'Não podemos ensinar as meninas do futuro com livros do passado':

Livro didático da Tanzânia mostrando garotas e rapazes
Legenda da foto, Pesquisadores da Unesco encontraram estereótiposgênerolivros didáticostodo o mundo | Unesco/Relatório GEM

"Há estereótiposhomens e mulhares camuflados no que parecem ser papeis bem estabelecidos para cada gênero", diz a socióloga Rae Lesser Blumberg.

Livro didático no Haiti
Legenda da foto, Um livrofrancês do Haiti diz que "a mãe cuida das crianças e cozinha, enquanto o pai trabalha no campo ou no escritório" | Unesco/Relatório GEM

A especialista, da Universidade da Virginia, pesquisa livros didáticostodo o mundo há maisuma década, e diz ter visto as mulheres serem sistematicamente excluídas dos textos e ilustrações, ou retratadaspapeis subservientes.

"Estereótipogênero é um temamenor destaque na educação. Não ocupa as manchetes dos jornais enquanto milhõescrianças permanecem fora da escola", afirma.

Livro didático com estereótiposgênero
Legenda da foto, Na maior parte dos livros, homens são apresentados como os que recebem e administram o dinheiro, enquanto mulheres cuidam da família | Unesco/Relatório GEM

Apesaro índicematrículas escolares ter aumentado dramaticamente desde o ano 2000, a Unesco estima que mais60 milhõescrianças nunca pisaramuma salaaula - 54% delas são meninas.

"Esses livros perpetuam a desigualdadegênero. Não podemos educar as crianças do futuro com livros do passado."

Livro didático da Tunísia
Legenda da foto, Em um livro da Tunísia, mulheres aparecem cozinhando ou limpando a casa, enquanto meninos podem brincarserem músicos | Unesco/Relatório GEM

Invisíveis

Em 2016, a Unesco, agênciaeducação da ONU, divulgou um alerta usando palavras duras.

Atitudes sexistas são tão comuns que livros didáticos frequentemente sabotam a educação das garotas e limitam suas carreiras e expectativavida, diz a Unesco - e eles representam um "obstáculo escondido" no caminho da igualdadegênero.

Seja a medidalinhastexto, proporçãopersonagens nomeados, mençõestítulos, citaçõesíndexes ou outros critérios, "as pesquisas mostram que as mulheres são muito subrepresentadaslivros e no currículogeral", diz o pesquisador Aaron Benavot, da UniversidadeAlbany, no Canadá, e ex-diretor do relatório Global Education Monitorin (GEM)2016 da Unesco.

Mas o problema tem mais facetas do que se sabe,acordo com especialistas.

Livro didático do Congo
Legenda da foto, Segundo a Unesco, os textos didáticos costumam "sabotar" a educação e meninas e mulheres, e limitar suas expectativascarreira | Unesco/Relatório GEM

O aspecto mais evidente seria o usoum linguajar considerado enviesado, já que, normalmente, palavras no masculino são usadas como sinônimohumanidade.

Em seguida, há o problema da invisibilidade, já que as mulheres costumam estar ausentes dos textos, e seus papeis na história e na vida cotidiana são subordinados aos personagens masculinos.

"Havia um livros sobre cientistas do qual eu me lembro especialmente, e a única mulher nele era (a física e química) Marie Curie", disse Blumberg.

"Mas por acaso ela foi mostrada descobrindo o rádio? Não, ela aparecia olhando timidamente sobre o ombro do marido enquanto ele falava com outra pessoa - um homem que parecia elegante e distinto."

Em terceiro lugar, há os estereótipos tradicionais sobre trabalhos que homens e mulheres fazem, tanto dentro quanto foracasa, assim como expectativas sociais clichês e traços que são atribuídos a cada um dos gêneros.

Livro didático mostrando profissões na Itália
Legenda da foto, Países desenvolvidos não escapam: neste livro italiano, todas as profissões são representadas por homens | Unesco/Relatório GEM

Um livro didático italiano dá um exemplo impressionante que ensina vocabulário para ocupações diferentes, com 10 opções diferentes para homens -bombeiro a dentista - e nenhuma para mulheres.

Enquanto isso, mulheres costumam ser retratadastarefas domésticas, desde cozinhar e lavar roupas até cuidar das crianças e dos idosos.

"A preocupação também é que as mulheres seram consideradas passivas, submissas, cumprindo esses papeis estereotípicosgênero", diz a especialistaeducação Catherine Jere, professora convidada na Universidade East Anglia, que também esteve envolvida no relatório GEM.

Estudantes cubanasHavana

Crédito, AFP

Legenda da foto, Em alguns países, professores têm estimulado alunos a questionar os próprios livros e identificar o viésgênero

'Se alienígenas viessem visitar...'

O problema está longeser novo. Livros didáticos estão sob escrutínio desde os anos 1980, depoisuma pressão do movimento feminista por reformas na educação, principalmentepaíses desenvolvidos.

Um estudo2011, considerado a maior pesquisalarga escala já conduzida neste campo - que analisou mais5.600 livros infantis publicados durante o século 20 - estimou que homens são representados quase duas vezes maistítulos e 1,6 vezes mais como personagens centrais.

Desde que o problema foi identificado, dizem os pesquisadores, houve progresso na redução do sexismo, mas ele é "muito lento".

Livro didático americano1962
Legenda da foto, Pesquisadores que analisaram milhareslivros didáticos do século 20 dizem que pouca coisa mudou deste exemplar americano1962 até hoje | Unesco/Relatório GEM

Alguns dos livros analisados foram publicados muito tempo atrás, mas muitos continuam sendo usados - especialmentepaíses onde a renda é mais baixa eescolas que não têm orçamento para substitui-los.

"Está ficando pior a cada ano, porque o mundo está progredindo, as mulheres estão se dedicando a novos trabalhos e os trabalhos domésticos estão mudando", diz Blumberg. "E os livros não estão melhorando no mesmo ritmo, então o abismo aumenta."

"Se alienígenas viesse nos visitar, não teriam ideia do que as mulheres realmente fazem,termos pessoais etrabalho, se lessem nossos livros escolares."

Preocupação universal

As pesquisas também mostram que o problema é praticamente universal. Com apenas algumas diferençasfrequência e intensidade, o sexismo é pervasivolivros tantonações desenvolvidas quantopaísesdesenvolvimento.

Os dados são desencontrados, mas uma gamaestudos publicados na última década acumula provas. Um livrohistória para crianças do 3º ano fundamental na Índia, por exemplo, simplesmente não mostra nenhuma mulher profissional.

Livros didáticos do Cazaquistão e da Turquia
Legenda da foto, Meninos brincamcarrinho e se imaginam como médicos, enquanto meninas sonham com o casamentolivros atuais do Cazaquistão e da Turquia | Unesco/Relatório GEM

Já uma criança no Quênia que esteja sendo educadainglês verá, nos seus livros, homens ativos tendo "ideias interessantes", enquanto mulheres e meninas cozinham e penteiam cabelosbonecas.

Homens eram 80% dos personagenslivros feitos pelo Ministério da Educação do Irã. Na Índia, só 6% das ilustrações mostravam mulheres e, na Geórgia, eram 7%.

LivrosmatemáticaCamarões, Costa do Marfim, Togo e Tunísia tinham uma proporçãopersonagens mulheres menor que 30%,acordo com a medição feitaum estudo comparativo2007.

Uma pesquisa com livros escolares no Reino Unido e na China também revelou que 87% dos personagens eram do sexo masculino.

Na Austrália, um estudo realizado2009 descobriu que 57% dos personagens também eram homens - apesarque, na população do país, há mais mulheres.

"Algumas pessoas pensam que os livros didáticospaísesrenda mais alta seriam um pouco mais modernos, mas na Austrália, duas vezes mais homens eram retratadoscargos administrativos e quatro vezes maispolítica e no governo", diz Jere.

"Há um caso extremoum livro chinês, onde apenas uma heroína da Revolução Comunista1949 aparecetodo o livro", descreve Blumberg.

"E ela não é retratada lutando por novas leis e nem na linhafrente com Mao. Ela é mostrada apenas dando um guarda-chuva para um guarda."

Livro didático do Paquistão
Legenda da foto, Atividades "da mãe e do pai"um livro paquistanês - enquanto ela cozinha, serve, costura e limpa, ele lê o jornal, assiste TV e come | Unesco/Relatório GEM
Livro didático no Quênia
Legenda da foto, Divisãotrabalhos por gênero é mostradaum livro atual queniano: homens como pedreiros e pescadores, mulheres como professoras ou costureiras | Unesco/Relatório GEM

Influênciaajuda para a educação

Parte do problema, segundo os especialistas, é que os livros tentam mostrar algo sobre "o que seria normaluma sociedade" aos olhoscriançasidade escolar.

Ao ajudar a estabelecer o currículoum país, os leitores são considerados uma ferramenta educacional poderosa.

Estima-se que um aluno ou aluna leia mais32 mil páginaslivros didáticos desde o ensino fundamental até o médio. Cerca75% dos trabalhosclasse e 90% das tarefascasa é feita a partir deles, assim como uma alta proporção do planejamento dos professores.

Mesmo que o acesso à internet e a outros recursos digitais aumentem o acesso a ferramentasaprendizagem, "os livros didáticos continuam centrais especialmentepaíses mais pobres", segundo Aaron Benavot.

"Quando eles mostram expectativas muito limitadas sobre o que garotos e garotas podem ser, as crianças são socializadas dessa forma", diz Jere.

Garotas paquistanesas ouvem a professorauma escola improvisada

Crédito, AFP

Legenda da foto, "Se alienígenas viesse nos visitar, não teriam ideia do que as mulheres realmente fazem,termos pessoais etrabalho, se lessem nossos livros escolares", diz socióloga

O impacto que esses livros podem ter na visãomundo das crianças já foi mapeada pela pesquisa acadêmica.

Um estudo israelense com crianças do 1º ano fundamental, por exemplo, mostrou que aquelas que eram expostas a retratoshomens e mulheres como iguais tendem a pensar que a maior parte das carreiras eram apropriadas tanto para meninas quanto para meninos.

Já os que aprendiam com livros didáticos que mostravam viésgênero acreditavam que os estereótipos eram aceitáveis.

Em muitas partes do mundo, as pesquisas também sugerem uma ligação entre a representaçãocientistas mulhereslivros e os números menoresmeninas que acabam segundo disciplinasciência, tecnologia, engenharia e matemática - as chamadas disciplinas STEM, na siglainglês.

Livro didático nigeriano
Legenda da foto, Livro nigeriano,inglês, mostra trabalhos "de mulheres" e "de homens" | Unesco/Relatório GEM

Sinaisprogresso

No entanto, os acadêmicos afirmam que houve progresso nos últimos anos. O relatório GEM, da Unesco, mostra que conteúdo relacionado à igualdadegênero aumentou nos livros escolarestodo o mundo, com referências mais frequentes a direitos das mulheres e discriminaçãogênero, especialmentelivros didáticos da Europa, da América do Norte e da África subsaariana.

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Alguns países estão capitaneando as mudanças - a Suécia, por exemplo, é o principal deles, o que não surpreende dadas as atitudesgeral do paísrelação à igualdadegênero.

Livros do currículo nacionaleducação incorporam personagens e pronomes com gênero neutro, assim como um retrato mais igualitário dos papeishomens e mulheres na vida cotidiana.

"Na verdade, se você vir alguém usando um avental e mexendouma panelaum livro sueco, há uma chance altaque seja um homem", diz Blumberg.

Mãe e filha leem um livro juntos

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, De acordo com pesquisadores, livros com personagensgênero neutro melhoram o aprendizado

Talvezmaneira mais surpreendente,Hong Kong pesquisadores documentaram um número igualpersonagens homens e mulhereslivros didáticosinglês.

E também haveria progresso na Jordânia, nos territórios palestinos, no Vietnã, na Índia, no Paquistão, na Costa Rica, na Argentina e na China.

Versão mais recenteum livro didático chinês
Legenda da foto, Na atualizaçãoum livro didático chinês, rapazes e moças discutem economia | Unesco/Relatório GEM

Mas uma investigação mais aprofundadalivros didáticosnível nacional é um processo longo e caro - que geralmente é atrapalhado por cortesorçamento e excessoburocracia.

"Algumas das mudanças foram superficiais e o comprometimento dos governos não é sustentável quando há uma mudançaregime", diz Benavot.

Livros didáticos novosBangladesh e da Índia
Legenda da foto, Livros mais recentesBangladesh e na Índia mostram mulheres jogando futebol e homens também lavando pratos | Unesco/Relatório GEM

Para tentar corrigir essa desigualdade, os especialistas sugerem métodos alternativos para contrabalancear os textos lidossalaaula.

Foram feitas algumas tentativas neste sentido na Índia e no Malauí - por exemplo, estimular os estudantes a contestarem os próprios livros, apontando o viésgênero e os estereótipos que encontram.

"O problema pode ser compensado chamando a atenção para ele, e os alunos costumam gostar desse trabalhodetetive", afirma Blumberg.

"Mas precisamos treinar os professores primeiro e, finalmente, precisamos reescrever esses livros se queremos uma educação melhor."

Livro didático no Vietnã
Legenda da foto, Pesquisadores da Unesco sugerem reescrever os livros, incluindo mais personagens femininaspapeisprotagonismo | Unesco/Relatório GEM
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