Como surgiu mitof12beyque o Brasil foi descoberto sem querer:f12bey

Legenda do áudio, Desembarquef12beyPedro Alvares Cabralf12beyPorto Seguro, quadrof12beyOscar Pereira da Silva

Historiadores contemporâneos, contudo, colocamf12beyxeque esta narrativa. Não há um consenso por que os documentos conhecidos são poucos e não explicam com clareza. Mas o que a grande maioria concorda é que Cabral ao menos sabia que encontraria alguma coisa indo por ali — não necessariamente um território tão grande.

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E que partef12beysua missão, alémf12beyconsolidar a nova rota para a Índia, selando o sucesso empreendido anteriormente por Vasco da Gama (1469-1524), era estabelecer a conquista daquilo que havia sido garantido à coroa portuguesa pelo Tratadof12beyTordesilhas, firmado seis anos antes com a Espanha.

Por que então foi criado o mito da descoberta por acaso? Quais eram os interesses dessa historiografia que foi tratada como verdadeira sobretudo do início do século 19 até a décadaf12bey1980?

Criaçãof12beyuma narrativa nacional

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Pesquisador na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, o historiador Victor Missiato explica à BBC News Brasil que essa versão “foi construída principalmente no século 19”. “O Brasil e o mundo passavam por um contextof12beyformação dos nacionalismos modernos, com o desenvolvimentof12beyhistórias teleológicas, com começo, meio e fim, muito lineares”, comenta ele.

“Essa ideiaf12beydescobrimento é muito fortificada no século 19 pela monarquia brasileira e tem a intenção claraf12beycriar um caminho reto, progressista, entre uma determinada ideiaf12beydescobrimentof12beyum povo que estáf12beybuscaf12beyalgo, juntamente com uma terra que necessita ser descoberta”, diz Missiato.

Durante o período colonial, Portugal parece não ter feito questãof12beyacentuar se a conquista do território brasileiro havia se dadof12beypropósito ou não — a intencionalidade do feito não estava no centro das preocupações, a julgar pelos registros produzidos.

“Se a descoberta foi acidental ou não, na época não havia problemas com isto”, afirma à BBC News Brasil o historiador André Figueiredo Rodrigues, professor da Unesp. “O que realmente interessava a Portugal era efetivar a posse do território que lhe pertencia pelo direito atribuído pelo Tratadof12beyTordesilhas.”

Como enfatiza Rodrigues, “o importante foi a posse, mesmo que nosso processof12beypovoamento fosse tardio, uma vez que o interesse português naquela época estava no Oriente, por causa das riquezas proporcionadas pelo comércio das especiarias.”

“A notícia do achamentof12beynovas terras, a [então chamada de] Terraf12beySanta Cruz, pela expediçãof12beyCabral ganhou a Europa rapidamente por cartasf12beymercadores radicadosf12beyLisboa e pelo próprio rei, que espalhavam aos quatro cantos a descobertaf12beyterra firme que lhe pertenciam no além-mar”, conta Rodrigues. “Se foi por acaso ou não, essa questão não interessava. O que valia era efetivar o direitof12beyposse.”

Contexto e posse

Para a historiadora Clarissa Sanfelice Rahmeier, professora na Escola Superiorf12beyPropaganda e Marketing (ESPM), “toda a história do descobrimento ou achamento do Brasil deve ser entendida à luz de, no mínimo, dois elementos que caracterizavam o contextof12beyque se deu a vinda dos europeus para cá”. São eles os tratadosf12beylimites estabelecidos entre Portugal e Espanha “e a situação socioeconômica vivenciada pelos países ibéricos à época da chegadaf12beyCabral”.

“A narrativa que apresenta a versão da chegada por acaso deriva do primeiro elemento, referente à disputa, por Portugal e Espanha, das terras achadas ou por achar no processof12beyexpansão marítima impulsionado pelos dois países”, pontua ela.

Isso porque, como a linha estabelecida pelo Tratadof12beyTordesilhas não era precisa, tanto o planejamento quanto a comunicação das viagens exploratórias eram impactados. “Havia várias interpretações a seu respeito e a faltaf12beyuma exata localização, bem como o desconhecimento do que seria encontrado nas terras do além-mar”, afirma Rahmeier.

A historiadora ressalta que foi por conta disso que a coroa portuguesa financiou a viagem do explorador Duarte Pacheco Pereira (1460-1533)f12bey1498. Muitos acreditam que ele — e não Cabral — tenha sido o primeiro português a pisar nas terras que hoje são o Brasil.

“A viagem foi mantidaf12beysegredo e os relatos advindos dela também”, destaca Rahmeier. “Se considerarmos a expansão marítima uma corrida por territórios, e pelas potenciais riquezas que eles teriam, entendemos melhor a não divulgação da viagemf12beyPacheco Pereira. Manter os planos da viagemf12beysegredo não chamaria a atenção dos espanhóis para a região a que Portugal se destinava. Além disso, argumenta-se que Pacheco Perreira aportouf12beyterras onde os limites do Tratadof12beyTordesilhas não eram claros, no norte do que hoje é o Brasil, na região onde [atualmente] se localizam os estados do Maranhão e do Pará.”

Segundo ela, “a divulgação da viagem poderia despertar o interesse dos espanhóis para essa região fronteiriça”. Daí veio a viagem empreendida por Cabral. “A opção do rei Dom Manoel 1º, então reif12beyPortugal, foi organizar uma nova expedição com o intuitof12beytomar possef12beyuma área que seria certamentef12beydomínio portuguêsf12beyacordo com o Tratadof12beyTordesilhas”, explica ela. “Assim, a expediçãof12beyCabral foi montada com o intuitof12beychegar a terras que com certeza pertencessem a Portugal e, assim, tomar posse do que fosse encontrado. Foi o que ocorreu.”

Rahmeier acrescenta que como os documentos da viagemf12beyPacheco Pereira foram mantidosf12beysigilo, a expedição oficialf12beyCabral, “realizadaf12bey1500 e com o intuitof12beytomar posse do que era português antes mesmo do achamento se tornou o centro das narrativas do descobrimento”.

“O tamanho da expediçãof12beyCabral e o fatof12beysua frota seguir para as Índias após a tomadaf12beyposse das terras além-mar acabaram por reforçar a versão da descoberta acidental do Brasil”, salienta. “Essa narrativa se perpetuou mesmo após os documentos relativos à viagemf12beyPereira serem divulgados, no século 19.”

No caso, é o documento ‘Esmeraldof12beySitu Orbis’, um manuscritof12beyautoria do próprio Pacheco Pereira, escrito no início do século 16 — mas que foi mantido como secreto por Portugal até ser reencontrado e publicado no fim do século 19.

No documento, o explorador faz uma descrição que possibilita interpretar que ele esteve no território. Escreveu ele que,f12bey1498, “vossa Alteza mandou descobrir a parte ocidental, passando além da grandeza do mar Oceano, onde é achada e navegada uma tão grande terra firme, com muitas e grandes ilhas adjacentes a ela e é grandemente povoada”.

“Tanto se dilataf12beygrandeza e corre com muita lonjura, quef12beyuma parte nem da outra não foi visto nem sabido o fim e cabo dela”, relatou. “É achado nela muito e fino brasil com outras muitas cousasf12beyque os navios nestes reinos vêm grandemente povoados.”

De acordo com a historiadora Rahmeier, este documento costuma ser interpretado como registro da viagemf12beyPacheco Pereira ao Brasil — e confirmaria que af12beyviagem teria fornecido as bases para a expediçãof12beyCabral.

“[Este documento vem à tona no fim do século 19] quando a narrativa do descobrimento acidental por Cabral já era amplamente consolidada na historiografia oficial,f12beycurrículos escolares e na imaginação sobre o descobrimento”, diz a professora.

Versão oficializada pelo império

Primeira Missa no Brasil, quadrof12beyVictor Meirelles

Crédito, Domínio público

Legenda da foto, Primeira Missa no Brasil, quadrof12beyVictor Meirelles

Para o historiador Victor Missiato, não há dúvidasf12beyque quem consolidou essa ideiaf12bey“descobrimento por acaso” foi o império brasileiro, no contexto da pós-independência. É do período a construção do imaginário a respeito do episódio da chegada dos portugueses. “Se a gente pegar aquela obra do [pintor Victor] Meirelles [(1832-1903)], ‘Primeira Missa no Brasil’ [feita entre 1869 e 1861], há toda uma referênciaf12beyum destino manifesto por parte da Igreja ef12beyPortugal, no sentidof12beytrazer a palavra, a verdade, o sentidof12beycolonização para essas terras”, comenta ele.

Foram assim erguidas as bases da narrativa. Segundo Missiato, “o descobrimentof12beyum povo que vai construirf12beyhistória a partir das ideias do catolicismo e do nacionalismo”.

“Essa versão [da descoberta ‘sem querer’] durou muito tempo porque primeiro ela se constituiu como uma história oficial no século 19 e essa ideiaf12beyhistória oficial que se utiliza apenasf12beyfontes oficiais, durante muito tempo, foi considerada a história científica da modernidade”, aponta Missiato.

Durante décadas, “toda a sociedade brasileira foi formada a partir dessa ideia oficialf12beydescobrimento do Brasil”, ressalta o pesquisador. A partir dos anos 1930, ideias diferentes começaram a surgir no âmbito acadêmico. Mas ainda levaria muito tempo para serem adotadas essas versões pelos livros e apostilas escolares.

“Havia interesses claros no sentidof12beyperpetuar uma perspectiva redentora, salvadora e ao mesmo tempo uma perspectiva centralizadora da história do Brasil”, comenta ele. Afinal, uma chegada por acaso tira o peso da “conquista planejada”, que pode ser interpretada como nociva e dominadora. Uma descoberta acidental, fortuita, parece evocar um capricho do destino, facilitando a conexão mítica com ideiasf12beysalvação e redenção.

Cuidado interpretativo

O historiador André Figueiredo Rodrigues, contudo, recomenda cuidado antesf12beydefender este ou aquele pontof12beyvista interpretativo. Ele enfatiza que “a documentação contemporânea da viagemf12beyCabral não permite estabelecer com precisão se a chegada portuguesaf12beyterras nas Américas foi acaso ou intencionalidade”.

Ele ressalta que o relato mais importante, a cartaf12beyPero Vazf12beyCaminha (1450-1500), foi reconhecido como “o documento do descobrimento” apenasf12bey1817. “E somente após o fim da décadaf12bey1980, mais ou menos, é que outros 13 documentos coevos se juntaram ao rol do que chamamosf12bey‘documentos do descobrimento’”, comenta. “Dados constantes nesses novos documentos permitem acreditar que o território que mais tarde será chamadof12beyBrasil foi pelo menos visitado por outros viajantes antes da chegada da esquadraf12beyCabral.”

Rodrigues situa “a dúvida acerca do acaso ou intencionalidade do descobrimento” por conta da expedição realizada por Vasco da Gama à Índiaf12bey1498.

“Para formalizar acordos ali estabelecidos, o reif12beyPortugal armou a expediçãof12beyCabral para atender aos requisitos do samarim, o senhor da cidadef12beyCalicute, ef12beyoutros senhores do Oriente para trazer para a Europa as especiarias do Oriente”, contextualiza Rodrigues. “A expediçãof12beyCabral tinha como objetivo retornar às Índias e estabelecer acordos comerciais locais. No trajeto e com receiof12beyperder seus territórios nas Américas, a esquadra desembarca no Brasil, tomando posse oficial das terras nas Américas pertencentes a Portugal pelo Tratadof12beyTordesilhas.”

“Nessa história, um dado se soma: esse tomar posse das terras pertencentes a Portugal nas Américas ocorreu por acaso. É isso que se acreditava, pois os fatos narrados acima não eramf12beyconhecimento, e a cartaf12beyCaminha vislumbra-se pelo acaso e não pela intencionalidade”, aponta ele.

Até 1817, quando o textof12beyCaminha foi descoberto e tornado público, nem a data era sabida. Acreditava-se que o Brasil havia sido descoberto pelos portuguesesf12bey3f12beymaiof12bey1500, e não 22f12beyabril — daí o nome dadof12beyTerraf12beySanta Cruz, já que celebra-se esse diaf12beytal data.

E se a questão surgiuf12bey1817, isso acabou sendo incorporado como narrativa pelo Império Brasileiro, logo após a Independênciaf12bey1822 — e com os interessesf12beyse criar uma identidade nacional. “O fatof12beyinicialmente conhecermos apenas uma versão dos fatos levou-nos a acreditar na proposta do acaso, baseada apenas na versão dos documentos divulgadas pelos cronistas”, acrescenta Rodrigues.

“Mas com a divulgação esporádicaf12beydocumentos ao longo do século 19, questionamentos passaram a suscitar dúvidas sobre o achamento das terras do Brasil”, comenta.

O primeiro a apostar na intencionalidade

Possivelmente o primeiro a levantar essa lebre foi o historiador Joaquim Norbertof12beySousa e Silva (1820-1891). Em 1852, ele publicou na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro um artigo chamado ‘O Descobrimento do Brasil por Pedro Álvares Cabral foi devido a um mero acaso ou teve ele alguns indícios para isto?”. “[Ali, ele] defendia a intencionalidade da descoberta efetuada por Cabral. É a partirf12beyentão que se inicia o debate, que se arrasta até hoje”, diz Rodrigues.

“Joaquim Norbertof12beySousa e Silva é quem revoluciona a interpretação [da chegada por acaso], trazendo à luz novos questionamentos como o que contesta o desembarque involuntário da esquadraf12beyCabral no litoral da Bahia, ocasionado pela corrente marítima equatoriana”, explica o historiador. “Se os ventos fossem os responsáveis pelo desvio da rota, a armadaf12beyCabral deveria ter chegado ao litoral brasileiro mais ao norte e não na alturaf12bey[onde hoje fica] Porto Seguro.”

O poeta Gonçalves Dias (1823-1864) usa a mesma revista para publicar um texto refutando Sousa e Silva. “[Ele indica] que o encontro do Brasil foi por acaso e que o ato da intencionalidade retirariaf12beyCabral o seu grandioso feitof12beynosso descobrimento”, analisa Rodrigues.

De qualquer forma, esta não parecia ser uma questão que importava, naquele momento.

A partirf12bey1861, o livro Liçõesf12beyHistória do Brasil, do escritor, médico e professor Joaquim Manuelf12beyMacedo (1820-1882) acabou se tornando um material didático amplamente difundido no Brasil. E suas ideias, conforme ressalta Rodrigues, “circulavam pelas escolas como reprodutoraf12beynossa história nacional e promulgadora do patriotismo estimulado aos jovens”.

“Foi o grande livro da época… Em suas páginas, quando se lê sobre o descobrimento, nada existe sobre a polêmica intencionalidade ou acaso”, frisa o historiador. “O que ele fez foi valorizar a presença portuguesaf12beyterras americanas, nada mais.”