'Eu tinha 8 anos e meus amigos, 80': a história do menino colombiano que cuidavaidosos e comoveu a França:

Crédito, Fundação Albeiro Vargas

Mas a históriaAlbeiro Vargas, o menino que a imprensa colombiana chamava na época“O Anjo do norte”, não começaBucaramanga.

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Ela começa, como muitas outras no país, no campo, com o drama do deslocamento forçado.

Fugindo da violência

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Bucaramanga, como outras regiões da Colômbia, começou a observar um aumento no deslocamentocamponeses com a chegada do tráficodrogas

AntesAlbeiro nascer, seus pais moravam no norte do departamentoSantander, próximo ao centro urbanoPuerto Wilches.

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Eles se dedicavam ao trabalho no campo com seus quatro filhos quando começaram a chegar ameaças tantogrupos guerrilheirosesquerda quantoparamilitaresdireita.

“Junto com meu pai, minha mãe decide fugir e sair correndo para proteger meus irmãos mais velhos, com o intuitocuidar deles, para que não fossem para os grupos armados. E assim eles chegam a uma zonainvasão no norteBucaramanga", conta à BBC News Mundo Albeiro que, aos 45 anos, ainda mantém intacta a malandragem infantil do menino que comoveu jornalistas internacionais há mais30 anos.

“Havia montanhaslixo, e minha mãe e muitas outras famílias chegaram ali para invadir com caixaspapelão”.

“Minha mãe conseguiu construir o barracão dela, conseguiu começar a vender coisas no bairro, fazer arepas. E vira empiricamente enfermeira, pela experiência que tinha injetando vacas e curando galinhas e porcos, quando os animais adoeciam no campo ."

Albeiro nasceu1978,meio a uma família repletacarências, mas, acimatudo, repletaamor e valores, segundo ele conta à BBC News Mundo.

“Foi uma infância difícil, numa zona difícil: todos os dias ouvia-se gritosabusos cometidos pelos pais com os filhos, e pelos maridos com as esposas”, recorda.

“Mas também podíamos ver na minha casa uma mãe protetora, uma mãe que todos os dias dava um pão para cada um, e que nos ensinava a dizer 'obrigado'."

“Esses valores importantes que se incutem na família e que não são uma questãodinheiro: na riqueza ou na pobreza, são uma questãoatitude", afirma.

O contato com a velhice

Crédito, Fundação Albeiro Vargas

Legenda da foto, O avô Josefito foi a primeira experiência que Albeiro teve cuidandoum idoso, aos 6 anos

Ao completar seis anos, Albeiro recebeu uma notícia: seu avô paterno viria morar com eles, no norteBucaramanga.

Ele também teve que deixar o campo, mas por motivossaúde.

"Ele trabalhou até receber o diagnósticocâncer. Naquela época não havia possibilidadeir ao hospital. A previdência social era muito difícil", lembra Albeiro.

“Então minha mãe cuidava dele com os remédios caseiros da época, era o sogro dela, e com que amor ela fazia isso. Com compaixão ela dava banho nele, vestia ele, oferecia um cafezinho, enquanto eu assistia."

Albeiro começou simplesmente levando café para o avô, mas pouco a pouco a relação dos dois ficou mais próxima.

“Ensinei a ele os númerosum a dez, e as vogais. Virei professor dele, porque tudo o que me ensinavam na escola quando eu tinha sete anos, eu ensinava ao meu avô. E exigia dele como aluno, o repreendia quando não fazia o devercasa!"

Albeiro conta que dado o quão perigoso era o bairro — eles estavam expostos à prostituição, às drogas e, sobretudo, a grupos armados ilegais —,mãe era superprotetora, razão pela qual seu avô,87 anos, se tornou seu melhor amigo.

“Era para ele que eu contava tudo e era eu quem ouvia todas as suas histórias”, relembra.

Poucos meses depois, o câncer deixou Albeiro sem o avô — e com um grande dilema que precisava resolveralguma forma.

Brincando a sério

Crédito, Fundação Albeiro Vargas

Legenda da foto, Albeiro se tornou a felicidadevários idosossituaçãovulnerabilidade no norteBucaramanga, na Colômbia

Com a morte recente do avô, Albeiro concentrouatençãodescobrir quem poderia ser seu novo companheirobrincadeiras.

“Assim que meu avô morreu, fui até uma vovozinha vizinha e falei para ela: ‘Vovó, quero brincar com você’. E ela me disse: ‘Não, o que você quer é me roubar e tirar sarromim.'"

A complicada situaçãosegurança do bairro fazia com que qualquer pessoa ficasse alerta diante da chegadaum estranho, principalmente se a pessoa que recebia a visita fosse idosa e estivessesituaçãovulnerabilidade.

Por isso, Albeiro traçou um plano: abordaria uma das idosas com o pedido“querer brincar, mas também aprender a rezar o rosário”, uma oferta irresistível para uma idosa tradicionalSantander.

Além disso, o truque tinha um valor agregado: “Me tornei o melhor rezadortodo o bairro”, lembra Albeiro com orgulho.

“Cada vez que alguém morria, me contratavam para rezar o rosário, e foi assim que fiquei conhecido no bairro”.

Isso abriu para ele as portas das casas dos idosos do bairro — e para as histórias dramáticas que os acompanhavam.

"Cheguei na casauma vovozinha que tinha cento e poucos anos. Eram três da tarde. Cheguei para cumprimentá-la, buscaramizade, e percebi que a vovozinha estava com a boca cheiabitucascigarro.”, diz Albeiro, com o frescor da memória, como se tivesse acontecido ontem.

Crédito, Fundación Albeiro Vargas

Legenda da foto, Albeiro passou a cuidar da saúde dos idosos da região

"Lembro que a repreendi e disse: 'Vovó, não seja porca! Isso vai te fazer mal'. E a vovozinha, com uma lágrima no rosto, me disse: 'Estou com muita fome, não comi nada.'"

“Acredite, naquele momento, me senti impotente. Senti muita vontadecorrer,fazer algo — e, sim, corri para roubar pão da minha mãe, roubar porque sabia que minha mãe tinha muita dificuldade para darcomer a oito filhos. Levei (o pão) para a vovó, e ela me disse: 'Mas eu não tenho dente para mastigar.'"

"Peguei um poucoágua, e dei para ela o pão com água. Tenho este momento gravado (na memória)."

'O anjo do norte'ação

Crédito, Fundação Albeiro Vargas

Legenda da foto, O jornalista local Euclides Ardila foi o primeiro a divulgar a históriaAlbeiro, naprimeira reportagem para um jornal

Quando a mãeAlbeiro descobriu quem estava roubando o pão da cozinha, deu ao filho uma garrafa térmica, que ele poderia enchercafé e distribuir aos idosos pela manhã, antesir para a escola. Ele repetia a visita a alguns na parte da tarde.

“Foi assim que quando tinha oito anos já tinha cerca20 amigos entre 70, 80 e 90 anos”, lembra Albeiro, reconhecendo que isso se tornou uma responsabilidade muito grande para ele sozinho.

“Às vezes, os vovozinhos reclamavam comigo: ‘Vamos ver, menino Albeiro, você não veio ontem, e eu fiquei esperando'. E aquilo se tornou demais para mim. Foi quando decidi formar meu primeiro conselhoadministração."

Albeiro explica quesolução consistiurecorrer a outras crianças da escola para ajudá-lo no trabalho com os idosos — e que esse grupo funcionava como haviam aprendido na escola.

“Em uma matéria chamada Ciências Sociais, ensinavam sobre o Executivo, o Legislativo, o conselhoadministração, as funções do presidente, do secretário”, explica.

“Os cadernos estão exatamente aqui”, diz ele à BBC News Mundo,seu escritórioBucaramanga, “nos quais redigíamos as atas do conselho, os compromissos, os cardápios das refeições que levávamos para os idosos, a contabilidade, quando as pessoas me davam 100 pesos, e assim por diante."

Crédito, Fundação Albeiro Vargas

Legenda da foto, Albeiro manteve as contas, assim como as atascada uma das sessões que realizou

Os feitos do “anjo do norte” continuaram crescendo até chegar aos ouvidos do jornalista Euclides Ardila, que publicouhistória no jornal local Vanguardia Liberal. Com isso, o caso ganhou repercussão nacional e não demorou a cruzar as fronteiras do país.

A aparição do anjo

Crédito, Fundação Albeiro Vargas

Da cadeira do cabeleireiro, onde leu a história pela primeira vez, o jornalista Tony Comitti diz que começou a planejar como faria a reportagem.

“Penseipassar três ou quatro dias com o menino. Naquela época, não havia internet nem celular, então a única formaentrarcontato com ele era ir procurá-lo”, diz à BBC News Mundo.

“ChegueiBucaramanga com minhas câmeras, meu equipamento e entrei no táxi. Quando falei para o taxista para onde estava indo, ele me disse que eu estava louco, e que iam me roubar, mas eu disse a ele para seguirfrente."

Ao chegar ao local onde Albeiro morava, Comitti conta que só precisou perguntar a uma pessoa: “O anjo? Claro, vamos, eu te levo até ele”.

A primeira vez que viu Albeiro, ele relembra, o meninooito anos estava ensinando um idoso a ler e escrever.

“Foi muito impactante vê-lo, e ele me disse que eu poderia segui-lo, então fiz isso, e nos três dias seguintes o vi fazer coisas absolutamente incríveis”.

A reportagem que Comitti havia planejado inicialmente ter uma duraçãotrês ou quatro minutos virou um documentárioquase meia hora,que Albeiro aparecia fazendo o que o tornou famoso, como indo às pressas ao banco para pagar o alugueluma idosa que estava sendo despejadacasa; e coletando alimentos do comércio local para levar aos "velhinhos".

Em uma cena impactante, Albeiro entra na casa onde uma idosa está trancada com cadeado — e a leva para dar banho. A mulher sofriaum estado avançadodemência, e a filha tinha que deixá-la trancadacasa para evitar que algo acontecesse com ela.

Albeiro, junto a outras crianças que o ajudaram, perceberam que as temperaturas na casa improvisada ficavam insuportáveis ​​durante o dia, e usaram a chave que a filha deixava escondida para dar banho nela naausência.

Com as imagensmãos, Comitti se despediuAlbeiro e da mãe dele — e seguiu para Paris para iniciar a edição do documentário.

A comoção na França

Crédito, Fundação Albeiro Vargas

Legenda da foto, A equipe originalpequenos colaboradoresAlbeiro

Comitti lembra que mostrou as imagensAlbeiro a pelo menos dois colegas e que, assim que eles viram, começaram a chorar.

“Estávamos esperando uma reação forte do nosso público, mas o que aconteceu foi insólito”, lembra o jornalista.

A redetelevisão recebeu pelo menos 200 ligaçõespessoas que queriam ajudar o pequeno “anjo do norte”, o “menino que havia trocado brincar por ajudar os idosos”.

Uma das maiores doações veiouma mulher que, como lembra Comitti, “decidiu dar o que tinha, porque era viúva e não tinha filhos nem ninguém para quem dar”.

O programa também gerou furor no público, que queria conhecer pessoalmente aquele menino que passava por tantas dificuldades e fazia tanto bem àcomunidade.

Comitti se lembra com amargura daquele momento e afirma ter rejeitado a ideia do canallevar o menino e mãe para a França, com o intuitofazer o habitual tour midiático dos acontecimentos da moda:

"Eu disse a eles que não, aquele não era o meu trabalho. Sou jornalista, e aquilo me parecia terrível."

A viagem aconteceu da mesma forma, sem a participaçãoComitti, e o que ele temia que acontecesse, aconteceu, como lembra Albeiro:

“As pessoas me diziam: Alberro, Alberrito, Albergo. Elas queriam tocarmim, e eu não entendia o que estava acontecendo."

“Lembro que me mudaramhotel, mudaram meu nome porque muitos jornalistas queriam dar o furo. Queriam ver o Anjo da Colômbia, e esse canaltelevisão me colocouuma bolha. Foi uma coisa impressionante”.

A Fundação Albeiro Vargas

Crédito, Fundação Albeiro Vargas

Legenda da foto, A fundação Albeiro conta atualmente com três casas e atende quase 500 idosos emárea

Um tempo depoisseu retorno à Colômbia, Albeiro recebeu um convite da embaixada francesa para receber um cheque simbólico com os recursos que os franceses haviam doado após assistir ao documentário.

Simbólico porque Albeiro só poderia ter acesso aos fundos quando atingisse a maioridade.

“Perguntei a um amigo: 'Escuta, vão me dar um cheque simbólicoBogotá'. E ele me disse: 'Bobo, vão te roubar, simbólico émentira, falso'”, lembra Albeiro.

“Estava o diretor do canaltelevisão que veio da França. A esposa do presidente da Colômbia estava lá e todos me disseram: 'Albeiro, sorria para as câmeras, vamos te dar um cheque'. E eu disse a eles: 'Não, senhores, me entreguem o dinheiro, não vão me roubar.'"

Quando lhe explicaram que ele teria acesso ao dinheiro quando fizesse 18 anos, Albeiro respondeu: "Bom então não me importo nem estou interessado porque quando eu tiver 18 anos os velhos já terão morridofrio e fome."

A resposta deixou todossilêncio.

Atravésum acordo segundo o qual tanto a mãe como o embaixador eram os guardiões do dinheiro, Albeiro conseguiu continuar fazendo o seu trabalho e começou a pensarexpandir a ação.

Um dos primeiros projetos - aos 14 anos - foi a comprauma casa abandonada pertoBucaramanga, que se expandiu e hoje abriga quase 500 idosos das áreas vizinhassituaçãopobreza.

Crédito, Fundação Albeiro Vargas

Legenda da foto, Em outubro, a fundação Albeiro comemorou 39 anostrabalho com idosos

A Fundação Albeiro Vargas e Anjos da Guarda também fez parceria com os 56 laresidososSantander para formar cuidadores5.500 idosos abandonados da região.

Além disso, embora muitas crianças do bairro Albeiro tenham seguido outros caminhos, algumas das pessoas que iniciaram o projeto ainda trabalham com ele.

“Há um grupotrabalho90 funcionários e não somos suficientes”, afirma Albeiro, frisando que são as doações que ajudam a fundação a continuar aberta.

O jornalista Comitti diz ter uma foto do pequeno Albeiro na entradasua produtora na França, já que a empresa existe graças ao documentário “O anjo do norte”.

“Às vezes é incrível como uma pessoa pode impactar tantas vidas”, diz Comitti, analisando o casoAlbeiro.

Mas para Albeiro isso não deve ser considerado algo incrível.

“Se há algo a dizer sobre mim é que sou teimoso, mas é uma teimosia justa, por defender os direitos dos idosos. Acho que é isso que me faz hoje, 39 anos depois, dizer que é possível, sim, você pode mudar o mundo."

"Sim, você pode fazer coisas diferentes, porque querer é definitivamente poder."