Exclusivo: Congressistas dos EUA pedem que governo Biden explique como foi cooperação entre americanos e Lava Jato:
Diálogos atribuídos aos integrantes da força-tarefa da Lava Jato publicados pelo site The Intercept Brasil e outros veículosimprensa sugerem que os investigadores brasileiros se esquivaramformalizar açõescooperação internacional nos EUA, como exigia a lei brasileira. Em entrevista à BBC News Brasil, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes afirmou que, se comprovadas as faltas, isso poderia levar a novas anulaçõesjulgamentos da Operação.
Interferência dos EUA na política interna do Brasil?
No Congresso americano, há apreensão com a possibilidadeque investigadores americanos possam ter se envolvido ou participadoatos recentemente considerados ilegais pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro (STF), que anulou todos os julgamentos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no âmbito da Lava Jato após apontar parcialidade do então juiz federal Sergio Moro no caso.
Os parlamentares dos EUA temem que as açõesagentes investigativos americanos possam ser vistas como interferência na política nacional brasileira, já que a operação Lava Jato levou ao impedimento da candidatura presidencialLula2018 e alçou Sergio Moro a Ministro da Justiça do atual presidente, Jair Bolsonaro.
"Há muito tempo estou preocupada com a Lava Jato e suas consequências para a democracia brasileira - particularmente com o que parece ter sido um esforço politizado e falho para prender o ex-presidente Lula e mantê-lo fora das urnas2018. Se o DoJ desempenhou algum papel na erosão da democracia brasileira, devemos agir e garantir a responsabilização para que isso nunca se repita", afirmou à BBC News Brasil a deputada democrata Susan Wild, da Pensilvânia, uma das signatárias da carta ao DoJ.
Ouvidos pela reportagem, tanto o ex-juiz Sergio Moro quanto o Ministério Público Federal do Paraná negaram que tenha havido qualquer irregularidade ou ilegalidade na cooperação com os agentes americanos. (leia mais abaixo)
Wild afirma que prefere esperar "informações completas antestirar quaisquer conclusões" sobre o papelagentes do FBI, o órgão investigativo dos EUA, ou do DoJ, mas nota que "os Estados Unidos devem estar atentos à sensibilidadeseus atos tanto no Brasil quantooutros lugares da América Latina, dado o históricointerferência dos EUA na região".
A congressista se refere, por exemplo, ao apoio dado pelos EUA à ditadura militar brasileira, nas décadas1960 e 1970. Durante a presidência do democrata Barack Obama (2009-2017), o país iniciou o que ficou conhecido como "diplomacia da abertura", quando tornou públicos documentos diplomáticos secretos sobre violações aos direitos humanos cometidos pelos regimes ditatoriaisBrasil, Argentina e Chile.
"Os Estados Unidos têm uma história sombriaintervenção na política interna da América Latina e precisamos compreender totalmente a extensão do envolvimento dos EUA (com a Lava Jato) para evitar que uma eventual implicação inaceitável aconteça no futuro", afirmou à BBC News Brasil o deputado Raúl Grijalva, do Arizona, que também assinou a carta.
Os parlamentares estão cientesquepouco maisum ano, os brasileiros decidirão quem comandará o Palácio do Planalto, o que deve aumentar a temperatura do assunto. "À medida que o Brasil se aproxima da eleição presidencial2022, acredito ser crucial que os membros do Congresso dos EUA deixem claro que a erainterferência acabou - o povo brasileiro deve ser livre para escolher seus próprios governos", resume Wild.
Informações sob sigilo
Essa não é a primeira vez que membros do Congresso dos EUA expressam preocupação com o envolvimentoautoridades americanas com a Lava Jato. Em agosto2019, depois que o portalnotícias The Intercept Brasil publicou trocasmensagens entre Moro e procuradores da Operação Lava Jato que levantavam suspeitas sobre a parcialidade do juiz para julgar o caso, 12 congressistas americanos, liderados pelo representante da Geórgia Hank Johnson, do Comitê Judiciário da Câmara, remeteram 11 perguntas ao DoJ sobre o assunto.
Eles queriam saber se as comunicações entre o então juiz federal Sergio Moro, os procuradores da força-tarefa e os agentes americanos tinham ocorrido sempre por canais formais e oficiais, se obedeciam à legislação brasileira, que tipoapoio técnico investigativo as autoridades dos EUA forneceram à operação, se presenciaram ou souberamcondutas questionáveisMoro ou dos procuradores durante a cooperação e se estiveram envolvidos particularmente nos processos referentes ao ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), cuja condenação no âmbito da Lava Jato o impediudisputar as eleições presidenciais2018.
A missiva só foi respondida pelo DoJ quase um ano depois,junho2020, com uma negativa completa. "O Departamento não pode fornecer informações sigilosas sobre esses assuntos nem revelar detalhes não públicos das ações", dizia a pasta.
A resposta do DoJ levou mais70 deputados brasileiros, do PT, PDT, PCdoB, PSB, PSOL e da Rede, a enviarem uma carta aos colegas do Congresso nos EUA na qual pediam que eles voltassem a interpelar o DoJ sobre o assunto.
Apesar disso, nada aconteceu por quase um ano. A eleição, que retirou o republicano Donald Trump da Casa Branca para instalar ali o democrata Joe Biden, e o conturbado processotransiçãopoder nos EUA consumiram a atenção dos políticos do país.
Mas, nas últimas semanas, o assunto voltou a circular no Congresso americano. Um fator foi decisivo para isso:abril2020, a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal determinou que Moro tinha tido conduta parcial no julgamento do petista, ao interceptar os telefonesadvogados do ex-presidente e determinar a condução coercitiva do petista2016, sem primeiro intimá-lo a depor.
O julgamento foi interrompido por um pedidovistasum dos ministros e deve ser retomado ainda esse mês, mas nos bastidores da Corte transparece que o veredicto tem poucas chancesse alterar. E embora não admitam que se apoiem nas mensagens reveladas pelo Intercept emdecisão, alguns ministros as têm citado para justificar à imprensaposição.
Cooperação formal ou informal?
Em entrevista à BBC News Brasil,fevereiro, Gilmar Mendes afirmou que os diálogos sugeriam cooperação internacional ilegal com os EUA. "Hoje, por exemplo, se fala numa cooperação internacional informal que havia entre os membros da Lava Jato e determinados integrantesinstituições na Suíça e nos Estados Unidos, sem o devido processo legal. Saber se, nos casosque houve condenação, se houve essa cooperação, pode ser relevante para esses casos também", afirmou Gilmar, sugerindo que isso poderia ser motivo para novas anulaçõesjulgamentos da Lava Jato.
Na carta que enviaram nesta segunda ao DoJ, os congressistas americanos apontam a recente decisão do STFanular todos os julgamentos contra Lula e citam o que consideram ser evidênciascooperação irregular. Uma delas seria a revelaçãoque 17 agentes do FBI, do DoJ e do DepartamentoSegurança Doméstica dos EUA (DHS, na siglainglês) estiveramCuritiba com os procuradores da Força-Tarefa da Lava Jato2015, sem que isso tivesse sido formalizado, conforme exige a legislação brasileira, junto ao Ministério da Justiça. Questionam também o modo como os americanos se envolveram na definição sobre o usorecursos apreendidos nos EUA, como os recursos da Petrobras que os procuradores brasileiros tentaram converterum fundo da Lava Jato, iniciativa barrada no STF.
Os congressistas citam aindaseu pedidoinformações as declaraçõesjulho2017 do subsecretário interinoJustiça, Kenneth A. Blanco,uma palestra no Atlantic Council, transcrita e publicada na página do DepartamentoJustiça dos EUA. Blanco afirmou, na ocasião, que "a cooperação entre o DoJ e o Brasil gerou resultados extraordinários. Só no ano passado (2016), por exemplo, a SeçãoFraudes da Divisão Criminal e a força-tarefa brasileira Lava Jato cooperaram e coordenaram resoluçõesquatro casos da FCPA (lei federal dos EUA para combater corrupção internacional): Embraer, Rolls Royce, Braskem e Odebrecht".
De acordo com Blanco, que falava especificamente sobre o caso brasileiro, "no iníciouma investigação, um promotor ou agente da unidadeinteligência financeiraum país pode ligar para seu homólogo estrangeiro e solicitar informações financeiras que, por exemplo, identifiquem contas bancárias. Quando a investigação tiver progredido até o pontoque os promotores estejam prontos para levar o caso a julgamento, as provas podem ser solicitadas por meio do canalauxílio jurídico mútuo para que possam ser admissíveis no julgamento. Sejamos realistas, os criminosos que procuramos identificar e levar à justiça agem rapidamente e é imperativo que façamos o mesmo".
Mas,acordo com um texto do procurador e ex-diretor da SecretariaCooperação Internacional (SCI) da Procuradoria-Geral da República (PGR) Vladimir Aras, publicado2021seu blog, a legislação brasileira veda a informalidade na trocainformações entre agentes, como defende Blanco. "A tramitação dá-se por intermédio das autoridades centrais designadas pelos Estados-partes. No caso do Brasil, é o Ministério da Justiça, representado pelo DRCI. Para os Estados Unidos, a autoridade central é a Procuradoria-Geral (United States Attorney General), representada pelo DoJ", escreve Aras.
Ele ainda diz que "para terem validade no Brasil, as provas criminais obtidas nos EUA devem (...) obedecer às limitações, formalidades e restrições à assistência nele apontadas".
Aras e o chefe dos procuradores da Força-Tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol, teriam tido uma discussão sobre o assunto por meiomensagensaplicativos,fevereiro2016. Dallagnol avisava a Aras que o MPF e a Polícia Federal (PF) seguiriam com ações para extradiçãoum acusado dos EUA sem passar pelo Ministério da Justiça, como requeria a lei. "Obrigado, Vlad (Aras), mas entendemos com a PF que neste caso não é conveniente passar algo pelo Executivo", teria escrito Dallagnol. Aras teria respondido: "A questão não éconveniência. Élegalidade, Delta (Dallagnol). O tratado (de cooperação internacional) tem forçalei federal ordinária e atribui ao MJ a intermediação".
Consultadoabril pelo Congresso dos EUA sobre a legalidade no intercâmbio entre autoridades americanas e brasileiras na Lava Jato, o ex-secretárioJustiça do Brasil, Paulo Abrão, afirmou que "a cooperação internacional é fundamental no combate à corrupção transnacional, mas ela só pode acontecer por meioatos formais e documentados, para preservar as garantias dos cidadãos no EstadoDireito". Abrão esteve à frente da SecretariaJustiça entre 2011 e 2015, períodoque afirma ter celebrado mais4,7 mil pedidoscooperação internacional.
A BBC News Brasil pediu esclarecimentos sobre o assunto ao Ministério da Justiça, que não respondeu até a publicação da reportagem. O Ministério, no entanto, já informou,juízo, que não encontrou pedidoscooperação formal entre Lava Jato e EUA nos casos envolvendo o ex-presidente Lula. A pesquisa, no entanto, não abarca certas fasesinvestigação,sigilo, e por isso a atuação da Lava Jato com os americanos pode ter sido legal.
Consultado sobreque parâmetros se deu a cooperação entre EUA e a Lava Jato, o ex-juiz Sérgio Moro afirmou à BBC News Brasil, por meiosua assessoria, que "a cooperação foi por meios formais, inclusive por escrito, o que não exclui contatos verbais entre as autoridades envolvidas na cooperação".
Ainda segundo Moro, "não há nadairregular ou ilegal nisso. Quem afirma o contrário, não conhece a cooperação jurídica internacional. Os únicos interesses envolvidos foram osaplicar a leicooperação internacional a casos gravessuborno transnacional, como ocorre normalmente entre autoridadespaíses diversos".
Já o Ministério Público Federal afirmou, por meionota, que "nenhum documento foi utilizado pela força-tarefa Lava Jato sem ter sido transmitido pelos canais oficiais, ressalvadas situaçõesurgência informadas nos autos". E afirmou que,situaçõesinvestigação internacional, "antes da formalizaçãoum pedido formal por meio dos canais oficiais, é altamente recomendável e legal que as autoridades mantenham contatos informais e diretos. A cooperação informal significa que, antes da transmissãoum pedidocooperação, as autoridades dos países envolvidos devem manter contatos, fazer reuniões, virtuais ou presenciais, discutir estratégias, com o objetivointercâmbioconhecimento sobre as informações a serem pedidas e recebidas".
O MPF ressaltou que a cooperação internacional foi fundamental para devolver R$4,3 bilhões aos cofres públicos e que, durante a Lava Jato, recebeu 653 pedidoscooperação61 países e realizou 597 pedidos a 58 países. Os procuradores disseram ainda que "os procedimentos e atos da força-tarefa da Lava Jato sempre seguiram a lei e estiveram embasadosfatos e provas" e que "não reconhecem as supostas mensagens" divulgadas pelo The Intercept como verdadeiras. "As supostas mensagens são frutoatividade criminosa e não tiveramautenticidade aferida, sendo passíveisedições e adulterações".
Os congressistas americanos afirmaram ao DoJ que aguardam esclarecimentos até o dia 31julho. De acordo com Hank Johnson, os desenvolvimentos recentes no Judiciário brasileiro, que anularam a condenaçãoLula, "tornam mais importante que nunca determinar o papel do DepartamentoJustiça brasileiro" no caso. "Isso é claramente um assunto fundamental na relação entre Brasil e EUA", disse à BBC News Brasil.
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