Por que a Semana Santa é chamadaSemanaTurismo no Uruguai e o que isso revela sobre o país:

Duas pessoas caminham por uma praia no Uruguai

Crédito, AFP

Legenda da foto, Muitos uruguaios aproveitam a data para passear pelo país

Mas o Uruguai a definiu oficialmente como Semana do Turismo há maisum século, algo que reflete a profunda tradição secular deste país, apontado por pesquisas como o menos religioso da América Latina.

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É um fato que pode causar espantooutras latitudes.

"Uma vezSevilha (Espanha) me apresentaram dizendo que eu vinhaum país onde a Semana Santa se chamava Semana do Turismo", disse o arcebispoMontevidéu, cardeal Daniel Sturla, à BBC Mundo (serviçoespanhol da BBC).

Para entender o que esse nome significa, é preciso viajar no tempo.

Um processo 'exitoso'

O Estado uruguaio começou a se distanciar da Igreja a partir1860, com medidas como a secularização dos cemitérios e a criaçãoum registro civil para registrar nascimentos, casamentos e óbitos, tarefa que até 1879 estava apenas na órbita católica.

Embora o catolicismo fosse predominante no país, Sturla destaca que "quando começou o processosecularização no Uruguai, a Igreja era frágil, não tinha muita força, e isso também contribuiu para que fosse tão exitoso".

O processo teve um impulso definitivo no início do século 20 com os dois mandatos presidenciaisJosé Batlle y Ordóñez (1903-1907 e 1911-1915), líder do Partido Colorado, que foi fundamental na construção do Uruguai moderno e liberal.

José Batlle y Ordóñez

Crédito, AFP

Legenda da foto, José Batlle y Ordóñez foi fundamental na separação entre Estado e Igreja no Uruguai no início do século 20
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Inspirado nas ideias políticas e filosóficas que circulavam na Europa, particularmente na França, "Pepe" Batlle tinha uma concepção racionalista espiritualista, escrevia "Deus" com letra minúscula na imprensa e promovia reformas sociais contrárias aos interesses daIgreja Católica.

As mudanças foram desde a retirada dos crucifixos dos hospitais públicos até a eliminação do ensino religioso nas escolas públicas, bem como a possibilidadedivórcio por vontade exclusiva da mulher.

Mónica Maronna, historiadora e coautora do livro 100 añoslaicidad en Uruguay (100 anossecularismo no Uruguai,tradução livre), destaca que naqueles anos a batalha anticlerical surgiu tanto no campo jurídico como no cultural.

"Por exemplo, houve um episódio muito comum, principalmente entre os anarquistas,zombaria da Igreja: na Semana Santa, quando havia a ordemnão comer carne, faziam um churrasco que chamavam'banquete da promiscuidade'", disse Maronna à BBC Mundo.

Isso ocorreu na mesma praça central onde está localizada a catedralMontevidéu.

Durante esses anos, o usofantasias religiosas no carnaval uruguaio também deixouser proibido.

Isso abriu caminho para que a separação entre Estado e Igreja Católica fosse definitivamente estabelecida na Constituição que entrouvigor1919 no Uruguai.

No mesmo ano, foi aprovada no país uma leiferiados que mudaria o nomediversas datas católicas: 6janeiro passou a ser Dia das CriançasvezDiaReis Magos, 25dezembro passou a ser Dia da FamíliavezNatal e a Semana do Turismo substituiu a Semana Santa.

Um cavaleiro anda a cavalo durante a celebração da Semana Crioula no Uruguai

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, No Uruguai também se comemora nestes dias a Semana Criolla, com seus populares eventos com cavalos

Houve também a propostaseparar, no calendário, esta semana daquela que os cristãos celebram entre o DomingoRamos e a Páscoa, algo que foi descartado devido à importância que o turismo argentino no Uruguai começava a adquirir, diz Maronna.

Mas destaca que a simples mudançanome naquele contexto "marca que o Estado toma uma posição e diz que não é republicano assumir o nomeuma religião,um culto".

"E isso me parece muito importante", acrescenta.

'Uma minoria'

Essas mudanças parecem ter deixado uma marca duradoura na sociedade uruguaia, que hoje conta com 3,4 milhõespessoas.

O Uruguai é o país da América Latina com o maior percentualpopulação que declara “nenhuma” quando questionada sobrereligião: 47%, segundo a pesquisa Latinobarômetro realizada no ano passado17 países da região. Depois aparece o Chile, com 29%.

Se somarmos ateus e agnósticos aos que se definem como não tendo religião, praticamente metade dos uruguaios são não religiosos (49%), mais que o dobro do que no início deste século, enquanto a proporçãocristãos despencou mais20 pontos.

Nas últimas décadas, o Uruguai adotou novas leis que contrariam posições da Igreja Católica, como a que descriminalizou o aborto nas primeiras 12 semanasgestação2012 ou a que permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo2013.

Cardenal Daniel Sturla

Crédito, AFP

Legenda da foto, O arcebispoMontevidéu, cardeal Daniel Sturla, afirma que o nome da Semana do Turismo 'é uma questão resolvida' no Uruguai.

Muitos também viram a tradicional matriz liberal uruguaia refletida na lei2013 que regulamentou a produção, venda e consumomaconha no país, antesqualquer outro no mundo.

De tempostempos, novas discussões ressurgem no Uruguai sobre o espaçoexpressões ou símbolos religiosos nos espaços públicos.

Em Montevidéu, uma grande cruz instalada para receber o Papa João Paulo 2º1987 permaneceu até hoje, após forte debate político.

Mas três décadas depois e também no meiogrande polémica,2017 o legislativoMontevidéu rejeitou a instalaçãouma estátua da Virgem Maria no popular passeio costeiro da capital, por acreditar que comprometia a neutralidade do Estado.

Embora o Natal continue a ser popularmente chamado assim no Uruguai, apesar da leiferiados, o nome Semana do Turismo é rigorosamente utilizada pelo Estado e, na prática, por grande parte da população.

Nesta semana, com centros educacionais e repartições públicas fechadas, muitos uruguaios viajam pelo país para participareventos diversos, descansar perto das praias ou acampar e caçar no campo.

O clássico do futebol uruguaio entre Peñarol e Nacional também estava marcado para esta sexta-feira (29/3),Montevidéu, algo que o arcebispo da cidade critica.

"A Sexta-feira Santa é um dia respeitadomuitos âmbitos, mesmo nas famílias não religiosas", diz Sturla. "Que nesse dia, naquela hora da tardeque se celebra a Paixão e a Via Sacra, se faça o clássico (do futebol), parece-me um erro profundo."

Autorum livro intitulado ¿Santa oTurismo? Calendario y secularización en Uruguay ("Papai Noel ou Turismo? Calendário e secularização no Uruguai",tradução livre), o cardeal aceita que esta é hoje "uma questão resolvida" no Uruguai.

"A Igreja assume a realidadeser uma presença que não tem apoio oficial, que não tem caráter majoritário", afirma.

"Mas ao mesmo tempo é uma presença que forjou este país, que tem o seu peso e que na medidaque houver comunidades cristãs que vivam a fé com alegria e entusiasmo, mesmo sendo uma minoria, terá o seu valor e seu peso, sem que isso signifique que se volte atrásleis como essas".