Como cartarecomendação a condenado por pedofilia derrubou o governo da Islândia:
Um escândalo envolvendo conexões entre um pedófilo e o primeiro-ministro da Islândia, Bjarni Benediktsson, levou ao colapso da coalizão parlamentar que sustentava o governo do país.
O partido Futuro Brilhante anuncioudecisãose retirar do governo, que estava havia apenas nove meses no poder, argumentandouma "séria quebraconfiança".
Horas antes, a imprensa havia divulgado que o pai do premiê assinou uma cartarecomendação para que um homem condenado por pedofilia tivesse"reputação restaurada".
Segundo o sistema penal islandês, pessoas condenadas por crimes violentos perdem a chamada reputação ilibada, condição para exercer certos cargos públicos, alémprofissões como a advocacia e a corretagemimóveis.
Mas elas podem ter a reputação restaurada legalmente cinco anos após o iníciosua sentença, caso apresentem, entre outros documentos, cartasrecomendação feitas por pessoas consideradas "respeitadas e bem conhecidas".
No último ano, duas restaurações provocaram polêmica no país.
'Surreal'
Os islandeses ficaram especialmente horrorizados com o casoHjalti Sigurjón Hauksson - condenado2004 por estuprarenteada quase todos os dias durante 12 anos, desde que ela tinha 5 anos até completar 18.
Ele ficou preso por cinco anos e meio, mas teve a restauração da reputação e o perdão concedidos pelo Ministério da Justiça no mês passado. Segundo o portalnotícias The Reykjavik Grapevine,vítima disse ser "surreal" que seu agressor ganhasse essa oportunidade.
O governo vinha sendo acusadotentar encobrir o caso ao se recusar a revelar quem teria escrito a cartarecomendação. Mas na última quinta-feira meioscomunicação revelaram que o autor da carta era Benedikt Sveinsson, o pai do primeiro-ministro e um dos homens mais ricos do país.
Em entrevista a uma redeTV, a ministra da Justiça islandesa, Sigríður Andersen, disse que havia falado pessoalmente com o primeiro-ministro Benediktsson sobre a cartaseu paijulho. Ela havia se negado inicialmente a revelar o autor da carta, mas acabou obrigada por um comitê parlamentar a divulgar a informação.
No inícioagosto, Benediktsson disse que não conhecia os detalhes do caso e que não havia exercido qualquer influência no processo.
'Boa vontade'
Em nota, o pai do primeiro-ministro pediu desculpas por ter escrito a recomendação para Hauksson, que era seu amigo. Ele afirmou que o condenado apresentou uma carta já escrita para que ele assinasse.
"Nunca considerei a restauração da honra como nada alémum procedimento legal que tornava possível a criminosos condenados recuperarem alguns direitos civis. Não acho que é algo que justifique a posiçãoHjalti (Hauksson, o condenado) com relação avítima. Eu disse que ele deveria enfrentar seus atos e se arrepender deles."
"O que era para ser um pequeno gestoboa vontade para com um criminoso condenado se transformou na continuação da tragédiasua vítima. Por isso, eu peço desculpas novamente", afirmou.
A ministra da Justiça afirmou estar preparando um projetoreforma do sistemarestauraçãohonra (oureputação)resposta à polêmica.
De acordo com o jornalista islandês Hjortur Gudmundsson, a coalizãogoverno já era frágil - ela só tinha a maioria por causauma cadeira no Parlamento antes da saída do Futuro Brilhante.
Agora, aumenta a pressão pública para novas eleições, já que há poucas opções possíveis para uma nova coalizão que possa assumir o poder.
"Desde a crise econômica2008 há muitas suspeitasrelação a políticos, e um alto preço a pagar pela honestidade", diz Gudmundsson
"Essa não é a primeira vez que o primeiro-ministro é envolvido numa polêmica - ele foi implicado no escândalo dos Panamá Papers (que derrubou o governo anterior, no qual ele era ministro das Finanças). Já não há muita paciência da população com esse tipocoisa."
Debate acalorado
Na madrugada desta sexta-feira, a presidente do diretório nacional do partido Futuro Brilhante, Guðlaug Kristjandsdóttir, afirmou que "tanto o diretório quando a bancada parlamentar do partido consideraram a quebraconfiança entre os partidos da coalizãotais proporções que seria impossível manter a cooperação governamental".
Com isso, encerra-se o governo majoritáriovida mais breve na história política da Islândia, depoisapenas nove meses.
Além do Futuro Brilhante,orientação social-democrata, a coalizão era formada pelos partidoscentro-direita Partido da Independência - o maior partido da Islândia - e Regeneração, formado no ano passado por dissidentes do Partido da Independência.
O episódio pode representar um duro abalo à imagem internacional da Islândia como modelodemocracia, que ganhou espaço principalmente nos países do sul da Europa após a crise econômica2008.
A população islandesa,cerca300 mil pessoas, deu uma dura resposta a autoridades e banqueiros considerados responsáveis pela recessão que atingiu o país. Entre 2008 e 2010, o PIB islandês encolheu 11% e a moeda local se desvalorizou 80%relação ao euro. Para evitar um colapso financeiro, o governo entrouum acordoresgate com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Em 2009, protestos culminaram na queda do governo e2012, um movimento popular com participação pela internet criou uma nova Constituição para o país, aprovada por 67% da populaçãoum referendo não vinculante. Mas ela ainda não foi aprovada pelo Parlamento.
"Cidadãos comuns, eleitores, protestam duramente contra algum ato governamental e se revoltam. Na sequência, o governo cai. As manifestaçõesagora não foramrua, mas o debate foi bastante acalorado e duro. Acompanhei esses debates tanto na sociedade como nas mídias sociais, e a situação atual me lembra o ano2009, apesaras circunstâncias serem diferentes", afirmou Baldur Thórhalsson, professorciência política da Universidade da Islândia, a uma emissorarádio na manhã desta sexta-feira.
Num país onde quase 100% dos lares têm acesso à internetalta velocidade, as pessoas discutem abertamentegrupos no Facebook casosabuso sexual e mantém páginas na internet onde exibem fotos e nomesindivíduos condenados ou indiciados por crimes sexuais, incluindo a pedofilia e a violênciagênero.
*Colaborou Luciano Dutra,Reikjavik para a BBC Brasil.