Ordem e Progresso: como as ideiaschat realsbetum filósofo francês do século 19 ajudam a entender a formação do Brasil:chat realsbet
A lei dos três estadoschat realsbetComte
As dificuldades financeiras para manter o "apartamento sagrado" não foram exclusividade dos seguidoreschat realsbetAuguste Comte. Sem jamais conseguir lecionarchat realsbetuma universidade, o próprio filósofo tirava seu sustentochat realsbetcontribuições esparsas que recebiachat realsbetadeptoschat realsbetsuas ideias ouchat realsbetpequenas rendas oriundaschat realsbetconferências públicas.
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Foram elas, no entanto, que permitiram-lhe escreverchat realsbetobra mais importante: o Cursochat realsbetFilosofia Positiva, cuja primeira publicação échat realsbet1830. Foi nela que ele começou a elaborar o arcabouço dachat realsbetfilosofia "positivista" e a constituir a sociologia — que sequer existia — como disciplina científica.
Para Comte, o conhecimento humano sobre o mundo passa sempre por três estados que se sucedemchat realsbetuma ordem linear: no primeiro, "teológico", todas as coisas são explicadas pela açãochat realsbetentidades sobrenaturais — como era na Idade Média na Europa, por exemplo.
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Sua fase seguinte é a "metafísica",chat realsbetque as entidades divinas são substituídas, na explicação, por abstrações filosófica, que Miguel Lemos (1854-1917), filósofo positivista brasileiro, apontou serem noções como "povo" e "soberania".
O terceiro estado é o "positivo" (daí o nomechat realsbetbatismo dachat realsbetfilosofia). Nele, "o espírito humano, reconhecendo a impossibilidadechat realsbetobter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamentechat realsbetdescobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, as relações invariáveischat realsbetsucessão echat realsbetsimilitude", escreveu Comte.
Em outras palavras, no estado positivo, a ciência deveria renunciar a tudo o que não é passívelchat realsbetobservação real, como a origem primeira dos fenômenos, e se debruçar apenas sobre os fatos e as relações concreta entre eles.
A mesma lei dos três estados vale para analisar o processo histórico. No Curso da Filosofia Positiva, Comte diz que a história deve passar sempre por uma evolução necessária, com etapas sucessivas e lineares que não podem ser interrompidas por nenhum desvio.
Ordem e progresso
É por isso que todo o acontecer histórico dependechat realsbetdois guias: a ordem — que faz com que os estados não sejam modificados por revoluções ou grandes transformações — e o progresso, resultado inevitávelchat realsbetuma ordem que só pode ir para frente. A ordem e o progresso, assim, eram as "condições fundamentais da civilização moderna", como o filósofo escreveu em Discurso sobre o Espírito Positivo, publicado postumamentechat realsbet1914.
Miguel Lemos, um dos positivistas mais famosos do período imperial brasileiro, resume assim a filosofia da históriachat realsbetComtechat realsbetPequenos ensaios positivistas,chat realsbet1877. "A história não é mais essa sériechat realsbetcombates que se sucedem,chat realsbetgerações que se odeiam e se condenam mutuamente, a história torna-se o quadro do desenvolvimento social regido pela lei dos três estados".
Maria Amália Andery, professora e reitora da Pontifícia Universidade Católica (PUC)chat realsbetSão Paulo, e Tereza Pires Sério, do departamentochat realsbetPsicologia da mesma universidade, pontuam,chat realsbetum artigo sobre o filósofo, um fato interessante: que, no sistemachat realsbetComte, o ser humano só pode se resignar. Para ele, resta "aguardar o desenvolvimento, respeitandochat realsbetordem natural, seu tempo, seus limites, num processochat realsbetespera que é, ele também, ordeiro", afirmam.
O positivismo no Brasil
Muito anteschat realsbetPaulo Carneiro, as ideiaschat realsbetComte tiveram impacto no Brasilchat realsbetum momento crucial do país: a transição do Império para a Primeira República, proclamadachat realsbet1889.
A influência da filosofia positiva nas ideias brasileiras pode ser vista desde o "castilhismo", a doutrina política criada pelo republicano gaúcho Júliochat realsbetCastilhos — que escreveu a Constituição do Rio Grande do Sulchat realsbet1891 com base nas ideiaschat realsbetComte — até a conhecida frase da bandeira republicana, "Ordem e Progresso", sugestão do professor (e positivista) da Escola Militar da Praia Vermelha, no Riochat realsbetJaneiro, Benjamin Constant, e do presidente do Apostolado Positivista, Raimundo Teixeira Mendes. Mas não só.
Foram dois os positivismos que fizeram parte da formação republicana do Brasil, segundo o historiador José Murilochat realsbetCarvalho, autorchat realsbetCidadania no Brasil: o longo caminho: um "ortodoxo", que levavachat realsbetconta apenas o cientificismo da filosofia positiva, e outro "não ortodoxo", que se tornaram adeptos dachat realsbetreligião — uma virada que Comte deu nas suas últimas décadaschat realsbetvida.
"Os ortodoxos defendiam a proclamação da República, a separação entre Igreja e Estado, a incorporação do operariado na sociedade, a proteção aos indígenas e ao meio ambiente e o pagamentochat realsbetsalário às mãeschat realsbetfamília pelo trabalhochat realsbeteducação dos filhos. Acrescente-se a isso uma intransigente defesachat realsbetvalores republicanos, como a colocação do interesse coletivo acima dos individuais", explica Carvalho.
Miguel Lemos, um dos positivistas brasileiros mais famosos do período imperial
"Já os não ortodoxos se tornaram missionários dedicadoschat realsbettempo integral. Eram uns bolcheviqueschat realsbetclasse média. Faziam conferências e escreviam centenaschat realsbetfolhetos sobre todos os temas nacionais que distribuíam gratuitamente", completa.
Miguel Lemos, o líder desse grupo, foi quem fundou o Apostolado Positivista, que construiu o maior templo da religião positivista do mundo, na Rua Benjamin Constant, no centro do Riochat realsbetJaneiro.
Segundo a professora Vera Martiniak, da Universidade Estadualchat realsbetPonta Grossa (UEPP), no Paraná, a influência dos positivistas vai além do papel que desempenharam na proclamação: foram eles também que, uma vez instaurada a República, pautaram muitos dos projetoschat realsbetmodernização do país.
"Eles defendiam uma reforma da sociedade na qual o progresso, a moral, a ordem se estabelecessem por meiochat realsbetuma nova hegemonia política e social. Para tanto, a educação era fundamental para a formação do caráter e da moral dos indivíduos", aponta.
Mas o que há desse positivismo na sociedade brasileira hoje?
Christian Lynch, professor do Institutochat realsbetEstudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Riochat realsbetJaneiro (IESP-UERJ) e pesquisador da Fundação Casachat realsbetRui Barbosa, diz que a defesachat realsbetum "absolutismo ilustrado" que se encontrachat realsbetComte é um dos elementos que, da forma como foi lido e adaptado no Brasil — principalmente pelos "ortodoxos" — alicerçam as contínuas mudanças sociais feitas semprechat realsbetcima pra baixo, como a própria República, obra dos militares e à revelia da maioria da população.
"O positivismo é conservador e progressista ao mesmo tempo" diz ele.
"O conservador tradicional olha para o passado e o considera bom. O positivista não: ele quer modernização, progresso, mas almeja chegar lá sem medidas radicais, sem rupturas, sempre dentrochat realsbetuma ordem que se conserva. No Brasil, as ideiaschat realsbetComte serviram para reformar um 'absolutismo ilustrado' que já existia aqui antes — a ideiachat realsbetque é possível modificar a sociedade do alto, sem grandes transtornos echat realsbetmaneira controlada. Isso caiu como uma luvachat realsbetum país que sempre se sentiu atrasado e atráschat realsbetum modelochat realsbetmodernização", completa.
Daí também surge uma certa aversão a grandes revoluções ou transformações sociais, uma característica que é comum mesmo entre os mais pobres, segundo famosa descriçãochat realsbetAndré Singer, professorchat realsbetCiência Política na Universidadechat realsbetSão Paulo (USP).
"O positivismo se adaptou a um país que, desde a época da independência, tinha conservadores que almejam o progresso porque consideravam o atraso também como um fatorchat realsbetinsegurança nacional. Na transição do Império para a República, eles queriam que a escravidão acabasse não por motivos humanitários, mas porque ela favorecia revoltas escravas. Depois, já com os militares, na décadachat realsbet1950 e 1960, o apoio ao desenvolvimentismo era para evitar que aqui acontecesse uma Revolução Cubana, porque essas coisas só acontecemchat realsbetpaíses agrários, atrasados", explica Lynch.
A organização política no Brasil também é um traço positivista que permanece hoje, segundo Carvalho. "Comte pregava uma república presidencial ditatorial, com um Legislativo apenas orçamentário. Ao mesmo tempo, o positivismo pregava a incorporação do proletariado à sociedade. A ditadura militar manteve a preocupação com políticas sociais. Só nos governos Fernando Henrique e Lula, sobretudo no último, o social foi promovidochat realsbetambiente democrático, mantendo, no entanto, traços paternalistas. O problema da incorporação do operariado sem ditatura, isto é, a superação da fórmula dos ortodoxos, ainda não parece resolvido."
A religião positiva
Essa integração do proletariado à sociedade é,chat realsbetComte, resultadochat realsbetuma percepção positivista diferente da que aparecia com os comunistas e socialistas do mesmo período: para o filósofo francês, não deve haver conflito entre as classes. Ao contrário, elas devem conviverchat realsbetharmonia principalmente porque dependem umas das outras, ideias essas que tiveram impacto profundo no Brasil.
"A incorporação dos trabalhadores foi feita aqui como cooptação desta classe, ouvindo algumas das demandas deles, mas criticando quase toda propostachat realsbetlei social", argumenta Federico Bartz, doutorchat realsbetHistória pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Mas, para Andery e Sério, o filósofo esteve mesmo fincado demais ao seu tempo emchat realsbetvisão das possibilidadeschat realsbetrevoluções. "Para Comte, qualquer insubordinação ao poder corrompe uma ordem reestabelecida. Qualquer proposta ou ação que dificulte ou impeça a aceitação da concepçãochat realsbetque os diferentes grupos sociais existentes são complementares e necessários uns aos outros (industriais e trabalhadores, por exemplo) echat realsbetque a harmonia entre eles é benéfica e indispensável à sociedade (cujo progresso depende da ordem) é vista como falsa e perigosa."
No entanto, se foram os escritos do filósofo francês contra a monarquia que tensionaram o Império e culminaram na Proclamação da República, foram eles também que colocaram nas cabeças dos republicanos brasileiros a necessidadechat realsbeteducação e trabalho para todos, sem distinção — que, no programa socialchat realsbetComte, aparecia como duas condições fundamentais das sociedades.
"Os ideais positivistaschat realsbetordem e progresso estão presentes hoje na educação como um processo evolutivo, na formachat realsbetdisciplina. Mesmo a ideiachat realsbetestabelecer entre as ciências uma ordem hierárquica, que vai da matemática à sociologia, e a divisão delaschat realsbetdisciplinas, acarretou aqui, ao contrário,chat realsbetuma ênfase nas ciências naturaischat realsbetdetrimento das ciências humanas", completa Martiniak.
A religião positivista não foi, necessariamente, uma virada no pensamentochat realsbetComte. Para ele, ao invéschat realsbetalmejar o poder político e promover mudanças na ordem social, o interesse popular deveria estarchat realsbetuma reorganização espiritual.
"As principais dificuldades sociais não são essencialmente políticas, mas sobretudo morais,chat realsbetsorte quechat realsbetsolução depende realmente das opiniões e dos costumes, muito mais do que as instituições", dizchat realsbetum trecho do Discurso sobre o Espírito Positivo.
Assim, dos anos 1850chat realsbetdiante, o positivismo se tornou uma crença na própria capacidade humanachat realsbetpromover tais mudanças — e por isso ele a chamouchat realsbetReligião da Humanidade (exigia sempre o H maiúsculo).
A primeira Igreja Positivista do Brasil começou a ser construídachat realsbet1881, 24 anos depois da mortechat realsbetComte,chat realsbetParis, por obrachat realsbetMiguel Lemos. O edifício, como sugeriu o próprio Comte, foi erguido à semelhança do Panteão, monumento neoclássico parisiense que hoje abriga os restos mortaischat realsbetvários escritores e cientistas franceses.
Pela igreja carioca passaram nomes famosos da história brasileira do período, como Joaquim Nabuco, que se aliou aos positivistas nas narrativas contra a escravidão. No seu auge, ela ainda influenciou os positivistas gaúchos, liderados pelo presidente Juliochat realsbetCastilhos, que ergueram uma Capela Positivista no bairrochat realsbetFarroupilha,chat realsbetPorto Alegre,chat realsbet1897.
Depois, enquanto a filosofia permaneceu como ideário na política, a religião se enfraqueceu até ficar reduzida a algumas pessoas por volta dos anos 1920. O templo carioca, da mesma maneira, sofreu com o esquecimento:chat realsbet2009, por exemplo, um forte temporal no Rio fez o teto do edifício desabar. Está fechado há maischat realsbetuma década.
Tombado, o maior templo da Religião da Humanidade segue interditado pela Defesa Civil do Rio — e sem prazo para reabrir.
*Este texto foi publicado originalmentechat realsbet30chat realsbetagostochat realsbet2022