Como pobreza e drogas têm transformado bibliotecas nos EUA :

A biblioteca Martin Luther King Jr., a principalWashington

Crédito, Alessandra Corrêa

Legenda da foto, A biblioteca Martin Luther King Jr., a principalWashington, tem muitos frequentadoressituaçãorua e uma sérieprogramas específicos para ajudar esse público

Um dos objetivos é servirponte entre esses usuários e instituições que prestam serviçosmoradia, saúde e educação.

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Bibliotecas ao redor do país passaram a oferecer programas específicos para esse público, desde a contrataçãoassistentes sociais até o fornecimentoroupas e produtoshigiene.

Em várias delas, funcionários recebem treinamento para lidar com crisessaúde mental, dependênciadrogas ou até mesmo overdoses, problemas que afetam parte dessa população.

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Para os bibliotecários, que antes tinham como foco recomendar obras e autores, a profissão agora traz novas exigências.

“Muita gente pensabibliotecas como basicamente depósitolivros”, diz à BBC News Brasil a presidente da American Library Association (Associação AmericanaBibliotecas), Lessa Kanani’opua Pelayo-Lozada.

“Mas, nos últimos 20 anos ou mais, nós vimos as bibliotecas evoluírem e se tornarem espaços comunitários”, afirma.

“E também vimos uma mudança no tipohabilidades que nossos funcionários precisam para poder fazer seu trabalho”, acrescenta.

Segundo Pelayo-Lozada, o trabalho dos bibliotecários não se restringe mais à curadoria da coleçãolivros, mas inclui também o desenvolvimentohabilidades interpessoais e treinamento para lidar com clientes que estejam enfrentando problemassaúde mental, entre outros aspectos.

“Todas essas coisas são mais recentes. E se devem,parte, ao fatoas bibliotecas serem espaços tão inclusivos e abertos, garantindo que todos tenham um ambiente seguro para onde possam ir quando precisarem”, ressalta.

Um perfil desse público

A presidente da Associação AmericanaBibliotecas, Lessa Kanani’opua Pelayo-Lozada

Crédito, American Library Association

Legenda da foto, A presidente da Associação AmericanaBibliotecas, Lessa Kanani’opua Pelayo-Lozada, ressalta que usuáriossituaçãorua “não estão apenasbuscarecursos, também buscam alimentar seu lado humano”

Pelayo-Lozada salienta que as bibliotecas não coletam dados sobre a situaçãomoradia dos frequentadores e, portanto, é difícil estimar o percentualusuários que não têm onde morar ou se houve aumento nessa parcela do público.

“Mas os usuáriosnossas bibliotecas refletem as comunidadesque vivemos, bem como tendências sociais mais amplas. E sabemos que houve aumento na faltamoradia, especialmente nos últimos dois anos, entre a pandemia e a recessão iminente”, observa.

“E sabemos também que esse públicoparticular costuma recorrer às bibliotecas, porque estamos aqui para todos, e nossos serviços estão disponíveis para aqueles que precisam, estejam ou nãosituaçãorua”, complementa.

Em algumas cidades, como San Diego, na Califórnia, a imprensa local calcula que moradoresrua formam a maioria dos frequentadores da biblioteca central.

O aumento dessa fatia do público é frutouma queda no volume geralvisitantesanos recentes, aliada a um aumento no número pessoas sem-tetovárias partes do país.

Um estudo publicado no ano passado por pesquisadores da Universidade EstadualSan Diego e da Universidade da CalifórniaSan Diego afirma que “em todo o país, as bibliotecas são cada vez mais reconhecidas como espaços públicos com potencial para ajudar usuáriossituaçãorua ou instabilidade habitacional”.

Os autores entrevistaram 14 funcionários da biblioteca centralSan Diego e 49 frequentadoressituaçãorua, dos quais 51% eram homens, 43% tinham idade acima50 anos e 33% diziam ter algum tipodeficiência física ou mental. O resultado é um retrato detalhado dessa parcela do público esuas interações com os bibliotecários.

Muitas pessoassituaçãorua não querem ir para abrigos, que costumam estar lotados e ter regras rígidas, como toquerecolher.

E mesmo os que dormemabrigos precisamum local para passar o dia e sofrem com “o estigma ou a exclusãooutros espaços públicos”, diz o estudo.

“Durante o dia, somos todos sem-teto, independentementetermos ou não um lugar para dormir à noite”, resumiu um dos entrevistados que, assim como o restante, teveidentidade preservada.

“Se você estáum abrigo, tem seis dias ou três dias, e depois (precisa ir para) outro abrigo”, observou outro.

Nas bibliotecas, onde tradicionalmente todos são bem-vindos e não há barreiras que são comunsoutros locais, como exigênciapagamento ou apresentaçãocarteiraidentidade, essa parcela do público encontra um lugar acolhedor e que proporciona estabilidade, nem que seja apenas durante algumas horas. Muitos já estãomanhã cedo na porta, esperando o prédio abrir.

“Eu posso simplesmente me isolar. Pegar um livro ou até mesmo um jornal e desligar todo o resto. Você entende? Estou seguro e não preciso me preocuparser roubado”, relatou um entrevistado.

De acordo com Pelayo-Lozada, alémdesfrutarfacilidades básicas, como banheiros e cadeiras, esses frequentadores usam as bibliotecas para diversas atividades, desde procurar empregos e enviar currículos até se conectar por email e redes sociais com a família e amigos.

“Não estão apenasbuscarecursos, também buscam alimentar seu lado humano, encontrar maneirasserem criativos”, destaca. “Vejo pessoas participandoprogramasque podem criar arte e sentir que são parteuma comunidade.”

Desafios para os funcionários

Segundo o estudoSan Diego, as bibliotecas representam “uma oportunidade única”atender uma parcela da população muitas vezes oculta e vulnerável, e que geralmente “carecerecursos adequados para os múltiplos riscos que enfrentam”, como insegurança alimentar, dependênciadrogas e transtornos mentais.

Mas esse novo papel das bibliotecas representa um desafio para os funcionários, que nem sempre são capacitados para ajudar esse público. Enquanto alguns dos bibliotecários entrevistados no estudo disseram que esta “não éfunção ou propósito”, outros manifestaram a vontadeter mais treinamento e “informações para encaminhar esses usuários aos serviços apropriados”.

A epidemiaopioides que afeta os Estados Unidosmaneira geral, com mais100 mil mortos por overdose a cada ano, também impacta diretamente a populaçãorua. Conforme o estudo, há um aumento recentecasosoverdoses e até tentativassuicídiobibliotecas do país.

“Os funcionários podem nem sempre estar preparados para lidar com a miríadedesafios sociais que seus usuários enfrentam, como overdoseopioides e crisessaúde mental que ocorrem no local”, dizem os autores.

Moradorrua dorme na calçadafrente à biblioteca centralWashington

Crédito, Alessandra Corrêa

Legenda da foto, A população sem-teto nos EUA é calculadaquase 600 mil pessoas. Na foto, um moradorrua dorme na calçadafrente à biblioteca centralWashington

Nos últimos anos, várias bibliotecas no país passaram a treinar seus funcionários para administrar Narcan, um medicamento capazreverter overdoses.

Algumas também passaram a contratar agentessegurança pública treinados para identificar, intervir e prevenir crisessaúde mental, outro problema que muitas vezes afeta pessoassituaçãorua.

É importante que os funcionários não apenas estejam capacitados para auxiliar esses frequentadoresaspectos práticos, como navegar a burocracia envolvida no acesso à moradia ou outros serviços, mas também desenvolvam empatia.

“Algo que tentamos enfatizar com os funcionários é que não podemos julgar alguém poraparência. Então, não sabemos se (determinados usuários) estãosituaçãorua ou algo assim até que venham falar conosco”, destaca Pelayo-Lozada.

“Uma das coisas importantes que devemos fazer regularmente é desenvolver relacionamentos com nossos clientes, independentementeseu histórico. Para que, quando precisaremalgo, sintam-se à vontade para vir até nós”, afirma.

De acordo com o estudoSan Diego, é comum que usuáriossituaçãorua pensem que não se qualificam para os serviços disponíveis ou não saibam onde obter ajuda. Para muitos, as bibliotecas são um primeiro pontocontato, a partironde podem ser encaminhados a serviçosmoradia, saúde, tratamento para dependênciadrogas e outros.

Cada biblioteca tem um modelo diferente,acordo com a comunidade onde atua e os recursos disponíveis.

Em 2012, a biblioteca públicaTucson, no Arizona, foi a primeira do país a contratar um enfermeiro especializadosaúde pública, responsável por serviços que vão desde primeiros socorros até ajudar usuários a se inscrever para planossaúde.

Em várias cidades, como Las Vegas ou Salt Lake City e outras, as bibliotecas oferecem roupas e kitshigiene. Em muitas, como Chicago ou Denver, funcionários costumam ajudar quem precisa a preencher formulários para acessar serviçosmoradia, fazer currículo para procurar emprego ou simplesmente aprender a usar computadores e outras tecnologias.

“Nos últimos anos, houve um aumento no númerobibliotecas com assistentes sociais na equipe, para ajudar pessoas que podem estarsituaçãorua ou enfrentando outros problemas”, afirma Pelayo-Lozada.

“Frequentemente também fazemos parcerias com outras entidades públicas e sem fins lucrativos para conectar as pessoas a informações e recursosque precisem.”

O exemploWashington

Kitshigiene distribuídosbibliotecaWashington

Crédito, Alessandra Corrêa

Legenda da foto, As bibliotecas públicasWashington distribuem kitshigiene a quem precisa, com produtos como xampu, sabonete, escova e pastadente, absorventes íntimos, máscaras, gorros, meias e luvas

A capital americana é uma das cidades que vêm ampliando os serviços oferecidossuas bibliotecas aos usuáriossituaçãorua.

Em 2014, o sistemabibliotecas públicasWashington foi um dos primeiros do país a contratar uma assistente socialtempo integral, após iniciativa semelhante alguns anos antesSan Francisco, na Califórnia.

Essa assistente social, Jean Badalamenti, atua como gerentesaúde e serviços humanos do sistema que inclui 26 bibliotecas públicas ao redor da cidade e é parte do governo municipal.

Calcula-se que cerca4,4 mil pessoasWashington não tenham onde morar, segundo os dados mais recentes, do ano passado.

Em entrevista à BBC News Brasil na biblioteca central da cidade, que leva o nome do líderdireitos civis Martin Luther King Jr., Badalamenti conta quemissão ao assumir o cargo era descobrir maneirasusar os recursos e especialistas já disponíveis na comunidade para ajudar os clientes sem-teto.

“Quando cheguei, há nove anos, o númeropessoassituaçãorua na cidade vinha crescendo. Ao mesmo tempo, a biblioteca havia contratado cercacem novos funcionários, muitos dos quais estavam pela primeira vez trabalhandouma biblioteca pública urbana”, lembra.

Uma das iniciativas foi familiarizar os funcionários sobre os recursos disponíveis na comunidade, como bancoalimentos, locais para tomar banho, doaçãoroupas e outros serviços, para que pudessem orientar melhor os usuáriossituaçãorua.

A equipe também recebeu treinamento para entendermaneira mais profunda a crise habitacional na cidade.

Entre as várias medidas adotadas para demonstrar às pessoassituaçãorua são que são bem-vindas nas bibliotecas da cidade está a distribuiçãokits com produtos como xampu, sabonete, escova e pastadente, absorventes íntimos, máscaras, gorros, meias e luvas, entre outros.

Qualquer visitante pode pedir um kit, e os funcionários também tomam a iniciativaoferecer a usuários que demonstram precisar desses produtos. Um funcionário lembrou recentemente da alegriaum homem que usava sacos plásticos para aquecer os pés ao ser abordado e receber meias novas.

Outro programa bem-sucedidoWashington é o chamado Coffee and Conversation (Café e Conversa), aberto a todos, no qual funcionários conduzem uma conversa informal sobre assuntos variados, com direito a um cafezinho.

“O objetivo era achar maneirasreunir pessoas com e sem moradia para conversar, e a biblioteca é o lugar perfeito para isso”, diz Badalamenti.

Um dos principais programas trazidos por Badalamenti, e que também já foi adotado por outras cidades, envolve contratar e treinar pessoas que no passado viveram como moradoresrua, para que possam ajudar os usuários atualmente nessa situação.

A iniciativa é conjunta com o departamento municipalSaúde Comportamental, e faz parteum esforço maior da cidade para combater a faltamoradia.

 Jean Badalamenti, assistente social que trabalhabibliotecaWashington

Crédito, Alessandra Corrêa

Legenda da foto, Em 2014, o sistemabibliotecas públicasWashington foi um dos primeiros dos EUA a contratar uma assistente socialtempo integral, Jean Badalamenti

“São pessoas que já viveram a experiênciaestarsituaçãorua, (muitas vezes) lidaram com problemassaúde mental, dependênciadrogas, encarceramento”, afirma Badalamenti. “Eles interagem diretamente com os frequentadores que podem estar precisandoalgum tipoajuda, são muito conhecidos na comunidade (de serviços aos sem-teto).”

Além da empatiaquem já passou pela mesma situação, esses funcionários têm a experiênciajá terem decifrado a burocracia muitas vezes difícil para acessar os diferentes serviços disponíveis para essa parcela do público.

Chamados“pares”, eles ajudam os usuários a se conectar com serviçossaúde mental, abrigos, receber tratamento, obter documentos e várias outras tarefas.

Segundo Badalamenti, muitos dos usuários ajudados pelos “pares” acabam conseguindo se mudar para habitação permanente.

“Conseguimos conectar muitas pessoas com serviçosmoradia, e vimos pessoas mudarem da rua para abrigos,lá para moradias transitórias, e então para habitação permanente”, salienta.

‘São pessoas como você e eu’

Um dos desafios das bibliotecas é atender às necessidades da parcela mais vulnerável dos clientesmaneira respeitosa e sem alienar os outros frequentadores.

“Temosequilibrar as necessidadestodos os membros da comunidade, o que é complexo e delicado. Para garantir que todos se sintam seguros e tenham seu espaço”, ressalta Pelayo-Lozada.

“Assim comooutros espaços públicos, usuários e funcionários podem encontrar pessoas se comportandomaneira inapropriada ou ilegal”, afirma.

“Oferecer treinamento para que nossos funcionários sejam capazeslidar com essas situações é cada vez mais importante”, acrescenta.

O fatoalguém estarsituaçãorua não significa que vá causar problemas, e os funcionários se esforçam para não estigmatizar essas pessoas.

O foco não é no histórico dos usuários, e simcomportamentos, vindosqualquer pessoa, que possam perturbar os outros, como usodrogas nas dependências, agressividade ou até mesmo ronco alto ao cochilar.

Há relatos na imprensa americanacasosconflito. Em Anaheim, na Califórnia, um moradorrua foi preso no ano passado após derrubar um funcionário da biblioteca central com um soco,um incidente documentadovídeo.

Nos últimos meses, bibliotecas nas cidadesBoulder e Englewood, no Colorado, tiveramser fechadas temporariamente para passar por um processo“limpeza especializada” depois que testes revelaram contaminação por metanfetaminaalgumas áreas, como os banheiros.

Em anos recentes, diversas cidades, entre elas Chicago, San Francisco e Seattle, registraram reclamaçõesmoradores por causaacampamentossem-teto nas áreas externasalgumas bibliotecas, como estacionamentos.

Mas funcionários ouvidos no estudoSan Diego ressaltam que muitos dos usuáriossituaçãorua “valorizam tanto a biblioteca que são quase um par extraolhos e ouvidos” e que “se surgir um problema, eles ajudam, porque não querem que a biblioteca tenha problemas” e querem “preservar o ambiente seguro” do qual desfrutam.

“De nossa perspectiva, temos todos os tipos diferentesclientes”, salienta Badalamenti. “Para mim, o mais importante é (ressaltar) que as pessoassituaçãorua são pessoas como você e eu.”

A assistente social diz que, nas bibliotecasWashington, reclamações por parteoutros usuários incomodados com a presençamoradoresrua são raras.

“Talvez,tempostempos, alguém reclame”, afirma. “E minha resposta é: ‘Se você está preocupado com as pessoassituaçãorua na biblioteca pública, eu sugiro que entrecontato com seu vereador e converse com sobre moradias mais acessíveis na cidade’.”