A infânciaBolsonaro entre quilombolas, guerrilheiros e a rica famíliaRubens Paiva:
Naquela praça,1970, o guerrilheiro Carlos Lamarca baleou três pessoasum tiroteio com a polícia militar enquanto Jair, então com 15 anos, corria para casa. O adolescente, que havia saído da escola, testemunhouperto a operaçãocaça a Lamarca, que o levou a alistar-se no Exército.
road builder. in the 1950S because it carm were Available and "cheap".The Cares Wue
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blazer de jogoadquirido pela LVCVA por USR$ 182,5 milhões e demolido para abrir caminho para a
ão do Las Las vegas Convention 🎅 Center. NVCPV pousadacabeçaenergiatega recomeço
Fim do Matérias recomendadas
Dentro da igreja, durante anos, negros dos quilombosEldorado ocuparam os últimos bancos, com medoserem expulsos da frente do altar – os mesmos quilombolas que, para Bolsonaro, "não servem nem para procriar", como disseuma palestra2017.
Uma das torres do santuário foi doada por Jaime Almeida Paiva, homem mais rico e "coronel" da pobre Eldorado por vinte anos. Donouma das maiores fazendas do Vale do Ribeira, "Dr. Jaime" era pai do deputado opositor à ditadura e desaparecido político Rubens Paiva, alvoacusaçõesBolsonaro durante toda a vida pública do hoje presidente.
ApesarBolsonaro ter nascidoGlicério e vividovárias partes do EstadoSão Paulo, éEldorado que algunsseus temas favoritos têm origem. A BBC News Brasil foi à cidade15 mil habitantes para narrar os fatos que ajudaram a formar as ideias do novo mandatário do país.
O domínio dos Paiva
Uma toneladacocaína, três brasileiros inocentes e a busca por um suspeito inglês
Episódios
Fim do Novo podcast investigativo: A Raposa
Bolsonaro é um grande críticoRubens Paiva, ex-deputado federal que fez oposição ao regime militar e desapareceu1971. Paiva aparece com frequência nas falas do presidente sobre a ditadura, um dos temas recorrentesseus discursos.
No plenário da Câmara, Bolsonaro chegou a negar que o deputado tenha morrido durante uma sessãotortura, como foi atestado pela Comissão Nacional da Verdade, e, ao longo dos anos, fez várias acusações contra ele. Uma delas é aque Rubens Paiva ajudou o ex-capitão do Exército Carlos Lamarca a montar uma guerrilha no Vale do Ribeira, onde fica Eldorado. Não há provasque essa colaboração tenha acontecido.
"Por coincidência, a famíliaRubens Paiva tinha uma fazenda na cidadeEldorado Paulista, no Vale do Ribeira, São Paulo, chamada Fazenda Caraitá. O sr. Rubens Paiva fez com que o guerrilheiro, traidor e desertor Lamarca ocupasse afazenda e lá fizesse uma baseguerrilha", disse Bolsonarosessão2013.
A fazenda Caraitá sustentou a economiaEldorado por maisvinte anos. O "doutor" Jaime Paiva, como moradores ainda chamam o empresárioSantos que se tornou um grande fazendeiro do Vale do Ribeira, começou a comprar terras ali1941. Sua propriedade só foi vendida1975, depoisBolsonaro mudar-se para Resende (RJ), onde começoucarreira militar.
Enquanto o presidente morava na cidade – e por muitos anos antes disso –, Jaime Paiva era o chefeboa parte da população. Ele tinha plantaçõesbanana e laranja, criaçõesgado e uma serrariamóveis, alémser responsável pela vida social do lugar: a festa da Rainha da Laranja, a mais importante do ano, era organizada pela família.
Mais do que uma liderança informal, Paiva foi prefeito duas vezes. Na primeira,1956 a 1959, fez a ponte sobre o rio Ribeira e uma das escolas locais. Na segunda,1968, eleito pela Arena, partido da ditadura, ficou pouco menosum ano.
"Teve uma Eldorado antes e uma depois do Paiva", diz Nilzilene AraújoOliveira,56 anos, vice-diretora da escola Dr. Jayme Almeida Paiva, onde Bolsonaro estudou até ir para o Exército,1973. Enquanto o presidente e Nilzene eram alunos, no entanto, o colégio chamava-se Ginásio EscolarEldorado Paulista. A homenagem ao "doutor" veio só1976.
"Mas do pontovista econômico, Eldorado desenvolveu muito com o velho Paiva", Nilzilene continua. "Embora ele fosse forte, bem firme... mas isso era necessário porque ele era capitalista."
Enquanto ela fala, a ficha do ex-colega está à mostra sobre a mesa da secretaria. O fato parece deixar o diretor da escola, Domingos Pontes Junior, incomodado. "Melhor não tirar foto, não. Não tem autorização da família", ele diz, sentado ao lado da vice. "Melhor só anotar. Sabe, são notas parciais, no segundo ano ele foi melhor", Domingos sacode a cabeça.
No primeiro ano do ensino médio, Estudos Sociais (combinaçãogeografia e história) foi a melhor matériaBolsonaro: 8,7. Em Educação Moral e Cívica, disciplina criada durante a ditadura e que exaltava o nacionalismo, teve umseus piores desempenhos (6,8), ao ladoQuímica (6,5).
Não há registros dos filhos ou netosPaiva nos mesmos arquivos. Rubens Paiva tinha 12 anos quando o pai comprou as primeiras terras por ali – ele e os irmãos estudaramcolégioseliteSão Paulo.
"Não se tinha acesso ao Paiva, só aos empregados", Nizilene retoma o assunto. "Eram muito ricos... mas ele fazia a festa da Rainha da Laranja e todos iam."
Pouco antes, na mesma secretaria, um professorHistória aposentado falava dos "dois lados"Paiva.
"Foi um marco histórico – para o bem e para o mal. Como todo mundo trabalhava lá, quando a fazenda fechou, a cidade entroudecadência. Mas ele era amado e odiado, sabe?", disse José Milton Galindo.
O tom é frequente nas declarações sobre o empresário que fez fortunaSantos, como despachante. De um lado, ele era o homem visionário que alargou as ruas da antiga áreagarimpo – Eldorado foi batizada assimrazão do primeiro ciclo do ouro no Brasil –, desenvolvendo o urbanismo local. De outro, era o coronel autoritário que não conversava com o povo, trazia empregados do Nordeste no pauarara e pagava os funcionários com "boró", moeda própria que só valia nos comércios da região.
"Quando tinha a festa da Laranja, se ele cismava com a pessoa, quebrava o copo na mão dela com a bengala. Andava cheiocapangasvolta", diz Antônio CarlosMelo Cunha,64 anos, engenheiro agrônomo aposentado e amigoJair Bolsonaro dos temposcolégio. Foiseu avô que Paiva comprou as terras da fazenda.
Em livro sobre o casoRubens Paiva, SegredoEstado, o jornalista Jason Tércio narra que até o deputado chamava o pai"coronel" e discutia com ele sobre política. Em diálogo reconstruído por Tércio durante a CeiaNatal1970, na fazenda Caraitá, Jaime teria dito a Rubens: "a única política que tu deve fazer com os militares é a política da boa vizinhança".
Filho do deputado, o escritor Marcelo Rubens Paiva conta que o pai era brigado com o avô e por isso ia pouco à fazenda. Ele diz que não sabe responder aos comentários sobre Jaime, porque morava no Rio com os pais e a irmã.
"Querida, meu avô foi prefeito. Não sei se quebrou copos nas pessoas."
Nessa época, Rubens havia voltado do exílio há anos, depoister seu mandato pelo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) cassado após o golpe1964, e trabalhava como engenheiro civil. No entanto, ele ainda ajudava perseguidos políticos a sair do país e mantinha contato com exilados.
Menosum mês depois daquele Natal,janeiro1971, Rubens Paiva seria levado por militares para depor e não voltaria mais.
A casa da fazenda – e o resto da cidade
"Ato Contínuo, 1970. Aí, eu entro na história", disse Bolsonaro durante uma sessão da Câmarasetembro2014.
"Eu tinha 15 anosidade e morava na cidadeEldorado paulista. Ali – já mudounome – existia a Fazenda Caraitá. Proprietário: família Rubens Paiva. Rubens Paiva tinha uma chácara ali. Do cocoruto, do topo da cidadeEldorado Paulista, cidade bastante pequena, via-se a chácaraRubens Paiva, a montante do RibeiraIguape..."
A dois quilômetros do centroEldorado, a fazenda, que não se chama mais Caraitá nem pertence aos Paiva, ainda estápé. Hoje ela éum produtorbananas, que usa a terra para plantação, mas não mora ali. Apesardescuidado, o casarãoteto europeu mantém os ares"mansão", como era chamado pelo povo da cidade.
As paredes azuis, brancas na épocaRubens Paiva e Bolsonaro, ainda exibem as sacadas estreitas que permitiam aos hóspedes uma vista privilegiada do grande jardim e, à esquerda, dos hectaresmexericas e bananas.
Os quartos são oito ou nove, pequenos, segundo os filhos do atual proprietário, que oferecem apenas um tour pelo terreno porque a casa está fechada. Nele, há, como havia nos anos 1960, duas piscinas – adulta e infantil –, uma casahóspedes e outrabonecas, uma casinhacachorroformacastelo, e um mirante para dois lagos artificiais. Na casabonecas,dois andares, com sala, cozinha e quarto com varanda, mesas e cadeirasminiatura ocupam o espaço perto da porta, como se alguém ainda brincasse por lá.
Antesentrar pelo alto portãoferro que demarca o espaço do casarão, percorre-se uma estradaterra. Paralelas a ela, à direita e à esquerda, pequenas casasarquitetura semelhante estão enfileiradas.
"Tinha dezenascasas aqui", diz um dos filhos do proprietário, ao pararcaminhonetefrente ao portão. "Eram dos funcionários do Paiva. Isso aqui era uma cidade, tinha até escola." A maior parte das construções está abandonada – poucas estão ocupadas por empregados do dono atual.
Sem muita gente por ali, o único barulho vemLala e Laica, cadelas pastor alemão que respiram ofegantes debaixo da caminhonete. "Como ficou sem vigia, o pessoal acabou roubando até os tijolos, por isso só tem essas", o jovem diz, secando o suor da testa. A temperatura beira os 40ºC.
A relaçãoEldorado com os Paiva era,alguma forma, dividida pelo portão da fazenda. Do ladofora, para além do bairro privado dos funcionários, a vida do povo seguia alheia aos luxos do casarão. O Vale do Ribeira era e ainda é uma das regiões mais pobres do EstadoSão Paulo, com uma renda médiadois salários mínimos, segundo o IBGE.
Nos anos 1970, a situação era mais dramática. O emprego foraCaraitá era escasso e o dinheiro, difícil. As famílias pobres se viravam como podiam: pescavam, vendiam produtosportaporta, cuidavamfazendas.
No caso dos Bolsonaro, o patriarca Percy Geraldo Bolsonaro trabalhava como dentista prático: fazia extrações, obturações, próteses, mesmo sem ter instrução universitária. Percy era a única opção numa comunidade sem dentistas e chegou a ser indiciadoinquérito policial por "exercício ilegalmedicina, odontologia ou farmácia", mas foi absolvido1973.
Boa parte das pessoas entrevistadasEldorado teve dentes extraídos por Percy,quem lembram com carinho. "A gente era muito humilde na época, então os dentes iam estragando e o pai mandava tirar", conta a vice-diretora Nilzilene. "Geraldo era uma pessoa maravilhosa. Quando eu tinha uns 8, 9 anos, fui tirar um dente com ele. Depois que acabou, ele disse para minha mãe: 'Agora leva a menina pra tomar um sorvete'."
Apesartrabalhar muito, os ganhosPercy Bolsonaro nem sempre eram suficientes para sustentar a mulher e os seis filhos. Fumando um cigarro atrás do outro no pequeno consultório, às vezes ficava até tarde da noite com o 'buticão' – um grande alicateferro –mãos, arrancando molares. Ao final do serviço, era compreensivo com os clientes que não podiam pagar: quem não tivesse dinheiro, que desse galinhas ou porcos.
"Eles eram muito pobrezinhos, milha filha", diz Lúcia Lima Melo,72 anos, do portão da casa onde mora há 47 anos, ao fim da entrevista com ela e seu marido, Reinaldo. Durante anos, eles foram vizinhos dos Bolsonaro, e Reinaldo tornou-se amigoPercy.
Na conversa com a BBC News Brasil, ele contou que o dentista prático era conhecido por seu sensohumor e educação. Era atencioso, mas também não perdia a piada. Chamava os conhecidos"morfiosos", outro jeitodizer "leprosos", explicou o vizinho. Reinaldo riu ao lembrar as tiradas do amigo, como quando ele repetia que "preferia ter as filhas todas prostitutas do que filhos viados".
"Quantos quartos têm ali?", a reportagem pergunta a Lúcia, ainda no portão. A antiga casa dos Bolsonaro, hoje pintadaazul claro, é a próxima, à direita.
"Acho que só dois", ela responde, olhando para o lado.
"Então era pequeno para a família", a reportagem diz.
"Eles não tinham dinheiro, não", ela abaixa a voz. "Não faltava comida, mas bens eles não tinham: carro, casa. Eram pobres mesmo. Mas que bom que graças a Deus chegaram onde chegaram, né", ela sorri por entre as barrasferro.
Para ajudarcasa, Jair pescava e buscava maracujá no mato para vender, alémdescarregar caminhõesadubo e, numa brincadeira cheiadesejo, procurava ouro nos ribeirões pela madrugada.
Vivendo no aperto, a maioria da população precisava coexistir com a riqueza dos Paiva, numa convivência descrita como amigável por alguns e distante por outros. Os últimos argumentam que a relação era boa só para os "puxa-sacos" da família, muitos deles membros da Igreja. Como Aracy, mulherJaime, era católica fervorosa, padres e coroinhas que iam rezar missa na fazenda acabavam se aproximando do casal.
"Fui amigo dos netosPaiva. Conheci Rubens Paiva, convivi com Marcelo e os irmãos", diz Antônio AvelinoMelo Cunha, policial aposentado e donouma pousadaEldorado que hoje mora no litoral paulista.
"Na época, eu era coroinha e ia rezar missa na fazenda. Doutor Jaime e Dona Ceci (como Aracy era chamada) me convidavam para almoçar ou jantar com eles. Aí foi estreitando nossa amizade. Eu usava o lago para brincar, tinha um aquaplano. Ficava na piscina, tocava violão. Era uma fazenda-cidade."
Assim como Antônio, o agricultor Celso Luiz Leite,63 anos, cuja irmã casou com um dos irmãosBolsonaro, era coroinha. Ele se lembraAracy abraçando-o depois das missas. Se "doutor" Jaime tinha famadurão,mulher era vista com benevolência.
"Quando o resto da família vinha para cá, nos finaissemana e férias, eu ia lá ajudar nas missas, já que o padre era puxa-saco. Mas ela era muito simpática", diz Celso, sentadoseu sítio, às margens do Ribeira.
Celso dáombros ao falar que o fazendeiro "não dava muita bola para gente".
"Só para a turma com mais grana... mas, por outro lado, era ele quem dava emprego."
Apesarnão ser um cara "ruim", como Celso repete, Jaime efamília não eram sempre bem vistos pelos moradores. Entrevistados descreveram que nos mesesverão, quando filhos e netos visitavam a fazenda, era comum ver os Paiva cavalgando seus cavalosraça pelas ruas.
Recostadoseu sofá, Antônio Carlos, um dos amigosinfânciaBolsonaro, tenta encontrar uma palavra para definir a família. "Eles eram... como eu posso dizer?", ele coça a cabeça enquantomulher o observa da porta da cozinha. "Eles eram... vistos com outros olhos! O pessoal via como gente rica, né."
Antônio falauma vezque visitou a fazenda para fazer companhia a uma das netasJaime Paiva, que estava se tratandouma leucemia. Adolescentes, ele e a mulher foram até lá com alguns amigos para conversar com ela e tocar violão.
"Nessa época, íamos por causa da doença dela, mas não tínhamos amizade com eles, não", dizmulher, Mara Cristina, apoiada no batente da porta. "Os jovenslá não davam muita bola para os daqui."
Por "lá" também passava Rubens Paiva que, segundo relatos dos moradores entrevistados, tinha uma chácara anexa à do pai com uma pistapouso para chegar à cidadeavião. Após a publicação desta reportagem, o filhoRubens Paiva, Marcelo Rubens Paiva, disse que a chácara não pertencia a seu pai, mas a seu tio Carlos e que a pistapouso ficava na cidade vizinhaRegistro e nãoEldorado. A BBC News Brasil foi ao cartório registromóveis, onde não teve acesso aos documentos sobre as terras, mas apenas foi informada que a família começou a comprar terrenos na região1941 e vendeu a propriedade1975.
Um dos moradoresEldorado mais próximos do presidente, o funcionário público aposentado João Evangelista Correa, conta do diaque entregou um bolo a Rubens a pedido da confeiteira local. Ele e um colega caminharam os dois quilômetros até a fazenda na esperançaganhar um trocado pelo serviço. Chegando lá, João diz que Rubens olhou irritado para os meninos: "o que vocês querem aqui? Falei que ia buscar na cidade". Ao responderem que a confeiteira havia prometido uma gorjeta, teriam ouvido um "não" resoluto.
"Não tinha amizade com pobres", diz João Evangelista, das cadeiras estofadas que ficam emgaragem.
Ele é um dos poucos que narra interaçõesBolsonaro com os Paiva, já que quando adolescente Jair não era um grande frequentador das festas da Rainha da Laranja ou do clube Caraitá, fundado pela família. Seus conhecidos dizem que ele preferia pescar a ir a bailes.
João conta que, apesar da eventual irritação, Rubens convidava os meninos para jogar futebol nas terras da família. Bolsonaro teria participadoalgumas partidas.
Quando parlamentar, ao citar mais uma vez as supostas relações entre os Paiva e o guerrilheiro Carlos Lamarca, Bolsonaro disse que conheceu o ex-deputado.
"Eu sou paulista do Vale do Ribeira,Eldorado. Ali conheci Rubens Paiva, com 10 anosidade", dissesessão da Câmaramarço2016.
Alémjogar bola na fazendaRubens, Bolsonaro teria sido, nas palavras do agricultor Celso Leite, "um dos maiores ladrõesmexerica da família Paiva". Ele conta isso aos risos, explicando que os furtos, comuns entre os meninos locais, eram "só farra mesmo". Para protegerplantação, Jaime Paiva teria colocado um vigiaplantão e um cãoguarda, que teria corrido atrásCelso eBolsonaro enquanto os meninos fugiamdireção ao rio.
"Íamoscanoa até um lugar que tinha uma laranja muito boa. Quando o cachorro latia, a gente pulava n'água."
Bolsonaro e os Paiva
Bolsonaro não parece ter memórias felizes dos Paiva. A biografia Mito ou Verdade: Jair Messias Bolsonaro, escrita por seu filho Flávio Bolsonaro, indica que as diferençasclasse incomodavam o presidente.
No livro, Flávio escreve que "parte considerável do território da cidadeEldorado Paulista eradomínio particular, uma fazenda enorme chamada Caraitá – que hoje seria um latifúndio".
Na mesma página, é mencionada a chácaraRubens Paiva, que aparece como irmão e não como filhoJaime Paiva – Rubens tinha um irmão chamado Jaime, mas este não era dono da fazenda, como dito na biografia.
Nessa chácara, escreve Flávio, "tinha piscina, algo raro à época, mas que não era socializada com a criançada da vizinhança – que ficava apenas admirando,longe, onde os filhos da família Paiva se refrescavam".
Mito ou Verdade ainda narra que os filhosRubens Paiva eram da mesma faixa etáriaBolsonaro e, "não raras vezes", eram vistos comprando picolés KibonEldorado, "inacessíveis à garotada local, que ao ver um deles jogar o palito fora, corria na expectativaestar premiado com 'vale um picolé' marcado na madeira".
Sobre esse episódio, um dos filhosRubens Paiva, Marcelo Rubens Paiva, diz que "não tomava sorvete" e "não tinha irmãos", mas apenas irmãs.
"Talvez ele me confunda com meus primos", ele diz. "Quando ele tinha 16 anos, eu tinha 11 e foi a última vez que fui a Eldorado."
No parágrafo seguinte do livro é citada,novo, a suposta ligação entre os Paiva e Lamarca que, porafinidade com a família, teria escolhido uma área próxima à fazenda para montar a guerrilha. A afirmação foi feitavários discursosBolsonaro na Câmara.
"A verdade está láEldorado Paulista!", Bolsonaro disse no plenário da Casafevereiro2013. "Está todo mundo vivo lá. A Fazenda Caraitá estácartório. A baserenda do Lamarca está lá na fazenda da família Paiva. É muito fácil verificar isso."
Em visita ao registroimóveis da cidade, a BBC News Brasil confirmou que a compra e venda da fazenda estão, sim, documentadas. Mas nada indica que os Paiva tenham fornecido recursos a Lamarca. Nem os antigos amigos do presidente, João Evangelista e Antônio Carlos, dizem conhecer essa versão da história.
"Nunca ouvi falar que financiava o Lamarca, não", disse Antônio quando perguntado sobre o tema.
Apesarnão haver indíciosajuda financeira, o guerrilheiro chegou a cruzar as terras da família durantefuga,1970, como escreveu Marcelo Rubens Paivatexto publicado no jornal FolhaS.Paulo1994.
"Meu tio Jaime acenou para ele, pouco antes do tiroteio com a Força PúblicaEldorado (...) O tiroteio foi a metros da fazenda, ao lado da Escola Jaime Paiva. Lamarca atravessou também o sítio 0K, do meu tio Carlos, e seguiu para Sete Barras."
Depois do tiroteio, conta o escritor, a fazenda foi invadida por soldados que procuravam armas e tentavam estabelecer conexões entre os Paiva e Lamarca. Segundo ele, empregados e amigos da família chegaram a ser presos e torturados, e Carlos levou um tiro no pé acidentaluma das barreiras para cercar Lamarca.
À BBC News Brasil, Marcelo Rubens Paiva disse que a família não tinha nenhuma relação com Lamarca e que seu pai era contra a luta armada.
"Ele não era comunista, mas do PSB (Partido Socialista Brasileiro) e se elegeu deputado pelo PTB."
As teoriasBolsonaro sobre esses dois personagens se estendem até ao desaparecimentoRubens Paiva. Ele argumenta que o ex-deputado não foi morto por agentes da repressão, mas por membros da esquerda comandada por Carlos Lamarca. Segundo Bolsonaro, o grupoLamarca teria chegado à conclusãoque ele foi denunciado por Rubens Paiva depois que este foi preso.
"Ninguém resiste à tortura (…). Então, o grupo do Lamarca suspeitou que Rubens Paiva o havia denunciado", disse Bolsonaro na Câmaramarço2012. "E esperaram o momento certo. Quando o Rubens Paiva foi detido pelo Exército, postoliberdade, com toda a certeza, foi capturado e justiçado pelo bando do Lamarca e pelo bando da Esquerda, da VPR. E aí a culpa recai sobre as Forças Armadas."
Em 2013, a Comissão Nacional da Verdade divulgou um documento inédito do Arquivo Nacional sobre as circunstâncias da morte do ex-deputado. O coordenador da Comissão, Claudio Fonteles, afirmou "não haver dúvidas"que Paiva fora torturado e morto nas dependências do DOI-Codi do Rio.
Às palavrasBolsonaro somam-se ações que marcaramanimosidade contra os Paivas. Em um relato publicado no Facebookoutubro, o netoRubens Paiva, Chico Paiva Avelino, diz que,2014, o então parlamentar do PP cuspiu no busto que a Câmara inauguravahomenagem a seu avô. No texto, Chico diz quemãe e tia faziam discursos emocionados quando foram interrompidas.
"Era Jair Bolsonaro, junto com alguns amigos (talvez fossem os filhos, na época eu não sabia quem eram), que se deu ao trabalho do sairseu gabinete e virnossa direção, gritando que 'Rubens Paiva teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!'. Ao passar por nós, deu uma cusparada no busto. Uma cusparada. Em uma homenagem a um colega deputado brutalmente assassinado."
A BBC News Brasil procurou o Palácio do Planalto para falar sobre o episódio, mas não teve resposta.
O gestoBolsonaro não foi noticiado na época, mas jornais reportaram como ele vaiou o discurso do então líder do PSOL na Câmara, deputado Ivan Valente (SP), durante a inauguração do busto.
Após a publicação do textoChico no Facebook, Marcelo Rubens Paiva dedicou uma coluna no jornal EstadoS. Paulo a elencar – e responder – as acusações que Bolsonaro fez a seu pai e à família nos últimos vinte anos.
"Como deputado, Jair Bolsonaro costuma proferir desde os anos 1990 na Câmara dos Deputados discursos mentirosos sobre meu pai, Rubens Paiva, um deputado federal como ele", Marcelo escreveu tambémoutubro.
"A família Rubens Paiva, alémconviver com a dor morte sob tortura absurda por tantas décadas, ainda tem que aturar o ódio deliranteBolsonaro (...)"
Os Paiva deixaram Eldorado nos anos 1970 e hoje os Bolsonaro são a família mais abastada da cidade. Os irmãos do presidente têm uma redelojasmóveis ematerialconstrução presentemaisdez municípios do Vale do Ribeira.
A BBC News Brasil foi à lojaum sobrinhoBolsonaro, um dos poucos parentes que ainda vivemEldorado, mas disseram que ele estava viajando.
O tiroteioLamarca
Não muito aconteceEldorado. É até difícil distinguir dias úteisferiados, já que o movimento nas ruas é parecido, as lojas abertas e vazias, a mesma dupla tocando violão no Centro, os conhecidos se cumprimentandonovo enovo pelas calçadas.
Não ése estranhar que um tiroteio na praça da cidade tenha gerado tanto rebuliço1970 – agitação que se mantém até hoje, quando os moradores recontam o enfrentamento entre Carlos Lamarca e a polícia. Falar8maio1970 na cidade é como perguntar onde alguém estava no dia da queda das Torres GêmeasNova York: todo mundo tem uma história.
"Quando Lamarca passou eu tinha dez anos. Foi muito tiro! A gente era pequena, mas era atenta. Meu pai disse 'abaixa, abaixa' e foi todo mundo para debaixo da mesa", diz NilzileneOliveira, a vice-diretora da escola Dr. Jayme Almeida Paiva. "O pai da minha amiga foi baleado e ficou com chumbo no corpo até morrer!"
Os relatos ouvidos divergemalguns pontos, mas combinados com registros históricos sobre a passagemLamarca pelo Vale do Ribeira constroem uma narrativa sobre o que aconteceu naquela noite – e onde Bolsonaro estava ao longo da ação.
Carlos Lamarca foi um dos principais nomes da oposição armada à ditadura brasileira como um dos líderes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Ele chegou a ser capitão do Exército, mas desertou e foi expulso da corporação1969, quando já estava engajado na luta contra o regime. Participouassaltos a bancos para financiar as atividadesseu grupo e comandou o sequestro do embaixador suíço no Brasil, Giovanni Enrico Bucher,1970, que foi trocado por 70 presos políticos. Nesse mesmo ano, considerado inimigo número um dos militares, Lamarca foi duramente perseguido.
A perseguição pelo Vale do Ribeira
Em abril1970, um militante da VPR capturado no RioJaneiro revelou que Lamarca estava no Vale do Ribeira, próximo a Registro, formando um grupoguerrilha. Lá, contou o militante preso, o ex-capitão ensinava tática, tiro, desenhava uniformes e construía armadilhas.
O que os livros não detalham foi que, antesse juntar a seus companheiros, Lamarca teria circulado sozinho pela região. Antônio AvelinoMelo Cunha, policial aposentado e donouma pousadaEldorado, diz que chegou a conhecer o ex-capitão, que se apresentava como estudante universitário, assim como ele. O guerrilheiro teria se hospedado no hotel Eldorado, que ainda fica na praça central da cidade, e dito que gostariaconhecer as cavernas da região – hoje uma das principais atrações locais.
"Ele estava procurando meu avô Guilherme, que tinha sido pesquisador do Exército e descobriu algumas cavernas. Lamarca se aproximoumim perguntando se eu conhecia alguém da família e eu respondi que era neto. Mas não sabia com quem estava falando", diz Cunha.
O ex-capitão teria pedido ao estudante que o levasse até as cavernas e, mesmo avisado que enfrentaria um diacaminhada, não hesitou.
Cunha convidou dois amigos para se juntarem a eles, alémum mateiro que sempre andava com seu avô. Enquanto caminhavam na mata fechada, surpreendeu-se com a agilidade do novo amigo.
"Ele dizia que era universitário, mas caminhava na frente da gente e do mateiro também, cortando galho com facão", diz.
Lamarca teria ficado alguns dias na cidade, conta o policial aposentado, participando dos bailes e pedindo música para a bandinha local, da qual ele fazia parte. Aquele tempo serviria para que conhecesse a região a fundo antesorganizarguerrilha.
Mas recebida a informação sobre o paradeiroLamarca,abril1970, o Exército foi rápidoenviar 1,5 mil homens ao Vale do Ribeira.
À procuraseu inimigo número 1, as tropas fecharam estradas, prenderam dezenaspessoas e varreram a serra com helicópteros, bombardeando a floresta.
Morador"sítio", como os habitantesEldorado se referiam aos bairros afastados do Centro, o diretor da escola Dr. Jayme Almeida Paiva, DomingosPontes Junior, lembra bem dos helicópteros. Foi a primeira vez que viu um.
"O Exército pousou no meio do campofutebol, quando o pessoal estava jogando. Os policiais queriam saber se meu tio tinha ajudado Lamarca a fugir, porque ele roubou a canoa do meu tio e desceu o rio. 'Foi roubo mesmo? Foi roubo?' eles ficavam gritando."
Informado do perigo, Lamarca desativou suas basesguerrilha próximas a cidadeJacupiranga. Oito membros foram emboraônibus, misturados à população. Outros dois foram capturados na estrada. Sobraram sete.
Esses caminharam na floresta por três semanas, até que no dia 8maio entraram num vilarejo e alugaram o caminhãoum comerciante. O homem fechou negócio, mas enviou um cavaleiro para avisar a polícia, que montou uma pequena barreirapoliciais na praça centralEldorado. Por volta das sete da noite, quando o caminhãoLamarca parou na cidade, um policial pediu que os sete passageiros descessem com documentosmãos. Foi aí que os tiros começaram.
Tal versão não bate com a contada por moradores. Eles dizem que o grupoguerrilheiros roubou o caminhão, obrigando seus donos a dirigirem até Eldorado enquanto ficavam escondidos na traseira, debaixouma lona. Quando o veículo parou no postogasolina, os policiais teriam desconfiado da movimentação, puxado a lona e passado a atirar.
Nessa hora, Bolsonaro estariaaula na escola Dr. Jayme Almeida Paiva, que fica a 100 metros da praça. Antônio CarlosMelo Cunha, amigo do presidente eleito, conta que estava na mesma sala quando alguém apareceu na porta para avisar que Lamarca tinha passado por Barra do Braço, a 30 kmEldorado, e se aproximava.
"Pediram para o diretor liberar os alunos, mas não deu tempo porque pouco depois veio o tiroteio. Tivemos que ir rastejando. A polícia não tinha arma e o pessoal do Lamarca tinha armamento pesado", diz.
Como ele, Bolsonaro e outros alunos moravam próximo ao rio Ribeira, do outro lado da cidade, e precisaram atravessar a praça. Antônio diz que o grupoadolescentes viu um dos policiais feridos ser carregado, cobertosangue, atécasa. O homem foi atingido na perna e depois precisou amputá-la.
"Os soldados estavam sendo massacrados!", ele arregala os olhos. "Um grupohomens invadiu a delegacia para pegar armamento. A gente gostava do Exército. Os outros, para nós, eram terroristas."
Moradores relatam que Lamarca gritava "não queremos nada com vocês, nosso negócio é com o Exército", tentando evitar mais tiros. Mesmo assim, dois PMs e uma mulher foram baleados. Ninguém morreu.
O 'moleque' na caça à Lamarca
Lamarca aparece33 discursosBolsonaro no plenário da Câmara desde 1995. Como deputado, ele repetiu que, quando adolescente, ajudou os militares a procurarem o guerrilheiro na mata.
"Eu souEldorado Paulista. Eu participei,forma bastante discreta, porque tinha 15 anosidade, da caça ao Lamarca, ao lado do Ribeira", disse Bolsonarosessãomarço2012.
A mesma história foi citadaentrevista ao Programa Roda Viva, da TV Cultura, já como candidato a Presidência. A afirmaçãoque teria ajudado na caça à Lamarca "ainda moleque" levou a revista Época a publicar uma reportagem dizendo que Bolsonaro teria misturado dois episódios para engrandecerbiografia.
No texto, o jornalista Plínio Fraga narra o causo do chamado "moleque sabido"Itapecerica da Serra que,1969, ao anotar a placaum Fusca, teria dado aos militares a primeira pista sobre Lamarca – "moleque" este que não seria o presidente, explica o jornalista. Fraga argumenta que na passagem do guerrilheiro pelo Vale do Ribeira, um ano depois, não haveria registro da ajudaBolsonaro.
Apesara BBC News Brasil não ter encontrado documentos sobre a participação do presidente, moradores que testemunharam a operaçãobusca dizem que era comum o Exército pedir e receber dicaspessoas que conheciam os arredores, inclusive adolescentes. O contato entre militares e população foi frequente, já que soldados rondaram a região por semanas. Lamarca só conseguiu escapar do Vale do Ribeira três semanas depois do tiroteio.
Filho do escrivãopolíciaEldorado na época, Antônio Avelino conta que foi informante do Exército, narrando seus encontros com Lamarca. Segundo ele, Bolsonaro fez o mesmo.
"Jair Bolsonaro também foi informante. Ele conhecia bem o mato. Indicava para onde eles podiam ter fugido."
Mesmo com todos esses esforços, Lamarca não foi capturado ali. Depois do enfrentamentoEldorado, escapoudireção a Sete Barras. A pouco maisum quilômetro da cidade, seu grupo foi interceptado por uma tropa da PM. Os guerrilheiros abriram fogo, ferindo catorze policiais e rendendo outros 18.
O pelotão era comandado pelo tenente Alberto Mendes Júnior,23 anos, que se tornou refém do grupo. Depois que doisseus companheiros foram capturados, Lamarca decidiu que o tenente deveria morrer.
O assassinatoMendes Júnior é usado por Bolsonaro como símbolo da violência que a esquerda teria praticado contra os militares durante a ditadura. Ele mencionou o militar ao rebater o pagamentoindenização aos familiaresLamarca, ao criticar a criação da Comissão Nacional da Verdade e até ao defender a possibilidadeum regimeexceção no casovitóriaDilma Rousseff nas eleições2010.
"O Tenente Alberto, heroicamente, trocou-se por outros soldados subordinados seus para seguir mata a dentro como refémCarlos Lamarca, o grande traidor", disse Bolsonaro no plenário da Câmara1996. "E depois, como Lamarca não precisava mais dele, porque estava livre, já longe das tropas das Forças Armadas, submeteu-o a bárbaras torturas,que inclusive foi obrigado a engolir os seus órgãos genitais, assassinando-o a coronhas."
A versãoque, antesser morto, Mendes teria sido obrigado a engolir seus órgãos genitais não consta nos documentos do Exército, disponíveis no Arquivo Nacional, nem nos escritos do general Carlos Alberto Brilhante UstraA Verdade Sufocada, livrocabeceira do presidente. Em um capítulo destinado apenas a descrever o assassinato, Ustra relata apenas que Mendes foi morto com "violentos golpes na cabeça", deferidos por Yoshitame Fujimore, outro membro da VPR, com a coronhaseu fuzil.
Soldados e meninos
Depois da trocatiros na praça, soldados continuaramEldorado para impedir que o ex-capitão reaparecesse por ali. Moradores contam que os militares acampavam na ponte que passa sobre o rio Ribeira e liga a cidade a Sete Barras, ao norte. A ponte fica no quarteirão onde os Bolsonaro moravam. Os vizinhos Reinaldo e Lúcia Melo lembram os diasque recebiam os pracinhas da operação para o almoço ou um cafézinho.
"O sargentoGuaratinguetá vinha tomar cafécasa. Eles lanchavam, eu fritava uns bolinhoschuva. Ficaram maisuma semana acampados aí. As meninas iam lá conversar com eles e muitas ficaram grávidas depois. Meninos iam conversar também, tinham fascínio por esse negócioarma", diz Lúcia na pequena sala onde cabos e sargentos pediam licença para entrar.
Os amigosinfânciaBolsonaro relatam como as crianças e adolescentes procuravam os soldados para saber se o "terrorista" já tinha sido capturado.
"Depois do tiroteio, estávamos conversando com um pracinha quando ele enroscou a arma no cinto e ela disparou. Pegou só no sapato dele, que ficou cravado no chão", ri Antônio Carlos, o colegaturma. "A gente era a favor do militarismo, nunca tivemos problema."
Em versão bem conhecida da história – e repetida pelo próprio presidente –, um desses soldados entregou um panfleto sobre o alistamento militar para o jovem Jair.
O sonho da Presidência
João Evangelista, colegacolégio e parceiropescarias do presidente, diz que depois da fugaLamarca, Bolsonaro passou a repetir seu novo sonho: ir para o Exército. Três anos mais tarde, ele entraria na Academia Militar das Agulhas Negras.
"Depois disso daí, ele sempre falava que queria ir para o Exército. Achou bonito o trabalho deles."
Em Mito ou Verdade, Flávio Bolsonaro escreve como seu pai "conheceu e se encantou pelo Exército Brasileiro, quando sentiu tocar no seu coração a vontadeservir ao seu país".
Para um ex-prefeito da cidade, a influência da passagemLamarca na escolhaBolsonaro é reforçada pela posturasua família, que não era uma grande apoiadora da ditadura. Fernando CláudioFreitas, que administrou a cidade entre 1982 e 1988, era vereador pelo MDB quando Percy Geraldo Bolsonaro, paiJair, se candidatou à prefeitura pelo mesmo partido,1976. A sigla abrigava os opositores da ditadura.
Percy tentou o cargo mais duas vezes –1982 e 1988, dessa vez pelo PDS (Partido Democrático Social), sucessor da Arena e extinto1993 –, mas nunca foi eleito.
O paiBolsonaro foi fichado e monitorado pela ditadurarazãosua candidatura pelo MDB. Documentos oficiais mostram que o DepartamentoOrdem Política e Social (Dops), o Serviço NacionalInformação (SNI) e o comando da Aeronáutica monitoraram suas atividades políticas e registraram o crime pelo qual ele tinha sido acusado,exercício ilegalprofissão (medicina, odontologia ou farmácia).
Sobre o ex-colegapartido, Freitas diz que era "um cara democrático, liberal e tranquilo".
Ele acredita que o caminho seguido por Bolsonaro foi ditado pelo episódioLamarca e cita seus irmãos como prova: "tanto é que os outros cinco seguiram caminhos diferentes".
Só o caçula, Renato, foi militar. Depoiscandidatar-se à PrefeituraMiracatu por duas vezes e não ser eleito, eser exonerado do cargoassessor especial da Assembleia LegislativaSão Paulo sob o argumentoque seria funcionário-fantasma, hoje ele administra lojasmóveis no Vale do Ribeira. Os outros irmãos também estão no comércio.
Cláudio lembra que a oposição ao governo era feita "dentro da legalidade e da normalidade". Não havia ali defensores do comunismo ou socialismo, mas pessoas contrárias a ações do regime, como o desaparecimentoinimigos políticos. A disputa entre Arena e MDB era mais parecida a uma partidafutebol do que a um campobatalha, ele compara.
Seja como for, Bolsonaro decidiu-se pela vida militar.
Depoispartir para Resende, no interior do RioJaneiro, voltava nas folgas para Eldorado. Numasuas visitas, reunido com os amigos, teria expressado o já famoso desejoser presidente do Brasil. João Evangelista estava lá quando isso aconteceu e narra o momento à BBC News Brasil.
Ele diz que depoisjogar bola, um grupomeninos18 ou 19 anos, Bolsonaro entre eles, conversava sobre as novidades dos últimos meses. O jovem militar começou a falar sobre como estava subindo na hierarquia do Exército – ele havia deixadoser aspirante a oficial e passava a tenente.
"Jair, então logo logo você vai ser presidente", disse um colega.
"Mas é o meu sonho", ele respondeu. "Um dia ser presidente!"
João explica o contexto da conversa. Segundo ele, o colega dizia que, subindo rápido assim, um dia Jair poderia tornar-se general e assumir a Presidência do Brasil como Castelo Branco, Costa e Silva e Médici haviam feito. Um dia, Bolsonaro poderia tornar-se o comandante máximo do regime.
"Naquela época, era o militarismo que tomava conta do Brasil. 1970 era o Garrastazu, Garrastazu Médici", ele explica.
"Jair disse 'meu sonho é um dia ser presidente' só que naquela época era o militarismo. Porque era militar, né, general, coronel, que ia para a Presidência."
Uma cidade, doze quilombos
Leonila tem uma casa no mesmo lugar que seu tataravô escolheu para morar. Para chegar até lá, é preciso subir uma estrada íngreme por entre a mata do Vale do Ribeira. Tão complicado é o caminho que a reportagem é desaconselhada a continuar – pedras podem se soltar, furando um pneu ou causando acidentes.
O difícil acesso não é coincidência. O tataravóLeonila construiucasa ali justamente por isso. Afinal, escravo fugido, ele não queria ser encontrado.
A famíliaLeonila da Costa Pontes,69 anos, faz parte do quilombo Abobral, um dos doze que existemEldorado Paulista. Como o município é o quarto do Estadodimensão territorial, com quilômetrosbananais entre seus bairros, todas as comunidades cabem emárea. A maioria foi reconhecida nos últimos anos, como no casoAbobral, oficializada2015. O lugar, no entanto, não teve suas terras demarcadas.
Para a maioria dos moradores entrevistados, a forte presençaquilombolas na região foi um dos motivos para que a votaçãoBolsonaro não fosse tão expressivaEldorado. O presidente teve 54% dos votos contra 45%Fernando Haddad (PT).
"O PT é forte aqui com os quilombos, as ONGs e a igreja católica. Para mim o número foi vergonhoso, tinha que ter sido muito mais", diz a professora aposentada Mara CristinaFreitas Cunha, mulherAntônio Carlos, um dos velhos amigosBolsonaro.
Apesar da torcidaMara Cristina, não havia sinaisapoio ao presidente pela cidade. Adesivossua campanha foram vistostrês carros e duas janelas ao longoquatro diasviagem. Não havia banners, faixas ou bandeiras do Brasil, usados como símbolo da candidaturaBolsonaro.
Ao perguntar a moradores por que escolheram seu conterrâneo para o cargo mais alto do país, o motivo que se destacava não era ideológico, mas econômico: "Esperamos que ele trabalhe para melhorar o Vale do Ribeira".
Do outro lado, a preferência dos quilombolas por Haddad não vem apenas da proximidade do PT com movimentos sociais, mas da indignação que uma declaraçãoBolsonaro causou.
Em abril2017, já pré-candidato a Presidência da República, ele disseuma palestra no Clube Hebraica, no RioJaneiro, que havia visitado um quilomboEldorado Paulista e seus habitantes "não faziam nada".
"O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. MaisR$ 1 bilhão por ano é gasto com eles", discursou.
O então deputado também afirmou que, se eleito, nenhum "centímetro" a mais seria destinado para reservas indígenas ou quilombolas.
Dos 12 quilombosEldorado Paulista, apenas um, Ivaporonduva, já teve suas terras demarcadas.
Os outros, como Abobral, veem os terrenos onde faziam seus roçados serem ocupados por bananais e casas"terceiros", como os quilombolas chamam os que passaram a comprar terra na região a partir1970, diminuindo a área que os descentesescravos usavam havia séculos. As negociações feitas desde então são pouco claras, diz Leonila, e não se sabe se os compradores têm qualquer registro que comprove a posse dos hectares.
Para ela, apesarser um passo importante, o reconhecimento das comunidades quilombolas, possibilidade que surgiu com a Constituição1988, não mudou muita coisa. Suas terras seguem encolhendo e as diferençastratamento continuam.
No fundo da igreja
Leonila franze a testa quando a reportagem pergunta sobre as mençõesBolsonaro a seus amigos negros, citados para rebater acusaçõesracismo. Gotassuor correm por debaixoseus óculos enquanto ela aperta os olhos.
"Isso pode ser lá onde ele nasceu, masEldorado, não! Sempre foi separado. Hoje está menos, mas é porque está enrustido. Naquela época, se fosse do sítio e pobre era discriminado. Se fosse negro, pior ainda!"
O paiLeonila fazia parte da Congregação Mariana, uma associação públicaleigos católicos, e todo domingo caminhava por horas para ir a missa na cidade. Ele sempre levava os filhos, para quem recomendava: "não sentem na frente senão vão tirar vocêslá".
"Ele colocava a gente bem na porta da igreja, no fundinho, e sempre ficamos ali", conta.
No carro, ao voltar do quilombo para Eldorado, onde hoje mora com uma prima, Leonila diz que ainda não se sente bem na cidade. Elas se mudaram há alguns anos, quando um tio adoeceu e precisoutratamento no hospital local. Para explicar seu desconforto, lembrauma procissãoque ela e outras duas mulheres negras foram escolhidas para carregar a imagem da santa. Ao deixarem a igreja, um grupo teria tirado a estátuasuas mãos.
"Só faltaram me derrubar", ela balança a cabeça.
"Privilegiados" e "acomodados" são algumas das palavras usadas por moradores para falar dos quilombolas. Esses entrevistados têm a idadeBolsonaro ou são mais velhos e, apesarnão representarem a opinião geral, indicam que uma distância persiste.
"Depois1990, eles foram denominados quilombos", a professora aposentada Maria Cristina diz, quando perguntada sobre as comunidades.
E o que mudou?, a reportagem insiste.
"Eles agora têm vantagens", seu marido Antônio Carlos entra na conversa. "Têm privilégios. Depois disso aí começou a pipocar quilombo", diz, sem tirar os olhos da televisão. Um filme antigo está passando.
"As áreas que demarcaram para os quilombos é um absurdo", ele continua.
"Mas Bolsonaro falagarantir a propriedade privada", a mulher retoma a palavra.
"Talvez essas demarcações absurdas acabem!"
Dinheiro emprestado e dentes arrancados
Leonila conhece os Bolsonaro. Quando Percy Geraldo chegou com a família a Eldorado, para administrar uma fazenda às margens do Ribeira, ela diz que o dentista pediu dinheiro emprestado a seu pai, então um inspetorquarteirão. Sem conseguir pagar, Geraldo ofereceu seus serviços. Vários dentesLeonila foram arrancados por ele.
"O pai era um homem muito humilde. Ele tinha um gabinete na cidade, bem organizadinho e bem pobrezinho. Essa aqui também tirou dente", ela diz, apontando para Virginia,prima, que senta a seu lado no pátio da Igreja do Abobral.
"Arranquei todos os dentes com ele", Virginia ri, mostrando a dentadura.
"Ele contava que Jair tinha 17 anos e tinha ido para o RioJaneiro", lembra Leonila.
Se, quando criança, sentada na cadeira do pequeno consultórioEldorado, o filho do dentista era indiferente para ela, hoje Jair Bolsonaro é umasuas maiores preocupações.
Ela diz temer o que presidente possa fazer com os quilombos:não demarcar terras a incentivar a construçãobarragens que poderiam deixar as comunidades debaixo d'água.
Leonila faz parte do Movimento dos Ameaçados por Barragens do Vale do Ribeira, uma centralmovimentos sociais criada1990. Por quase trinta anos, o grupo lutou contra projetoshidrelétricas no rio RibeiraIguape que, segundo seus representantes, ameaçariam comunidades quilombolas, pequenos agricultores, ribeirinhos e caiçaras.
Em 2016, o Ibama decretou a inviabilidade ambiental da usinaTijuco Alto, projeto da Companhia BrasileiraAlumínio (CBA), sepultando a obra. O lagoTijuco Alco atingiria dois municípiosSão Paulo (Ribeira e Itapirapuã Paulista) e três no Paraná (Adrianópolis, Dr. Ulysses e Cerro Azul) e poderia afetar toda a bacia hidrográfica do rio Ribeira do Iguape. No ano passado, o MinistérioMinas e Energia publicou uma portaria que extinguiu a concessão para o aproveitamentoenergia da mesma usina.
O medoLeonila, no entanto, é que um governo Bolsonaro promova a voltaprojetos como esse, apoiado por parte da populaçãoEldorado. Moradores dizem que uma hidrelétrica movimentaria a economia local.
Em outubro, após a vitóriaBolsonaro no segundo turno, o presidente do FórumMeio Ambiente do Setor Elétrico (FMASE), Marcelo Moraes, disse que o governo recém-eleito aceleraria o processolicenciamento ambientalgrandes empreendimentosenergia elétrica, com destaque para usinas. O FMASE é o principal interlocutor do setordebates sobre questões ambientais.
"Só peço a Deus que ele não maltrate a gente", Leonila diz, secando o suor da testa. A manhã avança quente sobre os bananais.
"Que esperar muito dele a gente não espera. Mas peço que não maltrate a gente..."
Resistência
Católico também, Setembrino Marinho não pede a Deus. Um dos líderes do quilomboIvaporunduva e presidente do PTEldorado, ele diz que resistir lhe interessa mais. Como seus antepassados fizeram há séculos.
A 45 km do centroEldorado, mas ainda parte da cidade, Ivaporunduva aparece depoisuma horaviagem por estradas esburacadas e duas pontes, a última feitaestreitas placasmadeira sobre pilaresconcreto. A comunidade,3,7 mil hectares e 80 famílias, ocupa aquela terra desde o século 17, quando a área ainda servia à mineraçãoouro.
Uma das histórias sobre a origemIvaporunduva conta que a antiga proprietária do lugar, dona Maria Joana, adoeceu, foi tratar-sePortugal e acabou morrendo por lá, por volta1690. Viúva e sem parentes, a fazenda teria ficado para seus escravos.
"Eles foram abandonados aqui", diz Setembrino,frente avenda, um cubículomadeira onde vende cerveja, refrigerante e cachaça.
Mas "abandonados" seria a palavra? Não estariam livres?
"Não", Setembrino sacode a cabeça, secando o peito com a camiseta que leva pendurada no ombro. "Eles não sabiam o que fazer. Junto com a Maria Joana tinham o que comer, o que beber. E, quando ela foi embora, se eles atravessassem o rio, eram capturados. Tinham que ficar aqui."
Os escravos decidiram reunir-se na igreja, que antes da morteMaria Joana já estavaconstrução. Ali formou-se o quilombo.
A igrejabarro batido e estruturamadeira, iniciada pelos escravos a pedidosua dona e terminada por vontade própria, ocupa o centro e a parte mais alta da comunidade. Levou o nomeNossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Nas ruasterras não bem paralelas, mas concêntricas, estão as casasalvenaria dos moradores. De um lado, margeiam o rio Ribeira; do outro, os paredõesmata que se estendem, intocados, morro acima.
"A maioria da Mata Atlântica está aqui", diz Setembrino. "Falam que o Vale do Ribeira é o NordesteSão Paulo, mas não é verdade. A gente é muito ricotudo:floresta,água,cachoeira."
Para Setembrino, o que incomoda os críticos é o fatoos quilombolas serem pobres, pretos e terem terra.
"Estamosdiascrise política, econômica, mas aqui não tem crise porque ninguém passa fome. Plantamos o que precisamos. Mas falardar terra para preto e pobre é difícil, porque terra é poder."
VisitasBolsonaro
O líderIvaporunduva não se recordanenhuma visitaBolsonaro, mas diz ter certeza que o presidente se referia a este quilombo durante a palestra no Clube Hebraica.
"Ele falou que visitou uma comunidade que tinha maquinário e nós temos três tratores. Além disso, é a mais conhecida e organizada da região", ele argumenta.
Contra as acusaçõesque "não fazem nada", Setembrino diz que Ivaporunduva fornece600 a 800 caixasbananas orgânicas por semana para as prefeiturasEmbu, Campinas e Santo André. O alimento vai para merenda escolar. No total, diz, a comunidade gera quase R$ 33 mil por mês com o fornecimento da fruta, alémreceber gruposturistas para conhecer a área.
Como a resposta sugere,tática é mais incisiva do que aLeonila. Ele teme, sim, que Bolsonaro faça mudanças na região, como incentivar a construçãobarragens ou abrir áreasreserva para mineração, mas pretende manter a postura ofensiva.
Até 25 anos atrás, os quilombolas proibiam a entradapessoas estranhas ali, o que seus antepassados faziam há séculos, para evitarrecaptura. Os motivos mudaram, diz Setembrino, mas a necessidadefechar-se permanece.
"Eles deixaram isso pra nós. Não temos medolutar", diz, arregalando os olhos negros.
ImagensFernando Cavalcanti/BBC News Brasil, Arquivo Nacional, Ag. Brasil, Ag. Câmara, Família Paiva e Instagram do presidente Jair Bolsonaro.