'Ser católico na Nicarágua é risco': como disputa entre governo e Igreja levou a veto a festas da Semana Santa:

Mulher idosa rezando

Crédito, AFP

Trata-semais um ato da disputa entre o governo do presidente Daniel Ortega e a Igreja Católica.

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A proibição foi revelada pelo bispo da diocese nicaraguenseLeón e Chinandega, Sócrates René Sandigo, atravésum áudio enviado aos sacerdotes e divulgado pela imprensa local há algumas semanas.

"Muitos foram informados pela autoridade que a Via Sacra só pode ser feita internamente ou no átrio da igreja. Outros ainda não [foram informados]. Portanto, é preferível que todos façamos a Via Sacra dentro do templo ou no átrioque mantemos essa comunhão", orientou Sandigo.

A Via Sacra é uma reconstituição religiosa católica, feita para lembrar o sofrimentoJesus Cristo,sua condenação à morte, passando pela crucificação e o sepultamentoseu corpo.

Uma fonte eclesiástica da ArquidioceseManágua disse ao jornal La Prensa que, depois da missa da Quarta-feiraCinzas,fevereiro, as autoridades policiais comunicaram "que não havia permissão para fazer a Via Sacra por motivossegurança".

Fiéisigreja católica

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, O clima dentro das igrejas na Nicarágua tornou-se tenso devido à presençapoliciais à paisana, que comparecem para informar seus superiores sobre qualquer ato considerado subversivo
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Poucos dias antes, Ortega – que está no poder há 14 anos – havia atacado o clero da Igreja Católica, dizendo tratar-seuma "máfia" e uma organização antidemocrática.

Suas palavras vieramrepúdio às declarações do Papa Francisco, que lamentou a sentença26 anosprisão contra o bispo Rolando Álvarez e pediu uma "busca sincera" pela paz por parte dos atores políticos da Nicarágua.

"Se vamos falardemocracia (...), o povo deveria primeiro eleger os padres da cidade, depois os bispos, os cardeais, e teria que haver uma votação entre o povo católicotodos os lugares para que o papa também seja eleito pelo voto direto do povo", disse Ortega. “Deixe o povo decidir e não a máfia que está organizada no Vaticano!”, enfatizou.

A presença maciçaparoquianos nos últimos atos da Quarta-feiraCinzas pode ter desencadeado a proibição. Naquele 22fevereiro, as principais igrejas estavam lotadasum gestodesagravo à prisãoRolando Álvarez.

"O regime pensou ter derrotado a Igreja Católica após a condenação contra monsenhor Álvarez. Mas naquele dia o povo saiu sem medo para ir à missa, numa demonstraçãoque a Igreja está mais forte do que nunca. Isso assustou o regime e por isso ele tomou a decisãoproibir as procissões", diz Jaime.

Nesta mesma semana, a mídia nicaraguense noticiou o assédio sofrido por pessoas que queriam realizar a procissão“Los Cirineos”, ou Cirineus, inspiradaSimãoCirene, o homem que ajudou Jesus a carregar a cruz no caminhoCalvário.

Tradicionalmente, a Semana Santa na Nicarágua é vivida como uma "grande festa da fé" que começa no DomingoRamos com a procissão da imagemCristo montado no burro.

Inclui celebrações com crianças e jovens, a festarenovação dos votos sacerdotais e se encerra com as festividades do DomingoPáscoa. Agora, está proibida qualquer manifestaçãofé fora das igrejas.

"Não nos deixar manifestar nas procissões é algo difícil para as pessoasfé, porque tem um grande significado espiritual. Para mim é uma violação da liberdadecrença. O que teremos agora será uma Semana Santa semelhante à que vivemos nos tempos da covid, onde as casas se tornaram templos. A fé é o único espaçoliberdade que nos resta na Nicarágua", diz Jaime.

Católicos participammanifestação na Nicarágua

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, A Igreja Católica teve participação ativa durante os protestos2018 na Nicarágua e o regimeOrtega considerou isso uma traição

Contra a Igreja

A tensão entre o governo Ortega e a Igreja Católica se exacerbou2018, quando o líder sandinista e a vice-presidente,esposa Rosario Murillo, solicitaram a mediaçãomembros do clero na revolta popular iniciada18abril daquele ano.

O que começou como uma reivindicação contra reformas do sistema previdenciário desencadeou uma ondaprotestos contra o governoOrtega que durou seis meses e deixou mais300 mortos.

Nesse período, várias organizações denunciaram excessos na repressão policial e a violaçãodireitos humanos por parte do governo, que porvez acusou a oposiçãoestar buscando um "golpeEstado".

No entanto, a instituição eclesiástica recusou-se a tomar partido do lado oficial. Em vez disso, pediu um diálogo nacional e rejeitou a violência nos protestos.

Alguns padres chegaram a dar refúgiosuas igrejas a manifestantes que fugiam da repressão policial, ato que foi considerado por Ortega como uma traição.

"Eu sei quem estava por trás das manobras, incentivando os crimes que, por princípio, como cristãos, como pastores, deveriam rejeitar totalmente", disse o presidente na época.

"Eles não são nada cristãos e agem com mentalidade terrorista e criminosa, juntando-se alegremente ao golpe."

O que aconteceu depois disso foi uma sérieataques que encurralou a Igreja. Foi ordenado o fechamentooito emissoras católicas e três canaistelevisão. O núncio apostólico, representante diplomático da Santa Sé no país, foi expulso.

A personalidade jurídica da Associação das Missionárias da Caridade foi anulada, obrigando as freirasMadre Teresa a deixar o país. Por fim, cerca60 religiosos fugiram ou foram expulsos da Nicarágua.

"Por que Ortega tem tanto medo da Igreja? Por causa do impacto social que ela tem sobre os cidadãos", opina Jaime.

"Desde a crise2018, tem sido a voz profética diantetanta injustiça. A Igreja tem sido intermediáriaajuda material e espiritual e tem acompanhado os processosviolação dos direitos humanos. Não se curvou ao poder político."

O bispo Rolando Álvarez

Crédito, Reuters

Legenda da foto, O bispo Rolando Álvarez preferiu a prisão ao exílio

Tensão histórica

As tensões entre a Igreja Católica e o sandinismo liderado por Ortega são antigas. No início, as relações eram próximas, porque o clero serviumediador quando membros da Frente SandinistaLibertação Nacional (FSLN) derrubaram a ditaduraAnastasio Somoza1979 e conseguiram a libertaçãopresos políticos.

Mas essa proximidade não durou muito. No início dos anos 1980, a Igreja Católica começou a denunciar a arbitrariedade da junta governamental presidida por Ortega.

Então começaram os ataques. Alguns ainda se lembram da primeira visita do Papa João Paulo 2º à Nicarágua,março1983, que acabou se tornando palcoconfronto quando partidários do governo profanaram a missa celebrada pelo pontífice.

"Os sandinistas sempre se sentiram marcados pela Igreja", diz Martha Patricia Molina, advogada e pesquisadora do relatório Nicarágua: uma igreja perseguida.

"No entanto, existem algumas diferençasrelação a esses primeiros anos. Naquela época, os padres não eram criminalizados, não havia crimes forjados ou prisões. Muito menosnacionalidade era retirada", diz a pesquisadora, sobre a perda da cidadania ordenada contra opositores que foram enviados ao exíliofevereiro.

"O governo vem erradicando os espaços democráticos. A Igreja é o único bastião que resta, já que o clero não se dispôs a adulá-lo", diz Molina, críticaOrtega. "Por isso insistemdar mais um golpe para enfraquecê-la. Mas não vão eliminar a fé do povo."

Procissão católica

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, As procissões da Semana Santa na Nicarágua costumavam ser uma "grande festa da fé". Agora, todas as manifestações fora das igrejas estão proibidas

O riscoser católico

A Nicarágua é um paísmaioria católica. Pelo menos 45% da população professa essa religião. Os demais se identificam como evangélicos eoutras crenças, segundo Molina.

Além disso, a Igreja Católica aparece como uma das instituiçõesmaior credibilidade entre os nicaraguenses, principalmente após os acontecimentos2018.

É por isso que os paroquianos têm sido alvointimidação, diz Jaime.

"Cada comunidade ou bairro tem seu CPC [Conselho do Poder Cidadão] que registra nomes e sobrenomescatólicos convictos. Estar nessas listas acarreta obstáculos para a realizaçãoalguns processos civis, como tirar carteirashabilitação, cédulasidentidade. Ou implicariscos maiores, como prisão ou exílio", diz ele.

Essa condenação atinge todos os que se relacionam com a Igreja Católica, diz Jaime.

O governo chegou a proibir empresas privadasprestar serviços a religiosos, segundo ele, sob penacassar suas licenças ou aplicar multas altas.

"Algumas semanas atrás, fizemos uma atividade na igreja e ninguém quis nos alugar ônibus para transportar os participantes. Eles estão ameaçados", relata.

Diante desta situação, o clima nas igrejas da Nicarágua deixouserrecolhimento. Já há algum tempo, se tornou tenso diante da presençapoliciais à paisana que assistem a tudo para informar seus superiores sobre qualquer ato considerado subversivo.

"Os padres estão proibidosmencionar o nomeRolando Álvarez nas homilias [preleção feita por um sacerdote durante uma missa]. Esses funcionários se encarregamregistrar o que é dito na cerimônia. E tiram fotos dos participantes para ter arquivoscasoqualquer acusação."

Fiéis carregando a imagemCristoprocissão

Crédito, AFP

Legenda da foto, Este ano, as procissões só podem ser realizadas dentro dos templos ou no átrio, segundo René Sandigo, bispo da DioceseLeón

Essa pressão teve efeitos. Alguns paroquianos deixaramir à missa por medo, diz Jaime. E não há dúvidaque muitos vão preferir ficarcasa durante as festividades religiosas.

Apesar do medo, Jaime decidiu viver a Semana Santa o quanto puder.

"Vou participar das atividades dentro das igrejas, conforme a indicação dos padres", diz.

A programação inclui a adoração da Santa Cruz na quinta-feira; a missacrisma, onde os sacerdotes renovam seus votos; a via-crúcis penitencial; a leitura das sete palavras; o santo enterro na Sexta-feira Santa; a Vigília Pascal no sábado e a MissaPáscoa no domingo.

Alguns atos litúrgicos da Semana Santa podem ser cancelados no último minuto, especialmente depois que o governo decidiu romper relações com o Vaticano.

Assim, Jaime planejou realizar algumas práticasfamília, como ler a Bíblia, rezar o terço, jejuar e meditar.

"Vou viver a Semana Santa com muita fé e esperança", afirma.

"Eles tiraram meu último espaçoliberdade físico, mas não o espiritual ou mentalmente. Em temposperseguição, a igreja se fortalece. Para as pessoasfé é um privilégio pertencer a uma organização que tem acompanhado seu povoforma tão corajosa. Cada ataque contra a igreja representa, no fundo, uma derrota para este governo."