Nossa SenhoraMedjugorje: a controversa santa não aceita pela Igreja:

Interior da igreja

Crédito, Edison Veiga

“Em 1981, ocorreram aparições pontuais, mais ou menos como ocorreuFátima [em Portugal,1917]. Até aí tudo bem. O problema é isso prosseguir.”

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“O papa Francisco até fez uma brincadeira sobre isso, dizendo que Nossa Senhora não marca horário para encontrar com as pessoas”, completa.

Seus videntes afirmam que a santa segue aparecendo frequentementeuma colina próxima à cidade — no total, as ocorrências relatadas já somam mais70 mil. Quando a reportagem visitou a igreja principalMedjugorje, oficialmente dedicada a São Tiago, onde nada se menciona oficialmente sobre as recorrentes aparições, uma funcionária da secretária reafirmou que o fenômeno persiste. Inquirida a respeito, ela disse que o local exato costuma ser revelado poucas horas antes a taxistas que atendem à comunidade — e levam os fiéis ao ponto específico.

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Quando informadaque se tratavaum jornalista, ela hesitouprosseguir o diálogo. Procurada pela BBC News Brasil com um pedidoentrevista, a administração da paróquia local jamais retornou às mensagens, enviadas a eles desde agosto.

De posseum relatório preparado, à mando da Santa Sé, pelo cardeal italiano Camillo Ruini, Francisco disse que pairavam dúvidas sobre as “alegadas aparições atuais”.

“Eu, pessoalmente, sou mais duro. Prefiro Nossa Senhora Mãe, nossa Mãe, e não Nossa Senhora chefe dos correios, que todos os dias manda uma mensagem à hora certa. Esta não é a MãeJesus”, afirmou o sumo pontífice.

A discussão remonta a dois pontificados anteriores e ao contexto da Guerra Fria, momento históricoque o Vaticano, capitaneado por João Paulo 2º (1920-2005) foi uma voz contra o socialismo. A ironia desta história é que o fenômeno, originalmente desacreditado porque a corrente católica preponderante buscava negar a afirmação política à esquerda, agora é defendido, ao menos no Brasil, pelos católicos mais fundamentalistas e tradicionais — o canalTV católico ultraconservador Canção Nova é um dos principais divulgadores da causaMedjugorje.

Política e religião são duas coisas que se misturam com frequência.

“A teologia sempre tem uma política. Ao definir os Céus, você define a Terra. Ao compreender os Céus, você determina como os homens devem agir. Não estranha nenhum pouco o uso político que foi feito pelos franciscanos [que administram a paróquiaMedjugorje]um ambiente conturbado,pobreza e depoisguerra, e como isso foi reapropriado e ressignificado por um grupo carismático fundamentalistas no Brasil”, comenta à BBC News Brasil o teólogo e historiador Gerson LeiteMoraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

“O uso político das narrativas religiosas é perfeitamente compreensível dentro dessa lógica, tanto à direita quanto à esquerda, tanto por um grupo mais ligado a uma tradição medieval, a uma ordem mendicante, como um grupo mais recente e fundamentalista ligado a questões mais emocionais e midiáticas”, acrescenta ele.

“Porque no final das contas, o fenômenosi é carregadomistérios e dado a múltiplas interpretações.”

Visões e mensagens

ImagemNossa Senhorafrente à IgrejaSão Tiago, paróquiaMedjugorje

Crédito, Edison Veiga

Legenda da foto, Tudo na pequena cidadeMedjugorje giratorno da devoção à santa

Vamos à história. De acordo com os relatos,24junho1981, seis criançasorigem croata tiveram uma visãoNossa Senhora na pequena cidadeMedjuogorje, hoje Bósnia e Herzegovina, na época parte da República Socialista Federativa da Iugoslávia. Fontes do Vaticano ouvidas pela reportagem afirmam que foram as primeiras mensagens da santa que causaram mais desconforto naquele momento.

Diversas das “revelações” daquele primeiro ano defendiam o poder dos religiosos locais —outras palavras, dos franciscanos que comandavam a igreja naquela região, que era localizada na Iugoslávia socialista. “Que os sacerdotes sejam firmes na fé e protejam a fé do povo”, teria dito a santa na terceira das aparições.

Em outubro daquele ano, a santa parecia pender para o lado oriental daquela Guerra Fria.

“O povo russo é o povo no qual Deus será principalmente adorado. O Ocidente incrementou o progresso, mas sem Deus, como se não fosse Ele o Criador”, afirmaria.

Mas suas mensagens eram semprebuscauma conciliação mundial. Em 1983, teria dito que “o mundohoje vivemeio a fortes tensões e caminha sobre a bordauma catástrofe”.

“Pode ser salvo só se encontrar a paz”, sentenciaria.

Trocandomiúdos, quando o pontificadoJoão Paulo 2º se voltou contra o socialismo e o comunismo, uma santa estaria aparecendo justamente para defender os padres ligados ao status quouma república socialista. Nada mais conveniente ao público.

“A Igreja é historicamente contra o comunismo, isso não há o que questionar”, ressalta o vaticanista Domingues .

“O comunismo é visto como algo essencialmente mau porque é materialista, elimina o transcendente.”

Era um momento político extremamente delicado na região, pois após a morte do ditador Josip Broz Tito (1892-1980), que mantinha com pulso firme a unidade dos países iugoslavos, grupos nacionalistasdireita buscavam imporagenda no país. A santa, nesse sentido, fortalecia os franciscanos locais — que, ao mesmo tempo que não apoiavam explicitamente o governo socialista, também não se alinhavam à mentalidadeJoão Paulo 2º.

Há ainda um bastidor: até 1975, quase todas as paróquias da Bósnia e Herzegovina eram comandadas por religiosos franciscanos. A partir daí, o Vaticano decidiu reorganizar o clero da região, deixando parte das comunidades sob a tutelabispos locais.

Pelo menos dois frades franciscanos se recusaram a obedecer à determinação do papa — Ivica Vego e Ivan Prusina. E teriam sido defendidos, conforme as crianças videntes disseram, por Nossa Senhorauma das aparições. Posteriormente, Vego largou a batina para viver na Itália com uma ex-freira, com quem teve cinco filhos.

Conforme pontua o jornalista, catequista e diácono Alexandre Varela, autor do livro As verdades que nunca te contaram sobre a Igreja Católica, os seis videntesMedjugorje eram crianças orientadas espiritualmente por esses dois religiosos. “Toda a história tem eventos muito suspeitos e muito bizarros”, comenta ele, à BBC News Brasil.

Especialistaaparições marianas e estudioso do fenômeno, o teólogo francês Rané Laurentin (1917-2017) afirmou que achava “lamentável” que essa questão político-religiosa local tivesse sido levada à Nossa Senhora, dizendo que a situação se tornou “deplorável” porque “colocou a Virgem e as autoridades estabelecidasconflito”.

Laurentin também escreveu que a história da primeira aparição estava envolta por mentiras. Segundo ele “as duas primeiras videntes, Ivanka e Mirjana, ocultaram por algum tempo o fatoque não apenas iriam ouvir algumas fitas naquele dia, mas na verdade planejavam sair para fumar”. As meninas haviam relatado que a santa lhes teria aparecidouma colina quando elas estavam ouvindo música.

Atrás da igreja, tem um espaço construído para missas campais e outros eventos com peregrinos

Crédito, Edison Veiga

Legenda da foto, Atrás da igreja, tem um espaço construído para missas campais e outros eventos com peregrinos

Com o passar do tempo, as mensagens supostamente ditas pela santa começaram a querer influenciar na querela entre os religiosos locais. Em 1982, por exemplo, Nossa Senhora teria reafirmado a inocência dos dois padres e ainda, conforme pontua Varela, determinado que não era para obedecerem as autoridades. Em 1985, a santa afirmaria,acordo com esses relatos, que o bispoMostar, jurisdição responsável por Medjugorje, Pavao Žanić (1918-2010) agia “sob a influênciaSatanás”.

Em 1986 esse bispo emitiu um parecer afirmando que as aparições não eram legítimas. Cinco anos mais tarde foi a vez da conferência nacional dos bispos da Iugoslávia,novo relatório, também negarem a autenticidade dos relatos.

Mas essa narrativa não termina aí. Encarregadoser o diretor espiritual dos seis videntesMedjugorje, o então frade franciscano e padre católico Tomislav Vlašić, membro do movimento Renovação Carismática Católica, engravidou uma freira franciscana e, para abafar o escândalo, convenceu-a a se mudar para Alemanha.

Em 1984, por intermédio do bispoMostar, o caso chegou ao então cardeal Joseph Ratzinger (1927-2022), futuramente papa Bento 16. Na época, ele era o responsável pela Congregação para a Doutrina da Fé. Com o objetivocolocar panos quentes sobre o caso, Ratzinger decidiu transferir o padre bósnio para Parma, na Itália.

Ali, o sacerdote seguiu divulgando as apariçõesMedjugorje e, incentivado por ele, fiéis católicos também passaram a relatar visões milagrosas da santa e até mesmoextraterrestres. Ele fundou na cidade uma comunidade chamada Rainha da Paz — Totalmente Seu. Em 2009, após julgamento por má conduta, heresia, manipulaçãoconsciências e imoralidade sexual, Vlašić foi destituído do clero. O religioso acabou excomungado2020.

Fundou uma nova denominação, a IgrejaJesus CristoTodo o Universo, sediada na regiãoBrescia, na Itália.

Varela acredita que diantetantos acontecimentos estranhos, o fato“ter um montecoisa” provavelmente imoral já deixa dúvidasque se esteja falando “de uma aparição milagrosa”.

“A gente fica se perguntando: como é que Nossa Senhora não advertiu os videntes para não confiar, por exemplo, nesses religiosos, nessa direção espiritual? Como é que Nossa Senhora não advertiu sobre toda essa loucura que acontecia ali?”, ressalta o catequista. “Em vez disso, os videntes acabaram ao lado do padre excomungado, defendendo-o. Será que Nossa Senhora não teria avisado? É estranho, muito estranho.”

Interior da igreja

Crédito, Edison Veiga

Legenda da foto, São os relatos miraculosos das visitas recorrentes da santa que movimentam a cidadezinha

Fama

Ex-professor na Pontifícia Universidade CatólicaSão Paulo (PUC-SP), o teólogo e mariólogo Pedro Iwashita diz à BBC News Brasil que não se pode analisar um caso “onde nem a própria Igreja emitiu um parecer ainda”. “O que se deve verificar são os possíveis frutos que têm surgido e o interesse que tem despertado, mesmo entre estudiosos. Mas é importante estar atento a um parecer oficial da Igreja.”

Controvérsias à parte, o fenômeno Medjugorje ganhou fama entre católicos. Em 2010, o papa Bento 16 criou uma comissão para investigar as aparições. “Essa comissão deu parecer positivo,forma inicial, para as primeiras, aquelas1981. Não foi um reconhecimento formal do papa, mas uma indicaçãoque algosobrenatural parece ter acontecido ali”, comenta Domingues.

Oficialmente, conforme relatório produzido pelo Vaticano2014, as sete primeiras aparições foram classificadas como“caráter sobrenatural” — ou seja, são as que teriam ocorrido entre 24junho e 3julho1981. Todas as demais, segundo os peritos, não deveriam ser consideradas autênticas.

Lojinha a poucos metros da igreja principalMedjugorje

Crédito, Edison Veiga

Legenda da foto, Lojinhasouvenir a poucos metros da igreja principalMedjugorje

As frases supostamente ditas pela santa também foram analisadas. “[As primeiras] eram mensagens pela paz, pedindo reconciliação”, analisa o vaticanista.

Aos poucos, contudo, frases destoantesuma possível vozNossa Senhora começaram a aparecer. Laurentin conta, por exemplo, que1995 uma das videntes afirmou que era da vontadeNossa Senhora a construçãoum centro pastoral, um hotel com 100 quartos e capela para os peregrinos. “Nossa Senhora quer este hotel”, teria dito ela.

Segundo o especialista, negou-se que “Nossa Senhora pudesse estar intervindo numa questão financeira e comercial”, embora a vidente insistisse que a santa “quer este hotel”.

A análise da comissão foique, cada vez mais, as mensagens pareciam contaminadas pelas rixas entre os religiosos locais.

Em 2015, a Congregação para a Doutrina da Fé determinou que os videntes e os clérigosMedjugorje estão proibidosdivulgar as mensagens supostamente ditas por Nossa Senhora aos videntes.

“A grande diferença é a continuidade das aparições e a forma como isso acontece ainda hoje, o que foi questionado pelo papa Francisco”, reitera Domingues. O Vaticano acompanhaperto a situação. Em 2017, enviou para lá um novo comissário, o bispo polonês Henryk Hoser (1942-2021). Ele morreucovid-19 e, desde 2021, seu trabalho é continuado pelo arcebispo italiano Aldo Cavalli. É um trabalho por tempo indeterminado e sem prazo para conclusão.

Mas é um tapa com luvapelica, afinal o papa sabe que não se pode menosprezar a fé popular — ainda maistempoperdafiéis. Assim, Francisco adota uma postura dúbia: ao mesmo tempoque não reconhece o fenômeno das aparições, incentiva as peregrinações e as orações a Nossa Senhora. Tanto é que, depoisanosquestionamentos, sob seu pontificado finalmente as peregrinações a Medjugorje foram autorizadas oficialmente pela Igreja, a partir2019.

Com um senão: os católicos não podem, segundo o Vaticano, participar dos eventos onde os videntes dizem receber as tais mensagens. Além disso, os videntes não podem realizar eventos religiososnenhuma diocese do mundo. E a paróquiaMedjugorje, uma construção1969honra a São Tiago, não pode ser chamadasantuário mariano.

“Ele permitiu as peregrinações, que estavam proibidas, sem dar um parecer positivo, no entanto, sobre as apariçõessi”, analisa o vaticanista. “Ou seja: as pessoas podem ir a Medjugorje, rezar por Nossa Senhora e tal, se encontrar lá, rezar e tudo o mais, mas ainda não há o reconhecimento oficial nem das aparições1981, que receberam parecer positivo da primeira comissão, nem das aparições posteriores.”

Em 2017, papa Francisco comentou que era “mais malvado” do que o parecer da comissão. “Prefiro a Virgem Mãe do que a Virgem que é encarregadauma agência dos correios e envia uma mensagem a cada dia. E essas pretensas aparições não têm tanto valor, isto eu sigo como opinião pessoal”, afirmou ele.

“MensagensNossa Senhoraescala industrial é uma exclusividadeMedjugorje. Não existe nenhuma outra apariçãoque ela fale, fale, fale sem parar até hoje. É uma coisa muito estranha. Papa Francisco até ironiza”, comenta Varela.

ImagemNossa Senhorafrente à IgrejaSão Tiago, paróquiaMedjugorje

Crédito, Edison Veiga

Legenda da foto, Medjugorje é um pequena cidadeinterior com 6 mil habitantes

“Os franciscanos que conduzem a paróquia [local] conduzem ali uma vida pastoral, um santuário. Mesmo sem reconhecimento oficial da Igreja às aparições, seja as antigas como as atuais, é uma devoção mariana. As pessoas vão lá porque acreditam que é um localmilagres . E até aí não há nadaerrado [do pontovista católico]. Mas há uma crença generalizada que se trataum lugar especial”, pontua Domingues.

Cavalli já deu indícios,manifestações públicas,que encara Medjugorje como algo positivo para a Igreja. “[Ele classifica] como um lugargraça,devoção,oração, onde as pessoas vão buscando esperança, acompanhamento e graças”, diz o vaticanista. “Mas ele ainda não comentou sobre as supostas aparições que este grupopessoas diz ver ainda hoje. Essa é a parte que a Igreja tende a não aceitar.”

Por outro lado, é evidente que são os relatos miraculosos das visitas recorrentes da santa que movimentam a cidadezinha. “As pessoas continuam acreditando, aí vem todo um sistema que estrutura a cidade, que desenvolveu a cidade. São doações e tudo o que santuários assim conhecidos têm”, avalia Domingues.

O teólogo Moraes não tem dúvidasque, com ou sem aval do Vaticano, o mitoMedjugorje só tende a aumentar. “A Igreja Católica explora como ninguém a ideiaencantamentomundo, fazendo conviver posturas racionais com posturas mais emocionais. Fenômenos como esse ocorrem como possibilidaderenovação da fé”, afirma. “Não há controle, nem mesmo um controle papal, que conseguiria determinar e enquadrar a força da religião. Quando ela brota no meio do povo, ela brota e as pessoas querem acreditar.”

“Como você não consegue brecar esse tipofenômeno, me parece que a posturaFrancisco é a mais sábia: ele diz para as pessoas tomarem cuidado, fortalecerem seus vínculos com Deus, mas term cautela, ao mesmo tempo não rechaça [Medjugorje] porque esse tipomistério,aparição, isso faz parte da vida da Igreja Católica”, diz Moraes. “Ali já se formou um centroperegrinação. É a força popular que acaba pautando o magistério.”

“Neste exato instante, as apariçõesMedjugorje estão numa espécielimbo eclesiástico: não foram condenadas nem aprovadas”, resume Varela.

Atualmente bispo eméritoMostar, Ratko Perić publicou um artigo,2017, quando ainda estava na ativa, desacreditando todas as supostas apariçõesMedjugorje. “A. Posição desta Cúria por todo este período foi clara e decidida: não se trataverdadeira aparições da Virgem Maria”, escreveu ele. O religioso falou que o fenômeno era repleto“manipulações intencionais” e defendeu que todos os envolvidos fossem chamados“supostos videntes”. “Pode-se, pacificamente, afirmar: a Virgem não apareceuMedjugorje”, sentenciou o bispo.