário, mercantil, financeiro e industrial, nacional e estrangeiro.”
Os integrantes acabaram quase todos exilados na Bolívia e na Argentina.
Se não houve a derrubada do governo conforme planejada por eles, é fato que houve um enfraquecimento do status quo político nacional que acabaria abrindo caminho para a chegadaVargas ao poder, sacramentando o fim da chamada República Velha.
“O fim da coluna não significou o fim do movimento tenentista. Tanto que ele acabou influenciandoalguma forma a ascensão do Vargas com o golpeEstado contra o que foi chamado por ele mesmoRepública Velha”, explica Ramirez.
“De alguma forma, essa ideiauma organização mais forte, militar, dentro do Estado, isso remete à coluna e talvez seja uma das grandes influências”, complementa o sociólogo, lembrando que o próprio Vargas depois acabou neutralizando o tenentismo e “centralizando o podersuas mãos”.
O historiador Martinez comenta ainda que o movimento acabou influenciando a República “na tutela política da sociedade”.
“De um lado, esta tutela segue hospedada, até os nossos dias, na ação do Estado esua suprema direção: a presidência da República. De outro lado, esta tutela é voltada diretamente para a reprodução e a concentração da renda, da terra, da cultura e do poder político nas mãosfamílias e grupos econômicos”, explica.
“Estes são abastecidos, ininterruptamente, com recursos, investimentos, cargos, informações e decisões estataisbenefício próprio. A tutela política da sociedade alimenta carreirasclãs e dinastias políticas, consagradassobrenomes, que se repetem no âmbito dos três Poderes, das Forças Armadas e nas diferentes escalas da vida nacional,vereadores a presidentes”, completa ele.
Na esquerda e na direita
Os principais nomes do movimento tiveram destinos distintos.
Prestes se revelou ativistaesquerda e filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foi perseguido e preso pela ditadura do Estado Novo implementada por Vargas.
Sua companheira, a militante comunista Olga Benário (1908-1942), foi entregue pelo governo brasileiro aos nazistas e acabaria executadacâmaragás.
Até o fim da vida, Prestes defendeu a revolução comunista. Em 1942, ganhou uma biografia romanceada escrita por Jorge Amado (1912-2001), chamadaO Cavaleiro da Esperança — que consolidaria aí seu epíteto.
Foi eleito senador, ocupando o cargo1946 a 1948. Durante a ditadura cívico-militar instituída com o golpe1964, teve seus direitos políticos cassados e exilou-se na União Soviética. Dirigiu o PCB1943 a 1980.
Em artigo publicado1993 no periódico Lua Nova: RevistaCultura e Política, o professor universitário e escritor OttavianoFiori di Cropano (1931-2016) afirma que “houve dois partidos comunistas bem diversos no Brasil”. “Um antesPrestes, outro depois dele”, diz.
“O primeiro, fundado1922 por anarquistas, rebeldes e intelectuais, não teve importância. Era pequeno demais e não tinha raízes na sociedade”, afirma. “O segundo, que começa1935 com a entrada dos jacobinos prestistas, que seguem seu comandante para fora do tenentismo e para dentro do comunismo, é o Partido Comunista que conhecemos”, prossegue o texto.
“O partido que, enfrentando sozinho getulistas, liberais, coronéis e meioscomunicação, usando apenas o prestígio da dobradinha Prestes-URSS, obteve 10% dos votos nacionais nas eleições1946 e tornou-se uma força viva na história brasileira.”
Miguel Costa combateu na Revolução1930 e atuou no movimento que daria origem à Revolução1932,São Paulo — não participou ativamente porque foi preso antes do início das batalhas.
“Miguel Costa continuou na cena política, desempenhando, na década1930, certo protagonismo, sobretudo,São Paulo. A construção do mito do ‘cavaleiro da esperança’,tornoPrestes, na década1940, a vida atribulada que teve e os nove anos na prisão, até o fim do Estado Novo, engoliu a figuraMiguel Costa”, diz Martinez.
“Embora este mantivesse posições críticas e insubmissas, até socialistas, não havia espaço para outros heróis-míticos no imaginário da política brasileira após 1945. Prestes e o próprio Vargas ocuparam este espaço com presença, estruturas políticas, propaganda e apoio massivos.”
Para Fiore di Cropani, “neste novo mundo”, Prestes, Olga, Vargas e outros “adquirem a tez fantasmagórica das velhas fotografias”, posto que “tornaram-se história”. “Mas as paixões que os moveram, o objetivo profundamente modernomudar o mundo e o eterno desejojustiça e poder, não morrerão”, escreve ele.
Outros integrantes do primeiro escalão da coluna se tornaram extremistasdireita. “Rapidamente, muitos deles foram cooptados e engajaram-se, por conta e interesse próprios,outras sedições e composições políticasinspiração fascista e mesmo nazista”, diz Martinez.
Ele cita o casoFilinto Müller (1900-1973). “Foi um dos integrantes da coluna, [depois] tornou-se chefePolícia do Estado Novo, exercendo o sadismovisitar Prestes na cadeia e afrontar-lhe a derrota política e ideológica, alémtripudiar o destino pessoal deste”, comenta o historiador.
Quando morreu, nos anos 1970, Müller era senador pela Aliança Renovadora Nacional (Arena), o partido que dava sustentação à ditadura — “que ele apoiava entusiasticamente”, ressalta Martinez.
O historiador lembra aindaoutros “que abraçaram ideias e práticas ditatoriais” como o militar Juarez Távora (1898-1975), que chefiou dois ministérios na Era Vargas e, durante a ditadura pós-1964, foi ministroViação e Obras Públicas no governoHumberto Castello Branco (1897-1967).
O quarto presidente da ditadura brasileira, Ernesto Geisel (1907-1996), estudava na Escola MilitarRealengo na época da coluna Prestes e era um admirador do movimento.