De úlcera a problemasfertilidade: como constante medo da violência afeta a saúde dos brasileiros:
No ÍndicePaz Global (GPI), desenvolvido pelo Institute for Economics and Peace (IEP), centroestudos com sede na Austrália, o país está na 132ª posição,uma lista163 nações.
Fim do Matérias recomendadas
Mesmo entre países da América Latina, o Brasil está entre os cinco mais perigosos — ficando atrás apenas da Colômbia, da Venezuela e do México.
E a preocupação com a segurança segue sendo uma das principais para a população.
Segundo uma pesquisa do Datafolha divulgadasetembro, seiscada dez brasileiros sentem insegurança ao caminhar pelas ruas da cidade onde moram.
De acordo com o instituto, 34% dizem se sentir muito inseguros após o anoitecer e 26% responderam ter um poucoinsegurança.
Viver assim,constante estadoalerta e preocupação com a segurança, pode ser bastante prejudicial para a saúde mental e física,acordo com especialistas consultados pela BBC News Brasil.
"Não só a violência direta, mas a própria percepçãoque ela existe, impacta diferente sistemas do nosso corpo - desde níveis fisiológicos até cognitivos", explica Christian Haag Kristensen, psicólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
"A percepção sobre a violência é cada vez mais um tema recorrente entre os pacientes que me procuram."
Mais fácil para alguns, mais difícil para outros
Uma toneladacocaína, três brasileiros inocentes e a busca por um suspeito inglês
Episódios
Fim do Novo podcast investigativo: A Raposa
Pedro HenriqueAbreu,42 anos, moraSalvador, cidade que está entre as 15 mais violentas do Brasil, segundo o Anuário BrasileiroSegurança Pública.
A lista, com basedados2022, considera apenas municípios com mais100 mil habitantes e tem um total50 cidades - das quais 12 delas ficam na Bahia.
Ele afirma que a preocupação e o debate sobre a insegurança são constantes. "Eu ando na rua sempre alerta", diz.
"E isso cansa, porque te mantém permanentementeum estadoolhar para os lados, virar para trás cada vez que ouve um barulho."
Abreu afirma ainda que por morarum bairro mais nobre, ser homem e branco considera-se mais privilegiado e acredita que corre menos riscos.
"Mas sempre que recebo visitas me perguntam sobre a segurança, onde é seguro ou onde não andar", conta.
"As pessoas visitam Salvador já com a sensaçãoque algo vai acontecer a elas, muito porque todos dizem que algo vai acontecer e se cria uma paranoia", afirma ele, que se diz "teimoso" por tentar fugir da sensaçãoque precisa ter medo e se esconder atrásmuros, grades e alarmes.
Mas, segundo Haag Kristensen, para algumas pessoas pode ser mais difícil fugir do estresse e da tensão causadas pela insegurança urbana.
"O impacto da percepção da violência pode variaracordo com a maneira como cada umnós lida com estressores", diz o psicólogo.
Ele explica ainda que esse efeito é mediado pela capacidadecada ser humanoperceber seus recursos internos e externos para lidar com aquilo que vê como uma ameaça.
A pesquisa do Datafolha sobre a percepção da violência demonstrou, por exemplo, que enquanto 53% dos homens afirmam sentir alguma insegurança emcidade. Entre as mulheres, são 65%.
Por outro lado, o ambienteque cada pessoa vive também pode influenciar como se enxerga a cidade e os seus riscos.
Os mais ricos descrevem a maior diferença entre a percepção da cidade onde moram e do próprio bairro.
Entre quem ganha maisdez salários mínimos, só 7% disseram se sentir muito seguros ao caminhar nas ruas da cidade.
Mas,seus próprios bairros, 20% sentem-se dessa forma. A diferença não é tão grande entre os mais pobres.
A pesquisa também apontou maior sensaçãoinsegurança entre os entrevistados nos Estados do Sudeste e Nordeste.
O paulista Arthur Mondin, 59anos, diz se sentir mais seguro ao redor dacasa do queoutras áreasSão Paulo.
Ele vive com a família no Alto da Boa Vista, um bairro nobre na Zona Sul da cidade.
"Faço tudo no meu bairro a pé, mas fico com medopassarnoitecarrooutras regiões", diz.
"Mas, no meu próprio prédio, muitas pessoas têm pedido por melhoras na segurança. Ano passado até criamos uma associação no bairro para desenvolver um projeto para lidar com o aumento no númeroassaltos a pedestres."
Kristensen explica que "existem diferenças na maneira como as pessoas percebem o que está acontecendo tambémrelação aos recursos que cada um possui para lidar com o que está acontecendo".
"Isso inclui algo que é muito importante nesse processo, que é ter uma redeapoio ou a percepçãoque existe ou não um apoio social."
Como nosso corpo reage à sensaçãoinsegurança?
Segundo o professor da PUC-RS, a exposição crônica a um fatorestresse coloca o corpoum estado permanente que os especialistas apelidaram"luta ou fuga".
"Nossos sistemas fisiológicos sabem lidar bem com estressores agudos, mas não tanto com aqueles que são crônicos", diz.
"Quando permanentemente ativados, podem nos levar a quadrosadoecimento."
Esse estado pode prejudicar o sistema imunológico e causar diferentes problemas gástricos e digestivos, como gastrite, úlceras e síndrome do intestino irritável.
Kristensen afirma ainda que disfunções dermatológicas, circulatórias e até reprodutivas - como a diminuição da fertilidade - também podem aparecer.
No campo da saúde mental, as consequências podem ser ainda mais extensas.
Um estudo publicado2021 na revista acadêmica Social Science & Medicine, desenvolvido por pesquisadores britânicos e argentinos, mostrou que pessoas que moramáreas consideradas mais inseguras têm maior probabilidadedesenvolver transtornos, incluindo depressão e sofrimento psicológico.
A pesquisa também encontrou indíciosníveis elevadosansiedade e sintomastranstorno psicótico.
Em alguns casos, esse estresse constante pode levar ao que os especialistas chamamhipervigilância, um estado constantealerta e sensibilidade sobre os perigos ao redor.
Embora a hipervigilância não seja um diagnóstico, é um sintoma que pode aparecer como partediversos transtornos mentais.
Também pode ser causada por exposição a eventos traumáticos ou o sentimentomedo intenso por um período mais longotempo.
Pesquisas mostram que alguns dos sinais mais comuns da hipervigilância são a fixaçãopotenciais ameaças, um reflexosobressalto aumentado, pupilas dilatadas, frequência cardíaca mais alta e pressão arterial elevada.
Em alguns casos, esse estado pode levar a sérios impactos na qualidadevida.
Segundo especialistas, pessoas que exibem esses sintomas podem ter dificuldade para dormir ou relaxar, o que pode piorar ainda mais a sensaçãoansiedade ou levar a acessosraiva.
Problemasconcentração e dificuldadeinteração social, especialmenteeventos grandes e locais barulhentos, também são consequências.
Já pessoas que foramfato expostas a eventosviolência ou algum outro tipotrauma podem desenvolver o chamado transtornoestresse pós-traumático (TSPT).
Esse quadro gera sintomas como pensamentos intrusivos do momento do evento, efeitos negativos sobre o pensamento e o humor e alterações no estadoalerta e nas reações.
Kristensen explica que,muitos casos, a sensaçãomedo ou insegurança é alimentada por conteúdos consumidos pelas redes sociais ou pela televisão, o que torna a situação ainda mais complexa.
"Aquela ideiachegarcasa e a ameaça acabar não existe mais", diz.
"Seguimos recebendoforma ativa ou passiva informações, notícias e imagenssituaçõesviolência pelo grupo do WhatsApp, por exemplo."
Segundo o especialista, esses conteúdos funcionam quase como uma "caixaressonância", que continuam nos lembrando das situaçõesviolência e ativando os sistemasalerta do corpo.
"Tudo ocorreforma muito sutil, e muitas pessoas não se são conta dos efeitos deletérios que isso tem do pontovista da saúdepsicológica."
O que fazer?
Mas o que pode ser feito para mitigar esses efeitos negativos?
Kristensen afirma que consumir informações nas redes sociais com mais critério é uma boa formatentar evitar o sentimentohipervigilância ou a preocupação constante com a segurança.
"Ao invésficar passivamente expostas a toda formaconteúdo, as pessoas devem delimitar o tempo e buscar aquele conteúdo quefato as interessa", diz.
"Outra estratégia é colocarperspectiva as informações que recebemos e avaliar: 'essas coisas horríveis que estão acontecendo no mundo estão acontecendo comigo neste momento?'."
Fazer atividades físicas regularmente, ter contato com a natureza e interações sociais saudáveis também podem ajudar a controlar a ansiedade e o medo e se desligar da violência, diz o psicólogo.
Em casos mais graves, buscar ajuda médica e aconselhamento psicológico podem ser imprescindíveis.
Também é importante focarsoluções coletivas, afirma Kristensen, especialmentesituaçõesmaior vulnerabilidade social e menor acesso às soluções individuais.
"É importante poder encontrar dentro das relações na comunidade situaçõesmaior apoio social e interações mais positivas", diz.
"Ou seja, grupos dentro da comunidade ligados ou não a questões religiosas que possam trazer um convívio social com valores e elementos mais saudáveis."