Ratos, ossos e lama: os 'alimentos do desespero' a que famintos recorrem para sobreviver:

Mulher somali com criançaBaidoa

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Muitas crianças têm graves problemassaúde devido à faltacomida na Somália

'Carnerato é a única que posso comprar'

"Eu como ratos desde a infância e nunca tive problemassaúde. Eu alimento minha neta2 anos com ratos. Estamos acostumadas com isso", diz Rani, que vive no sul da Índia.

Rani preparando comida com carnerato

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Rani come carnerato pelo menos duas vezes por semana

A mulher49 anos mora pertoChennai e faz parteuma das comunidades mais marginalizadas do país — ela saiu da escola após o quinto ano.

Na estrutura social hierárquica baseadacastas da Índia, seu povo sofreu anosdiscriminação, e Rani trabalha para uma ONG que resgata pessoassua comunidade — a irula — que estão presos a esquemasservidão.

"Sempre moramos fora das cidades e vilas. Nossos pais e avós nos diziam que às vezes não tinham nada para comer — nem mesmo tubérculos. Naqueles tempos difíceis, os ratos nos forneciam a comida necessária", disse Rani à BBC. "Aprendi a pegá-los desde muito jovem."

As habilidadessobrevivência que Rani adquiriu quando criança agora ajudamprópria família a comer — eles cozinham ratos pelo menos duas vezes por semana.

Os irula comem uma espécierato encontradaarrozais, não aquelas normalmente encontradascasas.

Pessoas Irula comendo carnerato com arroz

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Rani prepara carneratovárias maneiras

"Nós descascamos a pele de ratos e grelhamos a carne sobre uma chama e comemos. Às vezes, cortamos em pequenos pedaços e cozinhamos com lentilhas e molho de tamarindo", diz Rani.

Grãos escondidos pelos ratossuas tocas também são coletados e comidos pelos irula.

"Só posso me dar ao luxocomer frango ou peixe uma vez por mês. Ratos estão disponíveisabundância e são gratuitos", acrescenta ela.

'Bebi água barrenta e vi pessoas comendo carnecarcaças'

A ONU diz que a Somália está enfrentando uma crisefome catastrófica e a pior seca do país40 anos que já forçou mais1 milhãopessoas a deixarem suas casas.

Sharifo Hassan Ali com seus filhos

Crédito, Abdulkadir Mohamed/NRC

Legenda da foto, Sharifo Hassan Ali diz que algumas pessoas estavam comendo das carcaçasanimais mortos há muito tempo

Sharifo Hassan Ali,40 anos, mãesete filhos, é uma delas.

Ela teve que abandonaraldeia e viajou por mais200 km — principalmente a pé — da regiãoShabeellaha Hoose até um assentamento temporário nos arredores da capital, Mogadíscio. Ela levou cinco dias.

"Durante a viagem, comíamos apenas uma vez por dia. Quando não havia muita comida, alimentávamos as crianças e passávamos fome", diz ela.

No caminho para a capital, ela testemunhou algumas cenas chocantes. "O rio secou completamente. Há anos, tem pouca água fluindo, então, tivemos que beber água barrenta", diz Hassan Ali.

"Vi centenasanimais mortos a caminhoMogadíscio. As pessoas estão comendo até mesmo as carcaças e as peles dos animais."

Hassan Ali costumava ter 25 vacas e 25 cabras. Todas morreram na seca. "Não há chuva e nada está crescendo na minha fazenda", diz ela.

Imagem aéreaum campodesabrigados pertoMogadício

Crédito, Abdulkadir Mohamed/NRC

Legenda da foto, Mais1 milhãopessoas foram forçadas a deixar suas casas por causa da seca na Somália

Ela agora ganha o equivalente a menosR$ 11 por dia lavando as roupasoutras pessoas — o que não é suficiente para pagar a comida.

"Dificilmente posso comprar um quiloarroz e legumes com isso, e nunca dá para todos. Esta seca tem sido muito dura para nós."

Ela recebe ajudaalgumas agências humanitárias, mas diz que não é o bastante. "Não temos nada", diz Hassan Ali.

'Minha família dependepele e ossos descartados'

Nos últimos dois anos, Lindinalva Maria da Silva Nascimento, uma avó aposentada63 anosSão Paulo, vem comendo ossos e pele descartados por açougueiros locais.

Lindinalvafrente àgeladeira

Crédito, FELIX LIMA/ BBC NEWS BRASIL

Legenda da foto, Lindinalva diz que não tem nada na geladeira

A aposentada tem um orçamento diárioapenas R$ 21 para alimentar ela, o marido, um filho e dois netos. Ela não pode comprar carne, então vai a diferentes açougues e compra carcaças e pelesfrango. Mesmo que custe cercaR$ 3,70 por quilo.

"Eu cozinho os ossos com pedaçoscarne que ficam na pele e adiciono feijão para dar gosto."

A pele do frango, diz ela, é fritauma panela sem óleo, e a gordura que se acumula é então coletada e armazenada. Lindinalva guardapotes vaziosmaionese e requeijão e frita outros alimentos depois.

"Nem pensocomprar frutas, verduras ou doces. Antes, eu tinha um freezer cheiocarnes e verduras, e a geladeira tinha repolho, tomate, cebola, tinha bastante coisa", conta. "Hoje está vazio, e a única coisa que tenho é uma cebola na fruteira."

Lindinalva perdeu o emprego durante a pandemia, e seu filho também está desempregado.

"Conto com doaçõesalimentospessoas que conheço e também com a ajuda da igreja local. É assim que sobrevivo", diz ela.

Lindinalva cortando carne

Crédito, BBC

Legenda da foto, Lindinalva tem dificuldadeconseguir até sobrascarne

Mais33 milhõespessoas no Brasil vivem com fome,acordo com um relatório recente da Rede BrasileiraSegurança Alimentar. O estudo divulgadojunho também constatou que mais da metade da população sofreinsegurança alimentar.

"Os açougueiros costumam dizer que não têm ossos", reclama Lindinalva.

Ela diz que tem que comer o mínimo possível para conservar os alimentos.

"Eu sobrevivo também graças à minha féque as coisas devem melhoraralgum momento."

'Eu e meus filhos sobrevivemos com frutoscactos vermelhos'

"Não há chuva e não há colheita. Não temos nada para vender. Não temos dinheiro. Não posso me dar ao luxocomer arroz."

Fefiniaina é uma mãedois filhos25 anos da ilhaMadagascar, no Oceano Índico.

Dois anospoucas chuvas destruíram colheitas e dizimaram o gado. Isso está empurrando mais1 milhãopessoas para a fome,acordo com a ONU.

Fefiniaina com seu filho

Crédito, Unicef/Rakoto/2022

Legenda da foto, O fruto do cacto dá diarreia no filhoFefiniaina, diz ela

Fefiniaina mora na cidadeAmboasary, uma das áreas mais afetadas pela seca. Ela e o marido ganham a vida vendendo água.

"Quando ganho algum dinheiro, compro arroz ou mandioca. Quando não tenho nada, tenho que comer o fruto do cacto ou ir para a cama sem nada", diz ela à BBC.

"A maioria das pessoas aqui come frutoscacto. Tem gostotamarindo. Nós comemos nos últimos quatro meses, e, agora, meus dois filhos estão com diarreia."

O PMA informou no ano passado que, no sulMadagascar, "as pessoas estavam comendo barro com sucotamarindo, folhascacto, raízes silvestres, apenas para acalmar a fome".

A fruta pode ajudar a manter a famíliaFefiniaina viva, mas não fornece as vitaminas e mineraisque precisam — seu filho4 anos está entre muitos que recebem tratamento para desnutrição.

Fefiniaina comendo frutoscacto

Crédito, Unicef/Rakoto/2022

Legenda da foto, Fefiniaina adiciona um poucomolhotamarindo ao fruto do cacto

"Quanto tem um poucochuva, podemos colher alguma coisa. Podemos comer batata-doce, mandioca e frutas", diz Fefiniaina. "E não precisamos comer frutoscactos."

O PMA diz que o mundo está mais faminto do que nunca e atribui essa "crise sísmica da fome" a quatro fatores: conflitos, choques climáticos, consequências econômicas da pandemiacovid-19 e aumento dos preços.

"Os custos operacionais mensais do PMA estão US$ 73,6 milhões (R$ 388 milhões) acima da média2019 — um aumento impressionante44%", afirma o relatório2022. "O gasto extracustos operacionais teria alimentado anteriormente 4 milhõespessoas por um mês."

Mas a organização diz que o dinheiro por si só não vai acabar com a crise: a menos que haja uma vontade política para acabar com os conflitos e um compromisso para conter o aquecimento global, "os principais motores da fome continuarão inabaláveis", conclui o relatório.

*Com reportagemFelipe Souza, da BBC News BrasilSão Paulo.

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