Por que pessoas no fim da vida veem entes queridos mortos há anos:bet 135

Fotografia colorida mostra uma mulher branca ridosabet 135um leitobet 135hospital cercada por outras duas mulheres e um homem, todos brancos

Crédito, Cortesiabet 135Christopher Kerr

Legenda da foto, Segundo Kerr, para os pacientes as visões parecem reais, intensas, têm significados profundos e diminuem o medobet 135morrer

No dia seguinte, porém, a irmã da paciente chegou ao hospital e contou que, muitas décadas antes, Mary havia perdido seu primeiro filho, que se chamava Danny e nasceu morto.

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A dor da perda foi tão grande que Mary passou o resto da vida sem falar sobre o bebê. No entanto, na hora da morte, a visão do filho perdido há tantos anos trouxe conforto à paciente.

Kerr já contou essa históriabet 135diversas entrevistas e palestras para ilustrar como, depoisbet 135uma carreira iniciadabet 135forma convencional, com residênciabet 135medicina interna, especializaçãobet 135Cardiologia e doutoradobet 135Neurobiologia, decidiu mudarbet 135rumo e se dedicar a estudar as experiênciasbet 135pacientes terminais.

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Hoje, passados 25 anos do encontro com Mary, Kerr é considerado uma das principais autoridades do mundo no estudobet 135experiênciasbet 135finalbet 135vida, como são chamadas as visões e sonhos comunsbet 135pacientes terminais.

Segundo ele, essas experiências costumam começar semanas antes da morte, e aumentambet 135frequência à medida que o fim se aproxima.

Ele diz que presenciou pessoas revivendo momentos marcantes da vida, enxergando e conversando com mães, pais, filhos e até animaisbet 135estimação mortos vários anos antes.

Para os pacientes, as visões parecem reais, intensas, com significados profundos e, comumente, trazem sensaçãobet 135paz.

"Estes (relacionamentos) muitas vezes regressambet 135formas muito significativas e reconfortantes, que validam a vida que foi vivida e, porbet 135vez, diminuem o medobet 135morrer", diz Kerr à BBC News Brasil.

Kerr ressalta que esses pacientes não estão confusos ou com pensamento incoerente e que, enquantobet 135saúde física declina, estão emocionalmente e espiritualmente presentes. No entanto, muitos médicos descartam o fenômeno como alucinações ou frutobet 135confusão, e querem evidências.

Foibet 135busca dessas evidências que Kerr começou,bet 1352010, um estudo pioneiro nos Estados Unidos.

Até então, a maioria dos relatos sobre essas experiências vinhabet 135terceiros, mas o médico lançou uma pesquisa formal, com abordagem científica, na qual os próprios pacientes são entrevistados e há triagem para garantir que não estão confusos.

Sua pesquisa se concentra na frequência com que essas experiênciasbet 135finalbet 135vida ocorrem, quantos dias (ou semanas) antes da morte, os principais temas, o que os pacientes sentem e o impacto disso nas famílias, entre outros pontos.

Os resultados já foram publicadosbet 135diversos artigos científicos. O médico ainda não encontrou uma resposta definitiva para explicar essas experiências, e diz que decifrar a causa não é o foco principalbet 135seus estudos.

“O fatobet 135eu não conseguir explicar a origem e o processo não invalida a experiência para o paciente”, afirma.

Segundo Kerr, ainda existe um contrastebet 135como essas experiências são valorizadas pelos pacientes e suas famílias, mas não pelos médicosbet 135maneira geral.

Kerr é CEO do Hospice & Palliative Care, organização que oferece cuidados paliativos na cidadebet 135Buffalo,bet 135Nova York.

Em 2020, lançou o livro Death Is But a Dream: Finding Hope and Meaning at Life's End ("A morte é apenas um sonho: encontrando esperança e sentido no fim da vida",bet 135tradução livre), traduzido para 10 línguas, mas ainda sem ediçãobet 135português.

Em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, ele falou sobre o significado dessas experiênciasbet 135finalbet 135vida, os principais temas envolvidos e como afetam pacientes e suas famílias.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Homem branco calvobet 135terno sorrindo

Crédito, Cortesiabet 135Christopher Kerr

Legenda da foto, Christopher Kerr é uma das principais autoridades no estudo das experiências vivenciadas por pessoas perto da morte

bet 135 BBC News Brasil - O senhor começou a trabalhar com pacientes terminais e a observar experiênciasbet 135finalbet 135vidabet 1351999, e desde 2010 realiza pesquisas científicas sobre o tema, com coleta e análisebet 135dados. Depoisbet 135tantos anos, o que aprendeu sobre essas experiências?

bet 135 Christopher Kerr - Acho que [aprendi] uma sériebet 135coisas.

Eu penso que o processobet 135morrer é obviamente mais do que o declínio físico que vemos. Inclui uma mudança no seu pontobet 135vista, nas suas percepções, e inclui elementos que são, na verdade, uma afirmação da vida.

O processobet 135morrer leva você a um pontobet 135reflexão e,bet 135uma forma maravilhosa, as pessoas tendem a se concentrar nas coisas que mais importam,bet 135suas maiores realizações, que são seus relacionamentos.

E, curiosamente, estes (relacionamentos) muitas vezes regressambet 135formas muito significativas e reconfortantes, que validam a vida que foi vivida e, porbet 135vez, diminuem o medobet 135morrer.

O que esperaríamos é um sofrimento psicológico ou psicogênico crescente à medida que as pessoas enfrentam o fim da vida. Mas, geralmente, não é isso que vemos. Vemos pessoas como se estivessem envolvidas por amor e significado.

Então, é o oposto do que pensamos. A visão que temos da morte, a morte que antecipamos, não é a que vivenciamos.

bet 135 BBC News Brasil - De acordo combet 135pesquisa, o quão comuns são essas experiênciasbet 135finalbet 135vida?

bet 135 Kerr - Em nossos estudos, cercabet 13588% das pessoas relataram pelo menos uma [experiência]. Nossa taxa é provavelmente maior do que normalmente é relatado, porque a diferença no nosso estudo é que perguntamos [aos pacientes] todos os dias.

Morrer é um processo. Ao conversar [com os pacientes]bet 135uma segunda-feira, você poderá obter uma resposta muito diferente da que obteria na sexta-feira. Então perguntamos com mais frequência.

O que vemos é que, à medida que os pacientes se aproximam da morte, há um aumento na frequência desses eventos.

Há um aumento dramático no númerobet 135pessoas que relatam isso e no númerobet 135vezes que acontece.

bet 135 BBC News Brasil - E quais os principais temas dessas visões e sonhos?

bet 135 Kerr - Cercabet 135um terço dos entrevistados relata temas como viagens. Mais comumente, envolvem pessoas que amaram e perderam.

E é interessante que, à medida que você se aproxima da morte, aumenta a frequência com que vê essas pessoas falecidas.

E quando analisamos o que fazia as pessoas se sentirem mais confortáveis, ver os entes queridos mortos era o que lhes trazia mais conforto.

Então, à medida que as pessoas se aproximam da morte, têm a sensaçãobet 135serem cada vez mais confortadas.

Outro ponto realmente interessante é com quem elas sonham. Há um tipobet 135processobet 135edição, então elas tendem a se concentrar nas pessoas que as amavam e protegiam, nas pessoas que eram mais importantes.

E [essa pessoa] pode às vezes ser um dos pais, mas não o outro. Ou um irmão, mas não o outro.

Cercabet 13512% dos entrevistados descreveram no questionário os sonhos como neutros ou angustiantes. Mas essas experiências que eram [descritas como] desconfortáveis eram algumas das mais transformadoras ou significativas.

A ideia é que qualquer ferida que você tenha por ter vivido, é muitas vezes abordada nessas experiências.

Há casos como obet 135um paciente que lutou na guerra e sentia culpa por ter sobrevivido, mas no final foi confortado ao ver seus companheiros que haviam morrido [em combate].

Ou seja, as experiências que talvez não tenham sido totalmente reconfortantes eram frequentemente muito significativas.

Médicos com um pacientebet 135um leito

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, A maneira como as pessoas nos deixam é importante: se é algo frio e impessoal ou um momentobet 135reconexão

bet 135 BBC News Brasil - O senhor afirma que um erro comum é pensar que esses pacientes estão delirando. O que torna essas experiências diferentesbet 135um estadobet 135confusão mental?

bet 135 Kerr - Delirium [síndrome orgânica que pode ser provocada por infecções ou medicamentos e muitas vezes acomete idosos hospitalizados, afetando a consciência e a cognição] ou estadosbet 135confusão mental são comuns, principalmente no fim da vida, mas são muito diferentes [das experiências relatadas].

As pessoas não saem do delirium sentindo-se confortadas. Em geral, [experiências com delirium] evocam medo. "Há aranhas rastejando no meu braço, alguém está me perseguindo, há incêndios." São experiências horríveis, passageiras, que deixam os pacientes agitados.

Estes são pacientes que muitas vezes estão medicados ou amarrados ao leito. [As experiências com delirium] não são baseadas na realidade, nem são lembradas com clareza.

Por outro lado, as experiências dos pacientes no final da vida são baseadasbet 135pessoas, eventos e acontecimentos reais. Elas são lembradas com clareza e são extremamente reconfortantes e calmantes.

Pessoas que estão confusas têm pensamentos fragmentados, tangenciais, enquanto que pessoas vivenciando essas experiênciasbet 135finalbet 135vida praticamente têm a acuidade aumentada, estão perspicazes, lembrando, sentindo. É completamente diferente.

bet 135 BBC News Brasil - Às vezes os pacientes estão sonhando, masbet 135outras estão acordados. Há diferenças entre esses dois tiposbet 135experiências?

bet 135 Kerr - Isso é algo que nos surpreendeu. Perguntamos no questionário se isso acontecia, se estavam sonhando, se estavam dormindo ou acordados, e as respostas foram meio a meio.

E não sabemos o que pensar disso, porque não é como se você entrasse no quarto e metade do tempo as pessoas estivessembet 135olhos abertos [enquanto estão passando por essas experiências].

Morrer inclui sono progressivo, dias e noites ficam fragmentados. E, como os pacientes avaliam o realismo [das experiências] como 10bet 13510 [no questionário], como se fosse virtual, não temos certeza.

Eles podem estar tendo sonhos lúcidos,bet 135modo que sentem como se estivessem acordados. Realmente não sabemos.

Mas claramente, se ouvirmos nossos pacientes, o que eles estão nos dizendo é que nem sempre estão dormindo.

bet 135 BBC News Brasil - Vocês também acompanham crianças com doenças terminais. Quais as diferenças entre as experiênciasbet 135finalbet 135vidabet 135crianças ebet 135adultos?

bet 135 Kerr - As crianças fazem isso melhor, porque elas não têm os filtros [que os adultos têm], há uma abertura. Eles não traçam limites entre o imaginário e o real.

Elas também não têm conceitosbet 135mortalidade, então vivem o momento, não pensambet 135termosbet 135sequênciasbet 135eventos e finais.

O que muitas vezes vemos é que elas têm essas experiênciasbet 135maneiras muito criativas e coloridas e parecem saber intuitivamente o significado disso.

Se não conheceram alguém que morreu, certamente conhecem animaisbet 135estimação que morreram, e muitas vezes eles voltam com a mesma clareza, com vida e saúde.

E as crianças frequentemente nos dizem que [essa experiência] significa para elas que são amadas e que não estão sozinhas.

Essas experiências também parecem lhes dizerbet 135que ponto estão. Então elas muitas vezes conseguem compreender o seu próprio fim por meio dessas experiências.

bet 135 BBC News Brasil - Qual o impacto dessas experiências nas famílias e pessoas próximas dos pacientes?

bet 135 Kerr - Nós publicamos dois artigos científicos sobre isso, com 750 entrevistas, e é fascinante. A conclusão é que o que é bom para o paciente também é bom para seus entes queridos.

E a maneira como as pessoas nos deixam é importante. Se vemos a morte como algo vazio e como degradação, ou se vemos nosso ente querido reconectado com pessoas que ele ou ela ama.

Nós conduzimos um estudo muito interessante no qual analisamos os processosbet 135luto. E há maneirasbet 135medir isso, como as pessoas estão progredindo, se conseguem se lembrar [de quem perderam]bet 135maneira saudável, esse tipobet 135coisa.

E as pessoas que testemunham esse tipobet 135experiênciabet 135finalbet 135vida sofrembet 135uma forma muito mais saudável, porque isso molda abet 135percepção e abet 135recordação daqueles que perderam. Portanto, isso é muito importante.

bet 135 BBC News Brasil - O senhor tem doutoradobet 135Neurobiologia, mas diz que não pode explicar a origem dessas experiências e que compreender esse mecanismo não é o mais importante. Comobet 135perspectiva sobre esse tema, como médico, evoluiu?

bet 135 Kerr - Com muita humildade. Fui testemunhabet 135casosbet 135que o que eu estava vendo era tão profundo, e o significado para o paciente era tão claro e preciso, que quase me senti um intruso.

E tentar decifrar a etiologia, a causa, parecia fútil. Concluí que era simplesmente importante ter reverência, que o fatobet 135eu não conseguir explicar a origem e o processo não invalidava a experiência para o paciente.

E então,bet 135algum momento,bet 135vezbet 135ficarbet 135pé ao lado da cama, fazendo perguntas, aprendi a sentar e a simplesmente ficar mais presente.

Me parecia muito pequeno tentar medicalizar algobet 135que realmente não era meu papel me intrometer, que era pessoal na vida daquela pessoa.

Uma analogia que costumo usar é abet 135que não posso explicar a origem do amor [da mesma maneira que não posso explicar a origem dessas experiências]. É algo abstrato, mas sabemos que existe.

bet 135 BBC News Brasil - O senhor já disse que as discussões mais ricas sobre essas experiências costumam vir das ciências humanas, e não da Medicina. Por que a Medicina não dá mais atenção a esse tema? E, nos últimos anos, viu mudanças nessa postura?

bet 135 Kerr - Não. Acho que está piorando.

Acho que as humanidades entram nisso questionando a nossa existência e o nosso significado, há uma abertura, enquanto na ciência procuramos evidências e coisas que sejam concretas, objetivas e mensuradas. Então, não se presta ao abstrato.

Assim, na Medicina, enquanto olhamos para o processo físicobet 135morrer, não olhamos para a experiênciabet 135morrer. E essa é a maior diferença.

E o que está mudando é que a Medicina está cada vez mais apaixonada pelabet 135ciência e, com isso, perdeu grande parte dabet 135arte.

bet 135 BBC News Brasil - Sua pesquisa começou porque outros médicos queriam evidências. Mas, mesmo após publicar os resultadosbet 135revistas científicas, seu trabalho chamou mais a atenção da imprensa do que do campo médico. Como vê esse contraste?

bet 135 Kerr - Tem sido uma experiência muito estranha para mim.

Comecei [os estudos] porque estava tendo dificuldadebet 135fazer com que jovens médicos valorizassem o que os pacientes estavam vivenciando. Então começamos a coletar evidências, colocandobet 135uma linguagem que eles respeitassem.

Mas quando [a pesquisa] saltou para a grande mídia, foi adotada e se espalhou pelo mundo.

E acho que há um problema nisso, que as pessoas prestando cuidados médicos não dão importância [para esse tema], enquanto as pessoas que estão recebendo os cuidados, ou simplesmente curiosas sobrebet 135própria morte, abraçam [o estudo desse assunto]. O contraste é interessante.

bet 135 BBC News Brasil - Sei que o senhor já disse algumas vezes que detesta essa pergunta, mas preciso perguntar: é religioso? Acreditabet 135vida após a morte? E suas crenças mudaram ao longo dos anos trabalhando com esse tema?

bet 135 Kerr - Desde que começamos [os estudos], sempre fomos muito disciplinados para não interpretar [essas experiências] além da morte.

Porque o que queríamos fazer não era interpretar, era simplesmente considerar o processobet 135morrer, encará-lo como um mistériobet 135si mesmo, honrar as palavras e a experiência do paciente, sem tentar descrever ou descobrir ou editorializar o que era.

Estávamos tentando ser o mais objetivos possível. A morte é como uma porta, certo? E há um buracobet 135fechadura. Você pode olhar e ver as coisasbet 135várias maneiras diferentes.

Então fomos realmente muito disciplinadosbet 135não interpretar.

Mas, dito isso, não, eu não diria que era religioso. Mas eu certamente abordo tudo isso com abertura e respeito, espero.

Acho que depoisbet 135todos esses anos, 25 anos, o que sinto é que existe uma história melhor aí. E eu não sei qual é, mas tenho tanto respeito pelo que essas pessoas estão vivenciando que isso me deixa esperançoso por algo mais.

E há algumas coisas [que ficaram claras]. Uma é que nunca perdemos verdadeiramente as pessoas que amamos, elas continuam a existir para nós, não apenasbet 135maneiras que são distantes,bet 135fotografias ou lembradas na memória, mas na presença.

Já vi homensbet 13595 anos que perderam a mãe aos cinco anosbet 135idade e, nove décadas depois, ela está lá, ele ouve abet 135voz, sente seu perfume.

Então você acaba sentindo que há algo mais. Que a morte e o morrer não podem ser definidos como algo vazio.