De herege a ícone contemporâneo: há 100 anos, a Igreja canonizava Joana d'Arc:bet3565
Filhabet3565camponeses, Joana d'Arc lutou para salvar a França da invasão inglesa no episódio conhecido como Guerra dos 100 Anos — disputa que duroubet35651337 a 1453. Ela dizia ser guiada por vozesbet3565mensageirosbet3565Deus.
A batalha entre França e Inglaterra ocorreubet3565seguida à morte do rei Carlos IV (1294-1328) — que não deixou herdeiro. Pelo parentesco, a monarquia inglesa passou a reivindicar o trono francês. Foi declarada a guerra.
Das batalhas à Inquisição
Nascida no vilarejobet3565Domrémy, Joana, muito religiosa, começou a ouvir vozes por volta dos 13 anosbet3565idade. Ela acreditava ser interlocutorabet3565São Miguel Arcanjo, Santa Catarinabet3565Alexandria e Santa Margaridabet3565Antioquia.
Essas vozes lhe conferiram algumas missões, entre as quais expulsar os invasores inglesesbet3565Paris e libertar os franceses do cerco impostobet3565Orleans. O monarca Carlos VII (1403-1461) ainda não havia sido coroado rei quando a recebeu,bet3565Chinon.
Ali, ele deu a ela uma espada, um estandarte e o avalbet3565que a jovem se juntasse aos soldados franceses — embora não nomeada oficialmente cavaleira. Joana vestiu-se como um guerreiro homem e foi a campobet3565batalha, lutando contra inglesesbet3565vários pontos da França. Sua fama começou a se espalhar. Em 1429 ela estevebet3565Reims, acompanhando a coroaçãobet3565Carlos VII.
Mas a fama trouxe também os inimigos. Joana passou a ser vista como uma aberração: uma mulher guerreira, que dizia ouvir vozes divinas. E se vestia como homem.
Naquele tempo, o Tribunal do Santo Ofício da Igreja Católica, conhecido como Santa Inquisição, atuava com firmeza, sempre seguindo o propósitobet3565combater aquilo que era considerado heresia. Joana foi enquadrada, acusadabet3565feitiçaria.
"O papel histórico dela foi estarbet3565um lugar onde as mulheres não costumam estar. Isto é um fato, independentemente do feminismo", avalia à BBC News Brasil a historiadora Maíra Rosin, pesquisadora na Universidadebet3565São Paulo (USP).
"A figurabet3565Joana mostra uma relação da Igreja Católica com as pessoas consideradas hereges. Assim, ela marca um ponto da história — quando pessoas eram queimadas na fogueira. Isso é muito significativo. Mas o papel importante dela é isso: uma presençabet3565um lugar inusitado."
Cercabet3565cem acusadores participarambet3565seu julgamento e os interrogatórios duraram quatro semanas. Acabou condenada por duas razões: para o júri, usar roupas masculinas era inadmissível para uma mulher e, bem, as tais vozes não seriam coisabet3565Deus, mas sim do próprio demônio.
Foi um processo cheiobet3565polêmicas. "Joana era uma camponesa pouco letrada e não deixou escritos a não ser algumas poucas cartas. No entanto, seu processo tinha várias páginas escritas que continham querelas políticas carregadasbet3565dubiedades", comenta à BBC News Brasil a teóloga Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora da Pontifícia Universidade Católica do Riobet3565Janeiro (PUC-RJ) e pesquisadora visitante na Universidade Notre Dame, nos Estados Unidos.
"Joana d'Arc lutou para salvar a França da dominação inglesa, mas não era nada claro que não tivesse havido também uma implicaçãobet3565autoridades civis e religiosas francesasbet3565seu processo e condenação à morte."
"O julgamento que a levou à fogueira é repletobet3565iniquidades e mentiras", afirma à BBC News Brasil o filósofo e teólogo Fernando Altemeyer Junior, chefe do departamentobet3565Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católicabet3565São Paulo (PUC-SP).
"O processo buscava destruir a reputaçãobet3565Joana para invalidar a possebet3565Carlos VII como rei da França. Afinal, se uma bruxa o fez rei, ele não pode ser reconhecido como rei — eis a tese inglesa que usou Joana como pretexto ideológico. Não foi um processo legítimo e com garantias legais. Já havia a sentençabet3565morte antes das oitivas."
Em 30bet3565maiobet35651431, Joana se confessou, recebeu a eucaristia e, vestidabet3565branco, foi conduzida até a Praça do Velho Mercadobet3565Rouen, na região da Normandia. Aos 19 anos, ela foi queimada viva.
Para que não acabassem atraindo veneração, suas cinzas foram lançadas no Rio Sena. "Não havia interessebet3565destacar a figurabet3565Joana, pois ressaltar a dos soberanos que governaram após a vitória que a ela se deve. Esses soberanos realizaram uma obra unificadora que culminou na construçãobet3565um Estado sólido, potente, no qual reconhecemos a Françabet3565hoje", completa Bingemer.
"Além disso, me parece que houve igualmente uma ocultação da biografia bastante extraordinária da jovem pelo fato puro e simplesbet3565ela ser mulher. Era muito difícil que,bet3565uma cultura patriarcal como era a ocidental se reconhecesse a parte devidabet3565uma vitória militar a uma representante do sexo feminino", prossegue a teóloga.
"A figurabet3565Joana, certamente enriquecida pelo imaginário quebet3565torna a ela se formou, ia na contramão ao estereótipo feminino vigente no Ocidente. Sua invisibilização acompanhabet3565certa maneira a invisibilização que a mulher sofrebet3565maneira geralbet3565meio à cultura e à sociedade ocidental."
"No firmamento da história Joana d'Arc foi uma estrela massiva. Sua luz brilha mais do que qualquer outra figurabet3565seu tempo e espaço. Sua história é singular e, ao mesmo tempo, universalbet3565seu alcance", aponta a historiadora britânica Helen Castor no livro "Joan of Arc: A History".
Reabilitação católica
Conforme lembra a historiadora Rosin, a Igreja tradicionalmente recuperou vários personagens outrora renegados. Joana d'Arc integra essa lista.
"Ela lutou por Deus, era uma mulher extremamente católica. Lutou por Deus e pela França, então tem muito disso,bet3565se tornar um ícone histórico", comenta. "E o fatobet3565ela ser santa trouxe mais referências para ela do que teria se isso não tivesse acontecido. As pessoas adoram ícones, amam ídolos."
O rumo da Guerra dos Cem Anos virou quatro anos após a mortebet3565Joana d'Arc. Em 1453, veio a vitória francesa. O rei Carlos VII quis a revisão do caso da jovem guerreira queimada viva — no fundo, não queria estar historicamente ligado a alguém condenada por heresia. Coube ao papa Calisto III (1378-1458) a anulação póstuma da condenaçãobet3565Joana d'Arc.
Essa reviravolta no cerne do Vaticano contribuiu para aumentarbet3565fama. A canonização veio apenas no século 20. Bento 15, o papa que reconheceubet3565santidade, foi um pontíficebet3565poucos santos: apenas três — a guerreira, um frade e uma freira,bet3565seus sete anos à frente da Igreja.
"Mas foi um papa muito europeu, muito voltado para a unidade da Europa. Assim, pode ter havido interessebet3565canonizá-la, já que era uma imagem, um ícone, um símbolo,bet3565um país que desde a Revolução Francesa [em 1789] estava muito secularizado", contextualiza à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade Gregorianabet3565Roma.
Depoisbet3565se tornar santa, há 100 anos, Joana acabou sendo declarada uma das padroeiras da França. "Antes da Revolução Francesa, a França era ultra-católica. Portanto, ter um ícone nacional como santa passou a ser questãobet3565interesse [por parte da Igreja]", diz Domingues.
"A canonização esteve envolta nas considerações pontifíciasbet3565recuperarbet3565influência na França", concorda Altemeyer. "O papa que a canoniza diz claramente no documento que a Françabet3565novo se tornou 'a filha mais velha da Igreja'."
Sua importância foi apropriada também pelos nacionalistas, que viam embet3565biografia uma luta pela integridade do país. Não demorou para que,bet3565meados do século 20, Joana d'Arc se tornasse idolatrada pela direita francesa.
Em 2017, o político francês Jean Marie Le Pen, ex-presidente do partido nacionalista mais à direita no espectro políticobet3565lá, comparou a filha, a também política Marine Le Pen —bet3565sucessora no partido —, a Joana d'Arc.
"Sua personalidade, história e morte serviram a distintos interesses políticosbet3565seu tempo e continuam a servir nos séculos seguintes", pontua Altemeyer. "Sua figura se transformoubet3565uma legenda mítica fortemente usada pela direita francesa para fortalecer o nacionalismo. Ainda hoje é usada, descaradamente, pela ultradireita francesa,bet3565gestos e ações teatraisbet3565Marine Le Pen."
A teóloga Bingemer problematiza a canonizaçãobet3565Joana justamente no fatobet3565ela ter sido uma guerreira. "[Sob a perspectiva contemporânea,] o problema que me aparece difícilbet3565seu processobet3565santidade é o uso da violência. Joana pegoubet3565armas, lutou com armas, sempre invocando o nomebet3565Jesus Cristo, que pregou um evangelhobet3565absoluta não violência", pontua. "Isso é uma incongruência. E, por isso, ela pode ser cooptada pela extrema-direita, que não tem o menor pudorbet3565aproximar fé cristã e uso da violência, desde que seja para legitimar suas pautas, bem entendido."
"Temosbet3565fazer uma análise não anacrônica dessas coisas. Mas, realmente, uma santa que pegoubet3565armas e as usou, mesmobet3565prolbet3565uma causa legítima, não admira que apresente alguma dubiedade a um olhar mais avançado e progressista cristão hoje. E até mesmo não cristão", complementa. "Bata um olhar ético que veja o bem da humanidade e do mundo na isenção da violência. Por isso é uma santa polêmica."
Ícone
Em "Joan of Arc: A History", Castor apresenta a francesa como um "ícone caleidoscópico", considerando que ela se tornou "heroína para nacionalistas, monarquistas, liberais, socialistas, a direita, a esquerda, católicos, protestantes, tradicionalistas, feministas". Ebet3565vida, "assunto recorrente",bet3565"pintura, literatura, música e cinema".
"O processobet3565recontarbet3565história e transformá-labet3565mito começou a partir do momentobet3565que ela apareceu ao público", pontua a historiadora.
Apenasbet3565Paris há 12 monumentos públicos embet3565homenagem,bet3565esculturasbet3565praças a estátuas sacras, como a que adorna a fachada da catedralbet3565Sacré-Cœur,bet3565Montmartre. "Se do século 16 ao 19bet3565figura esteve no anonimato social e eclesial, nos últimos 100 anos as artes e o cinema forjaram muitas Joanas distantes da única e verdadeira mortabet3565Rouen", comenta Altemeyer. "Cada escritor crioubet3565Joana."
E as obras realmente abundam. De "A Vidabet3565Joana d'Arc", do brasileiro Érico Veríssimo (1905-1975), a "Joana d'Arc",bet3565Mark Twain (1835-1910), passando pela peça teatral "Santa Joana",bet3565Bernard Shaw (1856-1950), há centenasbet3565livros retratando a jovem guerreira francesa. No cinema, também são inúmeras as obras. Entre as mais conhecidas estão as clássicas "Jeanne d'Arc",bet35651899, feita por Georges Méliès (1861-1938), "Joana d'Arc" dirigido por Victor Fleming (1889-1949)bet35651948 e a relativamente recente "Joana d'Arc" dirigida por Luc Besson,bet35651999.
Fundadora do projeto Planobet3565Menina, que trabalha o empoderamentobet3565adolescentesbet3565periferiasbet3565grandes cidades brasileiras, a jornalista Viviane Duarte reconhece o forte simbolismobet3565Joana d'Arc.
"Ela foi canonizada como santa, mas eu a vejo como guerreira: foi uma mulher que rompeu padrões e não teve medobet3565ser quem ela acreditava ser", diz Duarte, à BBC News Brasil. "Ela sempre se colocava à frente. Nos diasbet3565hoje, pensando na mulher brasileira, é uma grande inspiração a históriabet3565Joana d'Arc. É preciso olhar para as mulheres da história, nossas ancestrais, para a força delas mesmobet3565um tempobet3565que as mulheres eram invisibilizadas."
A historiadora Rosin tem outra opinião. "Não acho que ela seja um ícone do feminismo. Na verdade, ela nunca foi uma feminista, já quebet3565luta não foi pelas mulheres", afirma. "Mas é claro que foi uma figura interessante."
Altemeyer acredita que ainda seja necessário reabilitar por completo a "figura controversabet3565Joana d'Arc", considerando "seu contexto vital e seu papel rebelde diante da própria Igreja". "Se ouvirmos as acusações feitas contra ela pelo bispo e suas respostas, o paradoxo diante do poder clerical permanece", comenta. "Ela permanece incomodando."
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