As evidênciasque Jesus teria tido mais do que 12 apóstolos:

Legenda do áudio, A mais famosa representação dos apóstolos: 'A Santa Ceia',Leonardo da Vinci.

“Havia outros, sim, e inclusive uma mulher”, ressalta à BBC News Brasil o historiador, teólogo e filósofo Gerson LeiteMoraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

“O termo apóstolo parece ser um termo que não tem um único uso”, explica ele. “Ganha statustítulo e qualifica 12, mas há aqueles que acham que não são só os 12, então qualificam um grupo mais amplo, um grupo que merece destaque. É um elemento basilar da igreja primitiva.”

Paulo e Lucas

Para entender a controvérsia, contudo, é preciso buscar compreender o que a Bíblia diz sobre os apóstolosJesus.

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E a mais antiga menção está na primeira cartaPaulo aos Coríntios, um documento que foi escrito na primeira metade da década50, antes, portanto, dos evangelhos.

Ali está aquele trecho que é conhecido como o mais antigo querigma do cristianismo, ou seja, o anúncio da fé que os primeiros cristãos faziam. E diz que “Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Apareceu a Cefas, depois aos doze”.

Chevitarese avalia que esse trecho, por si só, carrega alguns problemas — e é por isso que algumas versõesgrego antigo dizem “onze”,vez“doze”. “Paulo não sabia que tinha havido um traidor”, comenta ele. Judas Iscariotes teria sido aquele que entregou Jesus, portanto ele não poderia estar junto ao grupo depois da morte daquele a quem seguiam.

“Está aí,qualquer forma, a ideia dos 12. Mas é a única vez que Paulo menciona issosuas sete cartas, todas datadas da mesma década”, afirma o historiador.

Moraes acredita que tenham sido 12 os formadores do núcleo principal dentre os que acompanhavam Jesus, dado o simbolismo. Mas reconhece problemas, sobretudo quando as cartas paulinas são comparadas aos evangelhos e ao Atos dos Apóstolos, o quinto livro do Novo Testamento, creditado a Lucas. “Sim, eram 12, existe um elemento simbólico muito forte”, argumenta.

“Em Paulo, a noçãoapóstolo é um pouco mais estendida. Assim, está clara a posição peculiar dos 12 na igreja primitiva, mas não fica claro se tal posição já havia quando Jesus estava vivo”, diz.

Quando a leitura é dos evangelhos — os quatro livros bíblicos que narram a vidaJesus —, a situação se torna ainda mais complicada. “Isto porque só um autor do material neotestamentário mencionou o que exatamente seriam esses 12”, pontua Chevitarese. “Isso você vai encontrar no EvangelhoLucas, capítulo 6. É um livro comumente datado como sendo dos anos 90, do final do primeiro século.”

Ou seja: é um relato já escrito sob a “contaminação ideológica”, intencional ou não,uma igreja primitiva que surgia. E o autor não havia presenciado, ele próprio, os episódios que narrava.

Em tempo: no trecho do livroLucas está escrito que “quando amanheceu, [Jesus] chamou os seus discípulos e escolheu doze deles, aos quais deu o nomeapóstolos”.

“Assim, há essa menção a um grupo seleto que Jesus teria escolhido entre os seus discípulos”, afirma o historiador.

Númeroseguidores

Crédito, Domínio Público

Legenda da foto, Os apóstolos representadosafrescoDomenico Ghirlandaio, século 15

Mas quantosfato seguiam Jesus? Para Chevitarese, “era um movimento muito pequeno e intrajudaico”. “Não estamos falandoum candidato messiânico que arrastava multidões. Jesus era uma liderança popular situada basicamente no ambiente galileu e movimentava um pequeno númeroaderentes”, analisa.

Esses aderentes, conforme define o pesquisador, podem ser chamados“discípulos, indivíduos que ouviram suas mensagens, concordaram com elas e tomaram a decisãoficarem próximos a Jesus”.

“Prioritariamente ele atuaambientes rurais, campesinos”, acrescenta.

Mas se a maioria dos seguidoresJesus era formada por esses camponeses pobres, também havia uma elite letrada que acabou se interessando. “É o que explica por que, nos anos 50 d.C., desde muito cedo, os textos que temos acesso estavamgrego e nãoaramaico. Havia uma pequena elite citadina que concordava com Jesus do pontovista dos problemas gerados pela ocupação romana, pela aliançasetores da elite judaica com Roma.”

Uma pista sobre quantos eram esses pode ser encontrada também na cartaPaulo aos Coríntios, pois logo na sequência ao trechoque ele menciona os 12, ele afirma que Jesus também teria sido visto por “mais500 irmãosuma só vez”.

“Ou seja,alguma maneira, Jesus tinha mais discípulos do que propriamente os 12. E não há porque não admitir, dentro dessa dimensão, que havia também discípulas, mulheres que haviam deixado parte dos seus afazeres cotidianos para ouvi-lo”, diz Chevitarese.

Apóstolo ou discípulo — e uma apóstola mulher

Há um problema etimológico nesta questão. O que difere um discípuloum apóstolo? Segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, discípulo é aquele “que recebe ensinoalguém”, “aluno”. Apóstolo, na definição do mesmo dicionário, seria cada um dos “doze […] incumbidos por este [Jesus] da pregação do Evangelho”. A palavra é derivada do grego e tem o significado original“enviado”.

Mas se a fonte mais antiga para legitimar a existência dos 12 é Paulo, o mesmo Paulo indica que havia outros apóstolos — assim chamados. Inclusive mulheres.

Na carta aos Romanos, também dos anos 50, ele saúda o casal “Andrônico e Júnias, meus parentes e meus companheiroscativeiro”. E diz que os dois “são apóstolos eminentes e pertenceram a Cristo mesmo antesmim”.

“Ele, Paulo, está dizendo que esses caras notáveis ali estavam entre os apóstolos. E tem mulher aí, a Júnias (também conhecidaalguma traduções como Júnia)”, comenta Chevitarese. “Ela era uma apóstola.”

Moraes lembra que hoje “tem muito fundamentalista que diz que Júnias era nomehomem”. “Mas era mulher”, rebate.

“Ou seja, na mesma tradição que Paulo usa e trabalha e fundamenta os doze, quando ele anuncia o mais antigo querigma, ele também tem uma carta mencionando que existiam apóstolasseu tempo histórico”, analisa Chevitarese.

Vice-diretor do Lay Centre,Roma, e professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, tambémRoma, o vaticanista Filipe Domingues comenta com a reportagem sobre o papel importante que Maria Madalena tinha nesse núcleo central do movimentoJesus.

“Havia mulheres que seguiam-no e Madalena é uma delas. Informalmente ela é chamadaapóstola dos apóstolos e gostolembrar que o papa Francisco mudou a liturgiaMadalena para transformá-la uma solenidade tão importante quanto a dos outros apóstolos”, afirma ele.

“Hoje, do pontovista litúrgico, ela tem o mesmo peso”, complementa. “Ela só não é chamadaforma ampla como apóstola porque não há um relato, uma evidência nos evangelhos,ela ter sido enviada para anunciar como os outros. Mas podemos olhar como uma coisaépoca, já que uma mulher não faria isso naquele tempo.”

Domingues também frisa que Maria, mãeJesus, era outra seguidora próxima.

O historiador Chevitarese avalia que a ideia do grupo seleto dos doze pode ter sido “uma invençãoLucas mesmo”. “PorqueAtos [o livro Atos dos Apóstolos, escrito por Lucas, que narra os primeiros passos do movimento depois da morteJesus], ele vai criar, vai inventar a tradição apostólica”, contextualiza.

“Isso é muito importante na cabeçaLucas, pois para ele é como se Jesus tivesse passado seu ensino aos 12, e os 12 saíram pelo mundo, cada um por um lugar, levando avante o ensino e o poder.”

No próprio livro dos Atos dos Apóstolos, Barnabé também é chamadoapóstolo. “São figuras desconhecidas para nós. Só temos esses registros deles”, comenta o historiador Moraes.

“Isso tudo é tradição”, acrescenta Chevitarese. “Discursopoder. Uma sutileza para estabelecer uma eliteum lado e o povão do outro, serve para romper a horizontalidade para impôr uma verticalidade.”

Para Moraes “a polêmica se torna bem interessante porque existem estudos que dizem que esse termo, apóstolo, nem existia nos diasJesus”. “Talvez fosse um termo incorporado já depois do evento Jesus, utilizado na estrutura hierárquica, carismática, na estruturagoverno da igreja primitiva”, explica ele.

Crédito, Domínio Público

Legenda da foto, PinturaJames Tissot mostra os apóstolos

Construção do imaginário

“Egeraçãogeração esse ensino e esse poder seriam transmitidos aos bispos. De alguma forma, na construção do material neotestamentário [ou seja, na seleção dos textos que deveriam compôr o Novo Testamento da Bíblia, feita entre o fim do século 4 e a metade do século 5] essa tradiçãoJesus ter feito 12 apóstolos vingou”, explica Chevitarese.

Como contraponto, o historiador recorre às narrativas da vidaJesus que não foram incluída no cânone. O chamado “Evangelho Q”, provável fonteLucas eMateus na composiçãosuas narrativas, nunca mencionou a existênciaum grupo12 mais próximos a Jesus. O mesmo acontece com o “EvangelhoTomé”.

“E com exceção daquele trecho da carta aos Coríntios, Paulo também não fala nunca mais sobre o grupo dos 12. Isso deixa muito tênue a sustentabilidade da existênciaum grupo12”, pontua o historiador, enfatizando que todos esses textos são mais antigos do que o EvangelhoLucas.

De qualquer forma, prevalece a tradição. E dentro da lógica católica, conforme explica o vaticanista Domingues, a ideia é que todos os bispos contemporâneos são sucessores dos apóstolos.

“A Igreja Católica não chama mais [seus sacerdotes]apóstolos. Algumas igrejas evangélicas chamam seus líderes assim”, contextualiza Domingues.

“Na Igreja Católica e também na Anglicana, entre outras, os bispos são os sucessores dos apóstolos. É o que se chamasucessão apostólica: dentro da tradição, todos os bispos têmalguma forma origem nos apóstolos, já que eles foram ordenados por outros bispos, que foram ordenados por outros bispos e assim por diante,uma longa linhagem que retrocede até os primeiros anos do cristianismo.”