A ilha mediterrânea que surgiu 'do nada' e desapareceuapenas 5 meses:

Pintura retrata formação da ilha

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Uma pintura da época retrata a formação da ilha conhecida como Ferdinandea, Graham ou Julia na costa da Sicília

A causa da mortandade ficou clara alguns dias depois, na noite10julho, quando marinheiros notaram que a bocaum vulcão havia surgido acima das ondas, soltando fumaça, cinzas e lava.

Ele não paravacrescer e,agosto, uma ilha inteira havia se formado.

A ilha era pouco maior do que um rochedo — tinha cerca800 mdiâmetro e estava a 60 m acima do mar —, mas era repletapossibilidades; muita gente acreditava até que estava testemunhando o nascimentoum novo continente.

Localizada no coração das rotas marítimas europeias, a ilha logo gerou uma disputa internacional, à medida que a França e o Reino Unido competiam com os sicilianos pela posse da ilha.

A briga foivão, no entanto.

Em cinco meses, a ilha havia afundadovolta para debaixo da superfície do oceano, levando alguns a chamá-la"L'isola che non c'è" (a ilha que não existe) ou "L'isola che se ne andò" (a ilha que foi embora).

Este mês (julho) marca o 190º aniversário do surgimento da ilha.

Os vulcanologistas conseguiram mapear o fundo do mar ao redor do estreito da Sicília com detalhes extraordinários, revelando imagens surpreendentes desta efêmera Atlântida.

O trabalho deles pode nos ajudar a entender por que ela emergiu e desapareceu — e se uma nova ilha pode surgirseu lugar.

As lendas

A história da Sicília se confunde com a atividade sísmica da região. Os historiadores descobriram escritos gregosmais2,7 mil anos atrás que se referem às erupções no Monte Etna, que continua sendo um dos vulcões mais ativos do mundo.

Acredita-se que duas das piores erupções do Etna, nos séculos 12 e 17, tenham causado dezenasmilharesmortes.

A Sicília também foi abalada por graves terremotos, incluindo o famoso terremotoVal di Noto1693, que matou 60 mil pessoas e destruiu a cidadeCatânia, e o terremoto1908Messina, que tirou 82 mil vidas.

Sem a compreensão moderna da sismologia, a população da Sicília criou uma rica mitologia para explicar esses trágicos eventos.

"As lendas ajudam as pessoas a conviver com esse medo ancestral e justificar a existência dos fenômenos", explica a escritora Marinella Fiume, cujo livro Sicilia Esoterica analisa o folclore e as tradições da Sicília.

De acordo com uma lenda, havia um jovem pescador, Cola, que era famoso porcapacidadepermanecer debaixo d'água por longos períodostempo, o que rendeu a ele o apelidoColapesce — Cola, o peixe.

Ao ouvir sobre seus talentos, o rei desafiou Colapesce a recuperar vários objetos do fundo do mar.

Desenho da ilha

Crédito, Alamy

Legenda da foto, Ilha surgiuposição estratégica e foi prontamente reivindicada pela Itália, Grã-Bretanha e França

Em uma dessas missões submarinas, o pescador descobriu que uma das colunas, que supostamente sustentava a ilha, havia sido danificada pelo fogo do Monte Etna.

Para evitar que a Sicília afundasse sob as ondas, Colapesce tomou a iniciativasubstituir a coluna quebrada.

"Em algumas versões da lenda, Colapesce sobe à superfície a cada cem anos para ver a terra novamente — e são esses movimentos que provocam terremotos e tremores", conta Fiume.

Hoje, sabemos que a Sicília e suas águas estão localizadas na divisa entre as placas tectônicas da Eurásia e da África.

O movimento das placas pode causar aumentotensão na crosta terrestre, o que resultaterremotos.

O movimento contínuo força a placa africana para baixo da Eurásia, enquanto a empurra para o manto. Isso leva ao acúmulorocha derretida, que pode irromper por pontos fracos na superfície da Terra, levando a erupções vulcânicas.

O Monte Etna e o Monte Vesúvio são os exemplos mais evidentes disso, mas as erupções também podem ocorrer debaixo d'água, à medida que o magma emerge por meiovulnerabilidades na crosta abaixo do fundo do mar.

Uma sériecones vulcânicos submarinos podem ser encontrados a cerca40 a 64 km da costa sudoeste da Sicília.

São "monogenéticos", explica Danilo Cavallaro, do Observatório Etna,Catânia, que faz parte do Instituto NacionalGeofísica e Vulcanologia da Itália.

Isso significa que cada cone resultauma erupção única.

"O magma sobe por um canal — e após a erupção, ele esfria e se cristaliza, formando uma rocha muito dura", diz ele.

Durante quaisquer outras erupções, o magma fluirá ao redor e irromperá pela rocha mais macia circundante, produzindo um cone novofolha.

Cólera e caos

A erupção1831 ocorreuum momento tumultuado da história da Sicília.

A Itália, como um país unificado, ainda não existia, e a ilha da Sicília fazia parteum estado que abrangia o sul da península.

Rei Fernando 2º

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Rei Fernando 2º governou Sicília, assim como parte da Itália continental, incluindo Nápoles, que juntas eram conhecidas como as Duas Sicílias

Isso incluía Nápoles, que, historicamente, também era conhecida como Sicília, levando o estado a ser chamadoReino das Duas Sicílias, e era governado pelo rei Fernando 2º, que havia chegado ao trononovembro1830.

O novo rei não foi aceito por todos, no entanto, e1831, parte da população já estava conspirando contrasoberania, diz Filippo D'Arpa, jornalista e autor do livro L'isola che se ne andò ("A Ilha que foi embora",tradução livre).

O povo também enfrentava a ameaçauma epidemiacólera, para a qual não havia cura comprovada e tampouco um fim à vista — uma situação que pode parecer muito familiar para os leitores hoje.

Em meio a essa turbulência, o surgimento da nova ilha na costa sudoeste da Sicília parecia uma espéciedistração para o cidadão comum.

"Os acontecimentos foram vistos como um problema para os nobres", diz D'Arpa.

A localização da nova ilha, no entanto, significava que eragrande interesse para o rei Fernando 2º — e para os governosoutros países europeus.

"É preciso lembrar que o CanalSuez ainda não havia sido criado", observa Nino Blando, historiador da UniversidadePalermo, na Itália.

"E a posição da ilha era particularmente favorável para controlar as passagens comerciais ao longo da rota para o Oriente Médio."

Ainda mais importante, as águas ao redor da ilha estavam infestadas"corsários" — navios autorizados pelo estado que tinham permissão para saquear navios mercantespaíses inimigos.

A Inglaterra, a França e o Reino das Duas Sicílias tinham seus próprios corsários, que emmaioria estavam envolvidosuma "guerra" com navios do Império Otomano.

A faixaterra recém-surgida, ao largo da costa da Sicília, poderia, portanto, ajudar seus proprietários a ganhar o controle das águas.

Não ése admirar que cada país tenha tentado reivindicar a ilha para si.

Dada a localização da ilha, o Reino das Duas Sicílias podia parecer ter o argumento mais convincente.

A ilha ficava entre a cidade costeiraSciacca e Pantelleria, outra ilha vulcânica, muito mais antiga, que já fazia parte dos territórios do reino.

Mapa do fundo do mar

Crédito, Danilo Cavallaro

Legenda da foto, Com advento da vulcanologia moderna, fundo do mar da região foi mapeado com detalhes extraordinários

Eles a chamavamFerdinandea,homenagem ao rei Fernando 2º.

Infelizmente para os sicilianos, os marinheiros ingleses alegaram terem sido os primeiros a pisar na ilha recém-formada.

Eles afirmaram que era terra nullius — livre para qualquer pessoa ocupar — e fincarambandeira.

Chamaram a ilhaGraham,homenagem ao Primeiro Lorde do Almirantado, Sir James Graham. (Graham nunca havia visitado a ilha, na verdade.)

A França também não quis perder a oportunidade.

O país enviou agrimensores para mapear o terreno, e fincoubandeira no ponto mais alto da ilha. Eles a chamavamJulia — uma homenagem ao mêsnascimento da ilha.

A disputa continuou por cinco meses, período durante o qual a ilha com outrora 61maltura já havia começado a afundar.

"No fimsetembro, tinha cerca18 metrosaltura. Um mês depois, apenas alguns metrosaltura. E, finalmente, entre dezembro1831 e janeiro1832 — desapareceu completamente", conta Cavallaro.

O problema, diz ele, é que a base da ilha era formada principalmente por uma rocha vulcânica chamada escória.

"São muito frágeis e podem ser facilmente corroídas pelas ondas do mar", diz Cavallaro.

Ilustração da ilha

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Embora dramático, nascimento da ilha foi considerado espéciedistraçãomeio a período tumultuado na Sicília

Surpreendentemente, os levantamentos feitos pela França haviam alertado sobre essa possibilidade, mas o país continuou a reivindicar a propriedade do pedaçorocha que desaparecia rapidamente.

Em busca da Terra do Nunca

A promessaoutro pontoapoio estratégico no Mediterrâneo pode ter terminadodecepção para as três partes, mas a efêmera ilha provou ser uma inspiração para muitos escritores, incluindo Júlio Verne.

"Ele soube da história da ilha porque ela era bem conhecida na França entre a societé geologique", diz Salvatore Ferlita, professorliteratura italiana na Universidade KoreEnna, na Itália.

O escritor mencionou a ilha no romance Os Filhos do Capitão Grant e ela se tornou a ilha do tesouroseu romance posterior, Captain Antifer.

Mapa do fundo do mar

Crédito, Danilo Cavallaro

Legenda da foto, Hoje, massa da ilha ainda pode ser identificada claramente no fundo do oceano, mas permanece muitos metros abaixo do nível do mar

É até possível que a Terra do NuncaJM Barrie — cenáriosua criação mais famosa, Peter Pan — tenha sido inspirada "na ilha que não existia", diz Ferlita.

Entre mitos e lendas, e apesar do seu desaparecimento, a ilha nunca saiu do imaginário popular e, ao longo dos dois séculos subsequentes, sinais aparentesatividade vulcânica aumentaram a esperançaque a ilha — ou algo parecido — pudesse um dia retornar ao Estreito da Sicília.

Um dos eventos mais notáveis ​​ocorreu1968, quando um terremoto na região foi seguido pela aparente ebulição da água do martorno da antiga localização da ilha.

Isso levou algumas pessoas a acreditar que os eventos1831 estavam prestes a se repetir.

Os sicilianos não iam correr o riscoperder a propriedade da ilha, e Blando conta que eles colocaram uma placapedra nos vestígios da ilha para fazer valer seus direitos.

Estava escrito:

"Esta faixaterra, outrora Isola Ferdinandea, pertenceu e sempre pertencerá ao povo siciliano."

A ilha nunca se materializou, no entanto. As bolhas na água do mar, diz Cavallaro, eram simplesmente o resultado do gás, preso entre as camadasrocha, que havia subido à superfície do oceano.

Isso criou a ilusãoque uma erupção estava se formando, mas nunca houve realmente a possibilidadea ilha voltar.

Quando houver outra erupção nesta área, ela vai acontecerum local diferente, diz ele — já que a rocha da explosão anterior teria bloqueado o canal do magma.

DesenhoPeter Pan

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Acredita-se que Ferdinandea pode ter sido inspiração para 'Terra do Nunca', nos famosos contosPeter PanJM Barrie

A equipeCavallaro mapeou recentemente o campo vulcânico no fundo do mar do Estreito da Sicília. As imagens obtidas incluem os restos da ilha, que estão próximos a um cone vulcânico muito mais antigo,cerca20 mil anos atrás.

Hoje, a Isola Ferdinandea está localizada a cerca9 m abaixo do nível do mar e 137 m acima do leito oceânico.

"É um cone truncado quase perfeito com encostas muito íngremes", diz Cavallaro.

Há um pico no meio, segundo ele, que marca a parte superior do canal por meio do qual o magma irrompeu pela primeira vez.

Hoje, é totalmente colonizado por corais, diz ele — sendo larmuitas espéciespeixes.

A ilha pode nunca mais se erguer acima das ondas — mashistória nos ajuda a lembrar das enormes forças geológicas que moldam nossa paisagem, para o bem e para o mal.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future .

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