Thelma Krug: América Latina e Brasil estão entre as regiões mais vulneráveis à mudança climática, diz ex-vice presidente do IPCC:

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Legenda da foto, Thelma Krug: "O IPCC perdeu uma grande chanceter uma mulher qualificada como presidente"

"O Brasil jamais teria apresentado a minha candidatura da forma como o fez, com todo o apoio que foi dado, se não tivesse confiança nos meus requisitos para o cargopresidente. Então fica a pergunta: por que não?", afirmou Krugentrevista à BBC News Brasil.

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"Eu não perdi nada, mas o IPCC perdeu uma grande chanceter uma mulher qualificada, que já era vice-presidente e que já estava na instituição há 21 anos consecutivos como presidente. E se isso tudo não foi suficiente dessa vez, tenho dúvidas se uma mulher ou um representanteum paísdesenvolvimento conseguirá um dia chegar lá."

O Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima, criado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (ONU Meio Ambiente), tem como principal objetivo fornecer avaliações científicas regulares sobre a mudança do clima e propor opçõesadaptação e mitigação para os formuladorespolíticas públicas.

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Alémvice-presidente do órgão, Thelma Krug participou da Força-Tarefa do IPCC sobre gases do efeito estufa por 13 anos.

À BBC, a pesquisadora afirmou que o Brasil e toda a América Latina estão entre as regiões mais vulneráveis à mudança do clima.

"O Brasil é vulnerável por vários motivos: por conta das secas, das fortes precipitações, do aumento da temperatura média, das ondascalor, dos ciclones tropicais", diz. "Mas boa parte da vulnerabilidade se deve a componentes externos, como a desigualdade social, a pobreza e o usorecursosmaneira não sustentável, que agravam a mudança do clima."

Segundo o próprio IPCC, eventos climáticos extremos já estão afetando a América Latina e estão projetados para aumentar. A lista inclui o aumento da temperatura e do nível do mar, a erosão costeira e o aumento da frequênciasecas, que estão associadas a uma queda no abastecimentoágua, assim como impactos na saúde humana, agricultura e pesca.

Ainda segundo Krug, a meta global proposta pelo AcordoParisfrear o aquecimento global a 1,5ºC até 2100 está se tornando cada vez mais difícilser alcançada, "chegando no limiteser impossível".

"Se essas reduções não foram feitas rapidamente euma forma muito ambiciosa, logo chegaremos a uma situaçãoque mesmo a redução abaixo2°C poderá estar comprometida."

Sobre Amazônia e a cúpula realizadaBelém nesta semana, Krug afirmou que o Brasil enfrenta um "problemaço" para cumprir a ambiciosa metadesmatamento zero até 2030, após "o desmonte das agênciasfiscalização e a multiplicação do crime organizado armado e garimpo ilegal" nos últimos quatro anos.

"Eu acho que é [possível cumprir a meta], mas vai depender da intensificação extrema dessas açõesfiscalizaçãoum curto espaçotempo", disse.

Questionada sobre o debate da expansão da exploraçãopetróleo na Amazônia, a cientista afirmou ainda que investircombustíveis fósseis atualmente é "como andar na contramão da ciência"

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Área da Floresta Amazônica devastadaPacajá, a 620 kmBelém do Pará

Leia a seguir os principais trechos da entrevista da matemática e pesquisadora à BBC News Brasil, editada por concisão e clareza:

BBC News Brasil - Em que ponto estamos, como mundo, da crise climática?

Thelma Krug - Estamosum momento bem preocupante. O último relatório do IPCC [de março2023] conseguiu recuperar vários dados paleoclimáticos que permitiram aos cientistas avaliarem que muitos dos eventos que temos observado nos últimos anos são sem precedentes.

Em 2019, por exemplo, tivemos as maiores concentraçõesdióxidocarbonopelo menos 2 milhõesanos emetano e óxido nitroso800 mil anos. A áreagelo no Mar Ártico também chegouseu mínimo desde 1850 na década2011 a 2020 e a temperatura média global da superfície aumentou muito mais rapidamente nos últimos 50 anos do quequalquer outro período dos últimos 2 mil anos.

Múltiplas fontes independentes registraram o aumentoondascalortodo o mundo e, ao mesmo tempo, observamos a elevação do nível do mar e a maior frequência e intensidadeextremos meteorológicos e climáticos, muitos dos quais atribuídos a influência humana.

BBC News Brasil - Há tempo hábil para cumprir a metalimitar altatemperatura global a 1,5°C?

Krug - Essa foi uma meta ambiciosa, que vai se tornando cada vez mais complicadaser atingida. Um relatório especial do PICC2018 já indicava a necessidaderápidas, profundas e sustentadas reduçõesemissõesgasesefeito estufa para cumprir esse objetivo. Os pesquisadores praticamente concordaram que para chegar a 1,5° C teríamos que zerar as emissões e remoçõesCO2 globalmente.

Ou seja, vai se tornando cada vez mais desafiador, chegando no limiteser impossível. Se essas reduções não foram feitas rapidamente euma forma muito ambiciosa logo chegaremos a uma situaçãoque mesmo a redução abaixo2°C poderá estar comprometida.

BBC News Brasil - O que falta para atingir as metas globais e implementar medidas efetivas para reduzir drasticamente as emissões?

Krug - A verdade é que, segundo o IPCC, já existem opçõesmitigação que reduziriam pela metade as emissõesgásefeito estufa relativas ao ano2019 até 2030. Ou seja, não estamos dependentesnovas tecnologias para cortar as emissões.

O que existem são barreirasdiversas naturezas que dificultam a implementação. E para os paísesdesenvolvimento, que são a maioria, a maior barreira é a financeira. Falta investimento estrangeiro, iniciativastransferênciatecnologia ou capacitação.

Existem também barreirasnatureza institucional: faltalegislações, por exemplo, que poderiam incentivar parcerias público-privadas ou mudançasprocessos industriais. Ou seja, falta visibilidade institucional sobre como tratar a questão da mudança climática.

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Legenda da foto, O presidente Lula durante Cúpula da AmazôniaBelém

BBC News Brasil - Muitas vezes quando tratamostemas como mudanças climáticas e meio ambiente, o público tem dificuldadesenxergar as consequências concretastudo isso. De que forma o dia a dia dos brasileiros já é impactado pelo aquecimento do globo? Pode dar exemplos?

Krug - A maior consequência que temos já caracterizada - e que não é exclusiva do Brasil - é a projeçãoque os eventos meteorológicos e climáticos, como secas e ciclones, vão ficar cada vez mais frequentes e mais intensos.

Na região sul, por exemplo, já se constatou que o aumentofortes precipitações está relacionado à ação humana. Na Amazônia, as secas mais frequentes registradas desde 2005 já saíram do padrãovariabilidade natural e começam a ser entendidas como influenciadas pela mudança do climanatureza antrópica.

Além disso, já foi identificado um aumento da temperatura médiatodas as regiões do Brasil, causado pela ação humana. E se tem a digital humana significa que tende a aumentar ainda mais.

BBC News Brasil - Falando especificamente sobre o Brasil, o quão vulnerável estamos às mudanças climáticas, segundo as últimas conclusões do IPCC?

Krug - Não só o Brasil, como toda a América Latina, estão entre as regiões mais vulneráveis à mudança do clima. O Brasil é vulnerável por vários motivos: por conta das secas, das fortes precipitações, do aumento da temperatura média, das ondascalor, dos ciclones tropicais.

Mas é um pacote né? Porque boa parte da vulnerabilidade se deve a componentes externos, como a desigualdade social, a pobreza e o usorecursosmaneira não sustentável, que agravam a mudança do clima.

A verdade é que o impacto nunca é igual para todos, pois as populações menos abastadas têm menor capacidadeadaptação e sofrem mais. Em algumas regiões do Brasil as famílias não têm sequer acesso à luz elétrica, imagine a um ventilador ou a um ar condicionado para aguentar as altas temperaturas que já estamos experimentando.

Estamos dianteum portfólioextremos que variamlugar para lugar e, é claro, que serão tão mais graves quanto maior for o aquecimento global.

BBC News Brasil - O quão perto a Floresta Amazônia está do “pontonão retorno”, ou seja, do momentoque pode não se recuperar mais diante do desmatamento e das mudanças climáticas?

Krug - A comunidade científica ainda precisa amadurecer mais nessa questão, pois não há um consenso científico sobre essa possibilidade ou o quantodesmatamento será preciso para chegar lá.

Mas independentequalquer coisa deveríamos seguir o princípio da precaução. Até porque a contenção do desmatamento é a opçãomitigação da mudança climática que tem o maior potencial do pontovista técnico e econômico, segundo o IPCC. Classificamos comoalto potencial econômico aquelas ações que vão custar menos do que 100 dólares por toneladaCO2 reduzido ou evitado - e muitas das ações florestais indicadas pelo IPCC custam menos do que 20 dólares.

E as implicações do desmatamento não têm limites geográficos. Elas são tão importantes aqui no Brasil como na Colômbia, na Venezuela ouqualquer outro dos oito países que compartilham a Floresta Amazônica.

BBC News Brasil - O Brasil tem condiçõescumprir a metadesmatamento zero até 2030?

Krug - Nós já conseguimos quase fazer isso no passado, entre 2004 e 2012, quando reduzimos o desmatamento83%. Mas a situação atual é mais complexa: tivemos nos últimos quatro anos um olhar muito complicado para a área ambiental, com o desmonte das agênciasfiscalização e multiplicação do crime organizado armado e garimpo ilegal. É um problemaço.

Reverter isso vai requerer uma ampliação da fiscalização, algo que custa muito dinheiro. Ou seja, o Brasil precisaum reforçorecursos. O Fundo Amazônia contribuiu muito para a redução do desmatamento na Amazônia, mas paga por reduções - e para reduzir é preciso tomar ações que requerem dinheiro.

Você me pergunta se é possível. Eu acho que é, mas vai depender da intensificação extrema dessas açõesfiscalizaçãoum curto espaçotempo.

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Legenda da foto, Construção do Gasoduto Urucu-Coari-Manaus, que foi inaugurado2011 pelo governoLuiz Inácio Lula da Silva

BBC News Brasil - O presidente Lula tem defendido que a Amazônia seja exploradamaneira compatível com o meio ambiente, sem aumentar o desmatamento, mas ao mesmo tempo sem ser um santuário que não gera renda aos moradores. Como a senhora avalia essa visão? É possível desenvolver sem desmatar?

Krug - Eu concordo com o presidente Lula. Há potenciais que muitas vezes são pouco explorados para uma estratégiadesenvolvimento envolvendo os povos que vivem nas regiões ameaçadas. Não adianta criar um plano sem nem saber como ele vai impactar as populações locais - tanto positiva quanto negativamente.

BBC News Brasil - Explorar petróleo na foz do Rio Amazonas e ampliar a exploração na própria floresta é viável?

Krug - Eu consigo entender que muitos países, inclusive da nossa região, tem um grande potencialexploraçãocombustíveis fósseis e que, por meio deles, poderiam gerar mais recursos para a saúde, educação e etc.

Por outro lado, um dos pontos mais críticos do combate à mudança do clima é justamente a descarbonização. Os combustíveis fósseis representam 80% da contribuição para a mudança do clima. Então [investirpetróleo] é quase como andar na contramão da ciência.

E explorar petróleo na Amazônia é algo bem difícil para mim. Tenho dificuldadeentender..

É uma discussão que mereceria mais aprofundamento.

BBC News Brasil - O Pará sedia a cúpula da Amazônia, mas é regularmente o segundo Estado que mais desmata no país. Há sérios conflitos ali que ilustram o desafio do Brasilrelação ao meio ambiente. Em que medida o Brasil e o presidente Lula têm condiçõestentar liderar uma agenda ambiental global quando existem problemas tão sérioscasa que parecem difíceisresolver?

Krug - Ele [Lula] já é um líder. Esses seis mesesgoverno deram a clara demonstraçãoum país que tem na ciência e na tratativa da mudança do clima temas prioritários. Conversando com líderes e representantesdiversos países nos últimos meses notei uma visãoum novo Brasil eque o Lula tem, sim, a capacidadeliderar e retomar a liderança regional.

A Cúpula da Amazônia é um exemplo disso, é uma demonstraçãoque o Brasil não está só pensando no Brasil, mastoda a região e certamente. Isso já é um passo importante no estabelecimento dessa liderança que o Brasil perdeu nos últimos quatro anos.

E, na minha opinião, hospedar a COP-30Belém é uma ótima formamostrar o que ainda temosfloresta. Mas, ao mesmo tempo, na minha opinião, a mensagem principal deve ser para mostrar o quanto essa floresta está vulnerável ao desmatamento e que se não houver um esforço paralelo à redução do desmatamento, junto com o esforçodescarbonização, as florestas e os ecossistemas naturais sendo muito vulneráveis à mudança do clima, tornam essa situação bem complicada.

BBC News Brasil - A senhora foi candidata do Brasil à presidência do IPCC, mas o britânico Jim Skea foi o aprovadoplenário. Estas foram as primeiras eleições na história do IPCC com candidatas mulheres e, se fosse eleita, a senhora teria sido a primeira mulher a presidir o órgão. A senhora acredita que uma decisãoprol da maior diversidadegênero na liderança poderia beneficiar mais o IPCC?

Krug - Certamente. Se existe uma frustração é pelo fato dessa eleição não ter eleito uma mulher - e olha que éramos duas candidatas. A composição atual da diretoria do IPCC tem um presidente, três vice-presidentes e oito co-presidentesgrupostrabalho e da força-tarefa. São 12 pessoas, das quais apenas três são mulheres.

As Nações Unidas falam muitoparidadegênero, mas o IPCC desdecriação há 34 anos nunca teve uma mulher presidente, o máximo que se alcançou foi uma vice-presidente, com a minha eleição à Vice-presidência2015. Sempre tentamos também estabelecer um balançogênero e distribuição geográfica dos autores que contribuem para o IPCC, mas nem sempre fomos bem-sucedidos. No último ciclo tivemos 32%autores mulheres e no anterior 25%.

O Brasil jamais teria apresentado a minha candidatura da forma como o fez, com todo o apoio que foi dado, se não tivesse confiança nos meus requisitos para o cargopresidente. Então fica a pergunta: por que não?

Então eu acho que eu não perdi nada, mas o IPCC perdeu uma grande chanceter uma mulher qualificada, que já era vice-presidente e que já estava na instituição há 21 anos consecutivos como presidente. E se isso tudo não foi suficiente dessa vez, tenho dúvidas se uma mulher ou um representanteum paísdesenvolvimento conseguirá um dia chegar lá.